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“Se você não respeita os direitos humanos dos culpados, acaba violando os dos inocentes”

Autor original: Fausto Rêgo

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Foto: `Se você não respeita os direitos humanos dos culpados, acaba violando os dos inocentes´


Primeira mulher, muçulmana e asiática – de Bangladesh – a ocupar o posto de secretária-geral da Anistia Internacional, Irene Khan chegou ao Brasil no dia 7 de novembro, para uma visita de oito dias. No roteiro, passagens por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Em pauta, algumas preocupações fundamentais: divulgar uma recém-lançada campanha pelo controle de armas de pequeno porte, conquistar a adesão do governo brasileiro à iniciativa e ouvir o que população e autoridades tinham a dizer sobre violações aos direitos humanos no país.

No dia 11, em sua rápida escala carioca, ela visitou o Morro do Borel, na Tijuca, cenário de um caso de repercussão internacional: em abril, quatro homens foram torturados e mortos durante uma operação policial, acusados de fazerem parte de uma quadrilha de traficantes. O crime revoltou a comunidade e chamou a atenção do então secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares; do secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e da própria Anistia Internacional, que tem cobrado a punição dos responsáveis. Cinco policiais foram indiciados.

Após a visita ao Borel, Irene Khan almoçou com a governadora do Rio de Janeiro, Rosinha Matheus; com o secretário estadual de Segurança Pública, Anthony Garotinho, e com o secretário estadual de Direitos Humanos, coronel Jorge da Silva. Encerrando sua agenda carioca, dirigiu-se à carceragem da Polinter (Divisão de Capturas e Polícia Interestadual), onde ficou impressionada com a superlotação – “é uma espécie de depósito de gente pobre das favelas. As pessoas são trancafiadas para permanecerem longe dos olhos da sociedade”, indignou-se.

No aeroporto, momentos antes do embarque para Brasília, quando tentaria uma audiência – incerta até aquele momento – com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Irene Khan atendeu rapidamente a reportagem da Rets. Falou sobre violações aos direitos humanos no Rio e no Brasil e adiantou sua expectativa de uma boa receptividade do governo brasileiro às propostas da Anistia Internacional. No dia seguinte, foi recebida pelo presidente, que, ao final do encontro, anunciou: o Brasil será parceiro da organização na campanha pelo controle do comércio de armas de pequeno porte na América do Sul.

Rets – A senhora esteve hoje no Morro do Borel e na Polinter. Quais foram suas impressões e de que forma a Anistia Internacional está acompanhando as situações de violação aos direitos humanos no Brasil?

Irene Khan – Pela manhã fomos ao Borel e conversamos com a comunidade. Tivemos contato com membros das famílias dos homens assassinados em abril [veja mais informações no link “Vidas interrompidas”, ao lado] e fui levada ao local onde eles foram mortos. À tarde estivemos na carceragem da Polinter e visitamos as celas. A primeira coisa me que impressionou foi que a Polinter é uma espécie de depósito de gente pobre das favelas. As pessoas são trancafiadas para permanecerem longe dos olhos da sociedade carioca. Parece-me que, se você é pobre no Rio de Janeiro e mora em uma favela, então ou vive na favela, ou morre, ou acaba em um centro de detenção.

Nesta manhã, no Borel, ouvi sobre quatro homens que haviam saído para cortar seus cabelos e acabaram baleados pela polícia. Esses homens foram acusados pelos policiais de serem membros de uma quadrilha de traficantes. Ou seja: os mortos já eram considerados culpados antecipadamente. E a comunidade teve de travar uma dura batalha para reunir provas de sua inocência. As vítimas poderiam ter sido facilmente detidas e levadas até a delegacia. Mas o que aconteceu?

Parece bastante claro que, quando você é pobre, está sujeito a um tratamento arbitrário. Toda a comunidade acaba sendo rotulada como criminosa. Se você é rico, a polícia é diferente, garante prevenção e proteção. Se é pobre, porém, o que recebe é violação e repressão. Isso é um problema do sistema de segurança pública no Brasil, pois a ênfase está em “jogar duro” contra o crime e não em enfrentar o crime mantendo o respeito aos direitos humanos tanto de inocentes quanto de culpados. Se você não respeita os direitos humanos dos culpados, acaba, com freqüência, violando os direitos humanos dos inocentes. E é isso o que acontece, foi isso o que vi na manhã de hoje, na favela.


Rets
– Mas é a primeira vez que a senhora vem ao Brasil, não?

Irene Khan – Sim, é minha primeira visita, mas essas impressões são confirmadas por diversos estudos e pesquisas que a Anistia Internacional tem desenvolvido no Brasil há anos, com foco em tortura, condições de penitenciárias, crimes, grupos de extermínio e comportamento policial. O presidente Lula, em 1981, logo após sua condenação por um tribunal militar, foi “adotado” pela Anistia Internacional como preso político. Temos uma atuação histórica no Brasil e compreendemos que as questões que envolvem crime e violência, aqui, são muito complexas e difíceis, mas também estamos preocupadas com a maneira como elas têm sido tratadas, com uma repressão muito forte ao crime, mas sem medir as conseqüências sociais do desrespeito aos direitos humanos.


