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Saúde e Agenda 21

Autor original: Maurício Jun Handa

Seção original: Destaques do mundo do Terceiro Setor

A saúde resulta das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde conforme definido na 8ª Conferência Nacional de Saúde, 1986. As formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis da vida, é que vão determinar as condições de saúde e de trabalho.


Os efeitos sobre a saúde provocados por alterações ambientais são bem conhecidos. Se, por um lado, o desenvolvimento socioeconômico tem melhorado o estado de saúde de milhões de pessoas, estendendo sua longevidade, por outro lado, o subdesenvolvimento acaba por impedir que outros milhões tenham saúde. O desenvolvimento tem ampliado a gama de riscos para a saúde com repercussão no mundo todo, riscos que se não forem controlados a tempo podem tornar o planeta inviável e incapaz de satisfazer as necessidades humanas.


A saúde deve ser vista como um meio e um pré-requisito essencial para a vida humana e para o desenvolvimento social e não como uma meta final a ser alcançada ou um produto a ser adquirido. Deve ser vista como algo em constante mudança, sempre em processo de transformação. Na III Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde realizada em Sundsvall, Suécia em 1991, algumas condições foram definidas como necessárias para construir ambientes favoráveis à saúde, tais como:


  • paz e segurança nas regiões e no país;

  • democracia/exercício do poder pluralístico, com ênfase especial nos direitos humanos;

  • condições de moradia satisfatórias;

  • tomadas de decisão envolvendo a participação popular e o empowerment;

  • redução dos grupos populacionais que vivem em extrema pobreza;

  • equilíbrio entre o crescimento populacional e os recursos necessários;

  • acesso à água limpa, ar fresco, alimentação segura e energia;

  • eqüidade socioeconômica e justiça entre países e nos países, particularmente entre os grupos representados por mulheres, idosos, crianças, deficientes e minorias étnicas;

  • acesso eqüitativo à terra, materiais e recursos tecnológicos ecologicamente seguros;

  • acesso com eqüidade à saúde e aos serviços sociais;

  • condições psicossociais adequadas.

  • A idéia de formar ambientes favoráveis à saúde é tão antiga quanto a humanidade. Entretanto, o conceito atual foi apresentado em 1986 em Ottawa, na 1ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde como um dos meios fundamentais para promover a saúde, significando que (a saúde) não pode ser considerada sozinha, ela é determinada em grande parte pelas condições ambientais. O meio ambiente não é apenas formado pelas estruturas e serviços visíveis que nos rodeiam, mas tem dimensões espirituais, sociais, culturais, econômicas, bem como políticas e ideológicas. Essas diferentes facetas da vida estão intimamente relacionadas e são inseparáveis. As influências sobre uma dimensão provocarão mudanças em outras, para melhor ou para pior, mas, para que o desenvolvimento da saúde da sociedade possa ser alcançado, o meio ambiente deverá ser alvo de mudanças. Aqui entra o conceito de desenvolvimento humano sustentável.


    Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em 1992, ficou bastante claro que nossas perspectivas de saúde dependem do desenvolvimento adequado e sustentável do meio ambiente natural e social. De acordo com a Declaração do Rio aí originada, "Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas como desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza" (Princípio 1º). Para atingir essa meta, entretanto, é preciso muito mais do que a aplicação de tecnologia médica, é preciso que haja esforços integrados de todos os setores, organizações e indivíduos para fazer com que o desenvolvimento socioeconômico seja sustentável e humanitário, assegurando uma sólida base ambiental para a saúde.


    A saúde depende de um meio ambiente equilibrado que mantenha o ar, a terra, a água em ótimas condições, um meio ambiente onde não haja tanta pobreza, que tenha sob controle o modo de vida urbano, os produtos químicos e os vetores de enfermidades, o excesso de consumo e o subdesenvolvimento, a tecnologia e o comércio.


    Tudo isso, só poderá ser assegurado por meio da implementação de novas políticas públicas e novos programas de ação, que tenham enfoques sistêmicos e intersetoriais.


    O documento Agenda 21 gerado pela CNUMAD propõe o desenvolvimento de planos para ações consideradas prioritárias, com a finalidade de:


  • reunir o conhecimento sobre a relação entre a saúde e o meio ambiente; sobre os problemas a ser enfrentados e sobre os instrumentos científicos e práticos disponíveis para a ação;

  • declarar os princípios e proporcionar a informação necessária para formular e executar os aportes necessários em matéria de saúde como parte de estratégias locais, nacionais e internacionais para manter o meio ambiente saudável a médio e longo prazos;

  • identificar as necessidades prioritárias de maior conhecimento científico, técnico e programático - um temário para a pesquisa básica e aplicada.

