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Acordos comerciais na balança

Autor original: Fausto Rêgo

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“O que nós queremos é a retomada das negociações naqueles temas que são os prioritários para os países em desenvolvimento. Trata-se principalmente de enfrentar a questão de subsídios e do dumping. Ou, por exemplo, não obrigar os países a abrirem uma negociação sobre investimento, que é uma pauta que interessa aos países ricos e, para nós, não é prioridade”. Assim Kátia Maia, coordenadora de Campanhas da Oxfam no Brasil, explica o que pretende a entidade com o chamado feito recentemente aos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) para que retomem o diálogo sobre a abertura comercial interrompido na reunião de Cancún, em setembro.

Em comunicado divulgado no dia 20 de outubro, em Genebra, Suíça, a Oxfam lamentou que os países desenvolvidos ainda não tenham sido capazes de cumprir os compromissos assumidos na Declaração de Doha – documento produzido ao final de 4ª Conferência Ministerial da OMC, em 2001, com uma agenda de 21 itens considerados fundamentais, bem como questões sobre aplicação de acordos comerciais.

Ao convocar os governos à busca de um novo entendimento, a Oxfam pretende também atuar em um processo paralelo: o da criação da Área de Livre Comércio das Américas. Nos dias 16 a 21 de novembro, em Miami, será realizada uma nova reunião ministerial da Alca e os resultados desse encontro podem levar os Estados Unidos a abandonarem as negociações no âmbito da OMC, desde que a agenda regional lhes seja favorável. “O que nos preocupa efetivamente”, diz Kátia, “é que as propostas que vêm sendo apresentadas na Alca vão além da OMC e interferem fortemente na capacidade dos países de tomarem decisões sobre suas políticas de desenvolvimento”.

Nesta entrevista, ela conta como está sendo feito o acompanhamento de todo esse processo e fala sobre a preocupação com o esvaziamento do papel da OMC em contraponto às negociações bilaterais ou regionais. “O espaço multilateral é o espaço privilegiado, dentro da realidade que temos hoje. Somente no espaço multilateral pode-se conseguir equilibrar minimamente as forças”.


Rets -
O comunicado divulgado pela Oxfam abre a possibilidade de que essa iniciativa se amplie para uma campanha?

Kátia Maia - Na realidade, essa iniciativa já é parte da nossa estratégia de campanha. A Oxfam tem a campanha Comércio com Justiça e, como parte dela, nós participamos ativamente das negociações em Cancún [de 10 a 14 de setembro, a cidade mexicana sediou a 5ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio, que terminou em impasse, sem acordo entre os países-membros]. A nossa avaliação é de que a paralisação das negociações prejudica os países em desenvolvimento e os países menos desenvolvidos. A nossa chamada é na estratégia de buscar regras para que o comércio funcione a favor dos países em desenvolvimento. A nossa chamada é para que os países da União Européia e os Estados Unidos voltem à mesa de negociações e cumpram os compromissos que estão sendo colocados, no sentido de contribuírem para o desenvolvimento dos outros países, tratando os temas que têm que ser tratados dentro da OMC, como a questão dos subsídios e dumping, por exemplo.


Rets -
Já tiveram algum tipo de resposta ou posicionamento depois desse comunicado?

Kátia Maia - O comunicado é uma estratégia de mobilização, de colocar o tema na mídia e de pressionar as delegações que estão em Genebra – a Oxfam tem um escritório lá – para que retomem as negociações. Há um dado importante, que é a relação das negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) com as negociações da OMC. A nossa avaliação é que, como os EUA são um ator que está se retirando mais do espaço multilateral e apostando no espaço bilateral e regional, isso, para nós, é ruim para os países que estão negociando com os EUA. Se as negociações de Miami sobre a Alca, que vão acontecer em breve, avançarem na agenda que interessa aos Estados Unidos, dificilmente eles vão retomar as negociações dentro da OMC. Então esse processo é um processo paralelo e a gente tem que analisar e atuar nos dois espaços simultaneamente.


Rets -
E de que forma a Oxfam está acompanhando essa questão? A formação da Alca está prevista para 2005 e os países desenvolvidos não parecem interessados em abrir mão dos subsídios agrícolas.

Kátia Maia - A Oxfam, dentro da campanha global Comércio com Justiça, tem uma análise muito específica da América Latina e do Caribe. E nesse contexto regional, a Oxfam tem uma posição contrária à Alca. Em janeiro deste ano, nós lançamos um documento no Fórum Social Mundial, que ocorreu em Porto Alegre, dando três razões básicas pelas quais somos contra a Alca [veja em “Comércio com Justiça para as Américas”, na área de links, ao lado]. Então, para nós, as negociações que estão acontecendo na Alca não são negociações que vão beneficiar os países da região. Não somente porque o enfrentamento das questões de fundo – no que se refere à agricultura, por exemplo – não vai ser aceito pelos EUA. A posição desse país é muito clara contra qualquer abertura no que se refere à agricultura. Mas o que nos preocupa efetivamente é que as propostas que vêm sendo apresentadas na Alca vão além da OMC e interferem fortemente na capacidade dos países de tomarem decisões sobre suas políticas de desenvolvimento. São propostas em função dos interesses das empresas transnacionais. Então nossa posição é contrária à Alca e temos atuado junto a diversos parceiros e aliados nas diferentes iniciativas que existem no enfrentamento da Alca.


