Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Depois de alguma espera, a opção do governo de centralizar seus programas sociais foi concretizada na segunda-feira, 20 de outubro. Pelo menos em parte: sob a égide do recém-criado Programa de Transferência de Renda ficarão programas como o Bolsa-escola, o Bolsa-alimentação etc. Será criado um novo benefício, para onde convergirão todos os existentes – o Bolsa-família. Ao contrário do que se anunciara, a coordenação do programa unificado não mais ficará com o Ministério da Assistência e Promoção Social, mas sim com uma Secretaria criada especialmente. Tal órgão será integrado por um conselho gestor, do qual farão parte representantes dos Ministérios da Saúde, Educação, Assistência e Promoção Social, Trabalho, Fazenda e Segurança Alimentar. A nova Secretaria será comandada por Ana Fonseca, técnica especializada em programas de transferência de renda.
Os objetivos declarados dessa iniciativa não poderiam ser melhores: unificar todos os programas de transferência de renda em um só, concentrando todos os seus beneficiários e beneficiárias em um único cadastro, o que contribuiria para formar um diagnóstico mais preciso sobre a situação de pobreza em que vivem as famílias das classes mais baixas do país e, portanto, ajudaria também o governo a direcionar seus esforços para aquelas pessoas que de fato precisam de seu auxílio – financeiro ou de qualquer outra ordem.
No entanto, como toda teoria tem diferenças e nuances quando levada à prática, o mesmo pode acontecer com o Bolsa-família, especialmente quando se considera o tamanho e a abrangência do programa. Por um lado, o novo programa foi bem aceito entre as organizações da sociedade civil, que não deixam, no entanto, de apontar cuidados que devem ser tomados para que as metas não se percam ao longo do trajeto.
A junção de todos os indivíduos beneficiados por programas governamentais em cadastro único é uma antiga proposta de algumas ONGs e movimentos sociais, como a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida. O coordenador geral da entidade, Maurício de Andrade, defende já há algum tempo o cadastramento unificado das pessoas que sentem fome no país. Segundo ele, seria uma forma não só de o governo poder mapear melhor a situação, mas também de realizar com mais eficácia os programas de transferência de renda, como o bolsa-escola etc.
André Spitz, presidente do COEP Nacional, acredita que a opção do governo foi acertada. “Sem dúvida a unificação servirá para uma melhoria na atuação desses programas, que antes eram feitos isoladamente. Haverá uma visão mais geral guiando a transferência de renda, que antes era feita de modo fragmentado. Agora, será verdadeiramente um programa de transferência de renda. No Brasil, temos a tradição de pulverizar esforços. Com a mudança, pode-se fortalecer a concentração dos esforços. Acho que o Programa de Transferência de Renda veio para melhorar”, entusiasma-se Spitz.
André Urani, presidente do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (IETS), vê no novo programa unificado o aceno positivo de que os gastos públicos com a área social ficarão mais eficientes. “Essa era uma das propostas já levantadas pela sociedade civil. O próprio IETS já havia abordado essa unificação em seus policy papers [documentos que propõem linhas de ação política] produzidos no ano passado. Com certeza é um passo importante, porque melhora o gasto público. Um programa desses precisa de recursos, e isso só será possível com as reformas, que poderão levar ao desengessamento dos gastos públicos, redirecionando-os para os mais pobres, e não para as outras classes, como acontece no país do modo como está”, diz, alertando logo depois: “É preciso saber que esse programa não é suficiente para acabar com as desigualdades sociais”.
Jorge Eduardo Saavedra Durão, diretor geral da Associação Brasileira de ONGs (Abong) também acha que a unificação dos programas sociais do governo pode trazer mais eficiência para o uso dos recursos públicos, sendo este o principal mérito na nova Secretaria. “Acredito que a unificação dos programas sociais do governo possa assegurar maior eficiência, isto é, uma melhor utilização dos recursos públicos destinados aos programas de transferência de renda, fazendo com que a transferência de renda atinja as famílias realmente necessitadas. Para que este resultado seja potencializado, concordo com a importância de que governos estaduais e municípios nele se engajem, superando os particularismos políticos”, diz. Entretanto, alerta que é importante entender e definir apropriadamente o que se espera do programa. “Quanto à eficácia, no meu entendimento, esta requer que os resultados esperados sejam prévia e claramente explicitados. Se o resultado esperado se resume em assegurar uma renda mínima às famílias beneficiárias, então pode-se falar também de maior eficácia do Bolsa-família. No entanto não concordo com as opiniões segundo as quais esse tipo de programa contribui para reduzir as desigualdades”.