  • Todos esses conceitos e proposições estão embasados na característica central de que como todos os seres vivos, os seres humanos dependem do meio ambiente que os rodeia para satisfazer suas necessidades de saúde e sobrevivência. Um exemplo marcante dessa dependência está no fato de que a redução das taxas de mortalidade infantil, assim como o aumento da expectativa de vida, podem ser explicados pela obtenção de melhores condições de vida nos países em desenvolvimento.


    Quando o meio ambiente já não satisfaz as necessidades humanas de alimentação, água e moradia de forma segura e suficiente devido ao uso inadequado de recursos, ou devido à sua distribuição, a saúde se ressente. Quando as pessoas se vêem expostas a agentes ambientais hostis, sejam microorganismos ou toxinas, a saúde também se ressente. Quando o meio ambiente deixa de satisfazer as necessidades básicas e ao mesmo tempo apresenta numerosos riscos para a humanidade, a saúde se ressente ainda mais.


    As interações da maioria das pessoas com o meio ambiente natural são condicionadas pelo meio ambiente social, responsável pelo controle do uso dos recursos, pela distribuição dos produtos e pela exposição a riscos, sendo também considerado o fator determinante do bem-estar humano. Nas últimas décadas, o meio ambiente social tem afetado cada vez mais o meio ambiente natural e sua capacidade de sustentar a vida humana. Isso se deve principalmente aos modelos de consumo que esgotam e contaminam os recursos ambientais e ao crescimento em número e em concentração, na área urbana, de pessoas aumentando a pressão sobre os recursos da bioesfera e impedindo que sejam ampliados os ambientes que promovem a saúde.


    O capítulo seis da Agenda 21 define cinco áreas prioritárias da proteção e promoção da saúde humana. Entre os fatores ambientais que afetam a saúde, podem ser citados:


  • Falta de abastecimento de água potável e saneamento e a qualidade da água degradada por contaminação ecológica, química e térmica - 80% de todas as enfermidades dos países em desenvolvimento devem-se à escassez de água potável (não contaminada) e de meios apropriados para a eliminação de excretas - que, aliados à falta de higiene, provocam doenças diarréicas (1.500 milhões de episódios/ano); tracoma e outras conjuntivites; a esquistossomose e a cólera. Atualmente, em torno de 90% de todas as águas residuais da América Latina não são tratadas.

  • Insuficiência de moradia e de infra-estrutura urbana adequada para 1/3 dos residentes dos países em desenvolvimento. A educação limitada, o desemprego, a falta de instalações sanitárias básicas e de outras formas mínimas de proteção à saúde levam os moradores a se exporem a organismos patogênicos, contaminantes, à violência e riscos de acidentes, à alienação e outras disfunções psicossociais.

  • A alimentação com sua distribuição, produção e armazenamento deficientes e a utilização em dietas inadequadas para milhões de pessoas, além das doenças transmitidas por alimentos contaminados, trazem sérios efeitos sobre a saúde, incluindo a desnutrição e as intoxicações.

  • A contaminação biológica, química e física do ar, do solo, dos alimentos e da água, incluindo os oceanos, dá lugar a muitos problemas de saúde.

  • As propostas da Agenda 21 neste capítulo seis focalizam o atendimento das necessidades básicas de saúde, especialmente nas zonas rurais; o controle de doenças transmissíveis, os problemas de saúde urbanos, a redução dos riscos provocados pela poluição ambiental e a proteção de grupos vulneráveis como de crianças, mulheres, povos nativos e os muito pobres. Educação, habitação e obras públicas de infra-estrutura devem fazer parte de uma estratégia global para alcançar a melhoria da qualidade de vida da população mediante o desenvolvimento de ações que contem com a participação da sociedade civil e a colaboração de outros organismos. Uma nova ideologia surge, tornando-se claro que a solução dos problemas ambientais está principalmente relacionada ao nível local. Isso foi reforçado pela estratégia da Organização Mundial da Saúde de pensar globalmente e agir localmente. A adoção do desenvolvimento sustentável baseada na ação ambiental primária tornou-se, então, imprescindível no mundo todo. Fundamentalmente, a atenção primária ambiental é "uma estratégia de ação ambiental preventiva e participativa que reconhece o direito das pessoas viverem em um meio ambiente saudável e de serem informadas sobre os riscos ambientais a que podem estar expostas, em relação à sua saúde e bem-estar. Chamando-as a participar, define responsabilidades e deveres na proteção, conservação e recuperação do ambiente e da saúde comunitários".