Rets -
Qual tem sido, até aqui, a receptividade ao chamado para a retomada das negociações na OMC? O governo brasileiro, que teve um papel particularmente importante no grupo dos países em desenvolvimento, durante a reunião ministerial de Cancún, já se manifestou?

Kátia Maia - Na verdade, os países em desenvolvimento, os próprios governos, estão interessados na retomada das negociações. E, obviamente, não somente o Brasil, mas os outros países do G-20 [grupo formado pelos países em desenvolvimento], que também são estratégicos, estão interessados, pois eles estavam avançando em uma contra-proposta ao que tinha sido apresentado por EUA e União Européia. Então, de uma certa forma, a gente pode dizer que o chamado da Oxfam foi muito bem recebido pelas missões dos países em desenvolvimento na sede da OMC, em Genebra.


Rets -
Que ações concretas a Oxfam propõe para que o acordo de Doha finalmente saia do papel?

Kátia Maia - Vou separar a resposta em duas partes. Primeiro no que se refere à Declaração de Doha sobre propriedade intelectual e saúde pública, que foi a grande Declaração de Doha, a principal vitória de Doha, que trata do acesso a medicamentos e tudo isso. A OMC, antes da reunião de Cancun, em setembro, conseguiu fechar o acordo sobre a Declaração de Doha. Um acordo para regulamentação de um parágrafo específico, que trata da possibilidade de os países utilizarem um mecanismo chamado licença compulsória para terem acesso a medicamentos mais baratos. Então, nesse momento, a Oxfam emitiu uma declaração, criticando o acordo que foi feito, pois ele dificulta muito o acesso para os países em desenvolvimento, principalmente as nações pequenas, e especialmente porque a questão de fundo da propriedade intelectual – que é o patenteamento por 20 anos das novas drogas – não é tocada por esse acordo.

Então, no que se refere a propriedade intelectual e medicamentos, a OMC precisa avançar nas negociações para que efetivamente se consiga ter acesso aos medicamentos. Isso significa baixar o patenteamento de uma nova droga por 20 anos, que é o que se tem hoje. Se se descobre uma nova droga e a patente é mantida por duas décadas, estamos falando de vidas de milhões de pessoas, considerando o processo do avanço da medicina. Isso é absurdo. Medicamento não pode, definitivamente, ser tratado como um produto qualquer.

Por outro lado, a rodada de Doha convocou os países-membros da OMC a uma negociação para o desenvolvimento. E isso não aconteceu. O fracasso de Cancún é o exemplo disso, porque não se entrou naqueles temas que interessam aos países em desenvolvimento. Doha foi um momento em que apresentou uma agenda boa, positiva, que não se concretizou. O que nós queremos é a retomada das negociações naqueles temas que são os prioritários para os países em desenvolvimento. Trata-se principalmente de enfrentar a questão de subsídios e do dumping. Ou, por exemplo, não obrigar os países a abrirem uma negociação sobre investimento, que é uma pauta que interessa aos países ricos e, para nós, não é prioridade. Assim, os países têm que retomar a agenda, mas aquela em benefício dos países em desenvolvimento.


Rets -
O fracasso da OMC em obter um acordo satisfatório em Cancún pode pôr em risco a própria OMC?

Kátia Maia - Esse é um tema que está em discussão. A baixa capacidade da OMC de atender aos interesses dos países em desenvolvimento e o seu esvaziamento pelos países ricos como espaço multilateral para discussão sobre regras de comércio é, sem dúvida, um problema. Há muita discussão sobre a própria forma de funcionamento da OMC. Existem propostas para a reestruturação da entidade, da forma de votação – que atualmente é toda por consenso. O sistema está sob discussão. Agora, a Oxfam vê isso com muita preocupação, porque para nós o espaço multilateral é o espaço privilegiado, neste momento, dentro da realidade que temos hoje. Somente no espaço multilateral pode-se conseguir equilibrar minimamente as forças. As negociações bilaterais e regionais são muito mais assimétricas. Por exemplo: dá para imaginar um acordo bilateral entre EUA e Burkina Faso? O que vai dizer Burkina Faso em um acordo bilateral? Nada. Vai acontecer o que os EUA quiserem.

Mesmo no caso da Alca, a imposição de uma agenda estadunidense no acordo regional está óbvia. São 34 países: 33 querem discutir agricultura; somente um não quer. São os EUA, e são eles que estão paralisando as negociações. Então, nesses espaços regionais, temos mais dificuldade de alianças, enfrentamento e ajuntamento de forças dos países em desenvolvimento. Porque toda a estratégia dos EUA para romper o Mercosul, para enfraquecer a comunidade andina nas negociações da Alca, foi absolutamente agressiva. Mas no espaço multilateral você consegue visualizar o surgimento de um G20, o surgimento de uma articulação dos países africanos. Quem paralisou a reunião da OMC em Cancún foram os africanos, que disseram: “não aceitamos negociar investimento, e tchau!”. Esse espaço multilateral permite as alianças dos países em desenvolvimento e o maior enfrentamento desses países junto às nações ricas. Por isso o espaço multilateral é extremamente importante, e a gente vê, lamentavelmente, esse desmonte que tem sido feito dos espaços multilaterais no âmbito internacional. Então, se a OMC não consegue servir aos seus membros, ela vai ficando desgastada.

Maria Eduarda Mattar e Fausto Rêgo

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