Esta, aliás, é uma das principais críticas que a unificação de programas recebe. Apesar de ser abrangente e de exigir uma contrapartida dos beneficiários, o Bolsa-família continua sendo uma iniciativa de transferência de renda. Analisando de maneira fria, somente repassa dinheiro (o que alivia no curto prazo as desigualdades), ao invés de atuar nas causas, nas estruturas que constroem esse quadro de discrepância de renda e condições em que vivem as camadas mais carentes, colocando o Brasil no lamentável 65º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Assim, a grande vantagem do Programa de Transferência de Renda é qualificar os gastos, direcionando-os para as pessoas que verdadeiramente precisam da ajuda governamental. Porém o novo programa tem pouca – ou nenhuma – influência nas origens da pobreza e da desigualdade.
Como comenta Durão, “não há dúvida de que o programa, ao reduzir as privações a que estão submetidas essas famílias, tem um valor intrínseco. Na melhor das hipóteses, ele alivia as conseqüências da desigualdade, a qual, no essencial, se reproduz”, resume. Segundo o diretor da Abong, a redução das desigualdades exige mudanças no modelo econômico, a adoção de padrões de produção e consumo sustentáveis e uma drástica redistribuição de renda e de patrimônio (por exemplo, através de uma reforma agrária massiva e de qualidade).
Já para Urani, o programa, de certo modo, tanto alivia as conseqüências imediatas da miséria (atuando no curto prazo), quanto tenta trabalhar a causa, ao exigir a contrapartida dos beneficiários (agindo, portanto, no médio e longo prazo). Na sua opinião, o grande erro está em estender o programa, como acontecia com o Bolsa-escola, só até os 14 anos dos meninos e meninas cujas famílias são beneficiadas. “Por causa da falta de orçamento, o desenho da iniciativa vai só até os 14 anos dos beneficiários. Isso é um absurdo, pois são justamente os jovens que mais têm sofrido, com problemas como desemprego, falta de qualificação e escolaridade etc.” O presidente do IETS lembra que esta “falta de coerência” – como classifica – em vez de incentivar a preparação e a instrução dos jovens, estimula-os a entrar no mercado de trabalho despreparados e transformados em mão-de-obra barata. “Desse modo, a unificação fica incompleta; deveria ir além e incorporar essa faixa etária”.
O presidente do COEP defende que não existe comprovação de que as críticas sobre a ineficácia do programa quanto à diminuição das desigualdades sociais, porém é algo a ser devidamente estudado. Segundo Spitz, “quando se ativa uma economia local, ou cria-se uma nova economia, aquele ambiente pode vir a se desenvolver de outras maneiras, permitindo a melhoria das condições de vida das comunidades”, diz. “Mas não saberia dizer qual o efeito disso. Trata-se de uma nova dinâmica econômica dentro da comunidade, cujos benefícios não podem ser medidos antes. Temos apenas que considerar a possibilidade”, afirma.
Outra dúvida comum sobre a unificação dos programas é se, ao se integrarem as diversas áreas a serem atendidas em uma única iniciativa, pode-se perder o foco das particularidades de cada uma. Durão acredita que isso não vá acontecer, pois “o foco será dado pela correta identificação da população-alvo (com o seu adequado cadastramento) e pela combinação dos benefícios dos distintos programas. Segundo os coordenadores do programa, a idéia é concentrar outros programas setoriais nas mesmas famílias cadastradas no Bolsa-Família, estimulando a inserção produtiva delas. Se isto funcionar na escala anunciada pelo governo, pode vir a ter um grande impacto”. Spitz tem opinião parecida: “Esta desvirtuação vai depender da implementação prática. Imagino que isso vá ser objeto de uma articulação interministerial, com cada ministério se preocupando e tomando cuidado para que a sua área seja devidamente cuidada”, afirma.
O ponto levantado por Spitz é, aliás, outro alerta que os representantes da sociedade civil organizada fazem. Para todos os entrevistados, é necessário haver sempre o monitoramento de qualquer programa de transferência de renda, especialmente do Bolsa-família. Primeiro para acompanhar se a iniciativa está cumprindo seu objetivo de chegar realmente aos pobres do país, melhorando a aplicação e a saúde dos gastos públicos. Segundo, para avaliar se há necessidade de modificar, adaptar, ampliar ou restringir o programa, verificando constantemente a premência de um redesenho da iniciativa do governo. Como resume André Urani, os técnicos do governo precisam estar atentos e cientes de que um programa como esse precisa de “monitoramento, avaliação e redesenho permanentes, para garantir a transparência nas contas e, mais do que qualquer outra coisa, verificar a eficácia e a função da iniciativa”.
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