    A deterioração ambiental crescente das cidades, aliada à falta de políticas ambientais, às legislações inadequadas e à excessiva centralização das ações governamentais que não resolvem os problemas em nível local, justificam a adoção da estratégia de atenção primária ambiental.


    A atenção primária ambiental propõe o estabelecimento de uma gestão ambiental local, que inclua todos os atores locais e resulte em municípios e bairros saudáveis. Para isso, requer a formação de líderes, o fortalecimento do poder das comunidades organizadas e das instituições governamentais municipais.


    Toda iniciativa que busque aliar o desenvolvimento econômico e social à proteção ambiental deve necessariamente passar pela educação, comunicação, participação cidadã e pela justiça social. As ações socioambientais primárias estão associadas à contaminação dos ambientes de trabalho e domicílios, poluição sonora, qualidade e disponibilidade da água potável, controle de vetores transmissíveis de doença, manejo e reciclagem de resíduos sólidos, controle de qualidade de alimentos, erosão de solos, queimadas florestais, pragas, urbanização de ruas, entre outras.


    De acordo com a Cepal, o marco ético para um desenvolvimento adequado está na necessidade de que o mesmo ocorra como um processo participativo, eqüitativo e sustentável. Participativo, porque deve assegurar o concurso de todos em sua construção. Eqüitativo, porque seus benefícios devem universalizar-se em função das necessidades, e sustentável, porque não temos o direito de hipotecar o destino de futuras gerações.


    Por desenvolvimento se entende o processo de melhoria da qualidade da vida humana. A saúde e os meios para sua manutenção são essenciais para o desenvolvimento. A renda sozinha é considerada inadequada como indicadora do grau do desenvolvimento mas continua sendo muito utilizada, por ser mais fácil de medir do que outros aspectos do desenvolvimento. Há claras relações entre saúde e renda. Uma comparação dos indicadores de saúde com os indicadores econômicos mostra que os países nos quais os habitantes desfrutam de maior esperança de vida são também aqueles de maior renda per capita. Os países cuja renda per capita mais aumentou nos últimos 30 anos são também aqueles que mais melhoras apresentaram nos indicadores de saúde. Os países nos quais os níveis de saúde diminuíram são aqueles que sofreram recessão econômica nos anos 80. A renda per capita de um país, porém, é apenas um dos múltiplos fatores políticos, culturais, econômicos e sociais que influem na saúde das pessoas. Esses fatores incluem a riqueza da sociedade, o nível de educação de cada indivíduo, a distribuição de bens de consumo de uma sociedade, a qualidade das moradias e seu entorno, como também a qualidade da infra-estrutura e dos serviços de água, esgoto, limpeza pública, drenagem e serviços de saúde.


    Não se pode esquecer, porém, que com boas políticas de saúde certos países possuem esperança de vida superior à do que normalmente apresentam outros países com nível de renda per capita equivalente. As soluções corretas para a maior parte dos problemas de saúde e ambientais dependem de uma grande diversidade de ações desenvolvidas por um considerável número de pessoas trabalhando em diferentes setores e diferentes níveis, unidos pelo objetivo comum de melhorar a qualidade das condições de saúde e ambiente.


    Todas as pessoas são responsáveis pela manutenção de saúde adequada e pela melhoria do meio ambiente, entretanto, os governos são os principais responsáveis pela proteção e promoção da saúde dos indivíduos contra as ameaças à saúde e ao meio ambiente, garantindo que todas as pessoas tenham acesso à atenção, à saúde e a outros recursos essenciais.


    Verifica-se nitidamente o avanço dos conceitos e visões aqui apresentados nos níveis internacional, nacional, regional e local, demonstrando uma maior percepção por parte da sociedade, das inter-relações entre os diferentes setores e atividades associados à saúde.


    Esta percepção, no entanto, depende significativamente de um elemento chave para tornar-se cada vez mais realidade: a vontade política.


    Isto só ocorrerá na medida em que a sociedade souber expressar sua própria vontade na escolha dos seus dirigentes e ampliar sua participação na gestão pública, incorporando as diretrizes da sustentabilidade trazidas pela Agenda 21.


    *Arlindo Philippi Jr. e Maria Cecília Focesi Pelicioni são professores da Faculdade de Saúde Pública da USP


    O artigo foi retirado da edição de 7 a 13 de junho do jornal da USP.

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