Rets
– Já existe alguma posição oficial do governo brasileiro a respeito dessas denúncias da Anistia Internacional?

Irene Khan – Bem, será a primeira vez que estaremos em contato com o novo governo federal nesse nível, para expressar nossas preocupações sobre o modelo de segurança pública. Gostaríamos muito de ter a oportunidade de discutir com o presidente Lula e seus ministros como o Brasil poderia desempenhar um papel importante na defesa dos direitos humanos em âmbito internacional. O Brasil tem colocado a questão dos direitos humanos na agenda nacional e o presidente Lula certamente tem total credibilidade para apoiar a causa dos direitos humanos, por seu histórico de vida e de apoio aos movimentos sociais. Acreditamos que ele possa ter uma participação importante no cenário internacional, na defesa dos direitos humanos. Mas, naturalmente, para que isso aconteça, é preciso que a questão dos direitos humanos esteja também em primeiro plano na agenda nacional. Vemos de forma positiva que o presidente tem dado destaque aos direitos econômicos e sociais. Ao mesmo tempo, porém, está muito claro para mim que, pelo que pude ver em São Paulo e no Rio, uma abordagem abrangente do problema da segurança inclui tanto a justiça social quando a justiça legal.


Rets
– A senhora chegou a conversar com os presos?

Irene Khan – Sim, falamos com alguns. As condições eram terríveis. Em uma das celas, por exemplo, havia 78 pessoas, não havia espaço suficiente sequer para as pessoas se deitarem e dormirem, por isso eles se revezavam. E o próprio delegado me disse que aquela carceragem era uma das melhores.


Rets
– A senhora também esteve com a governadora do estado. O que ela disse sobre isso?

Irene Khan – Estivemos com a governadora, com o secretário de Segurança Pública e o novo secretário de Direitos Humanos. Eu lhes contei que havia estado no Borel. Conversamos sobre a situação lá, sobre o episódio dos crimes e tanto a governadora quanto o secretário de Segurança reconheceram que existe um problema, que ocorre tortura e há grupos de extermínio formados por policiais. O secretário de Segurança Pública mostrou os planos para a segurança que desenvolveu no ano 2000, falou sobre a criação de novas delegacias. Mas, claramente, o que o governo diz que pretende fazer é muito diferente do que se pode ver na prática, há uma grande diferença. Isso mostra que deve haver muito mais investimento e comprometimento político com uma reforma da polícia e do sistema penitenciário, com uma investigação independente. As investigações são levadas adiante apenas em poucos casos. Mesmo em casos como o do Borel, que teve grande repercussão, não há continuidade depois de alguns meses. E é claro que as investigações deveriam prosseguir.


Rets
– O que a Anistia Internacional pretende do governo brasileiro?

Irene Khan – Bem, hoje mesmo [na terça, dia 11], com o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, também discutimos sobre um plano federal e único de segurança. Isso é algo que gostaríamos de conversar com o governo federal, pois creio que eles precisarão dar prioridade para isso, e espero que dêem prioridade. Porque direitos humanos são algo abrangente. Envolvem direitos econômicos, sociais e pessoais, mas também direitos civis e políticos. O governo federal tem levado isso bastante em consideração em questões como saúde pública e programas sociais contra a fome, o que é muito positivo. Também gostaríamos de dar ênfase à segurança pública, pois os pobres são a maioria das vítimas das falhas da política de segurança.


Rets
– A senhora também veio ao Brasil para divulgar a campanha “Control Arms”. Qual poderá ser a contribuição brasileira?

Irene Khan – Essa é uma campanha lançada pela Anistia Internacional, pela Oxfam e pela Iansa [International Action Network on Small Arms, Rede Internacional de Ação contra Armas de Pequeno Porte] em 9 de outubro, em três níveis. Em nível global, estamos propondo um tratado internacional sobre comércio de armas, com o objetivo de controlar o uso de armas de pequeno porte, pois essas são as verdadeiras armas de destruição em massa. Elas matam, anualmente, mais de meio milhão de pessoas. O Brasil tem o maior índice de mortes violentas, segundo a Organização Mundial de Saúde. E 70% das mortes decorrem do uso de armas.

Em nível nacional, gostaríamos que o governo federal assumisse uma responsabilidade maior no controle do uso de armas – por meio de legislação adequada e uma nova política de ação. E nos níveis local e comunitário gostaríamos de estimular projetos que envolvam as comunidades na criação de zonas sem armas.

No Brasil, o que estamos tentando fazer é encorajar o governo brasileiro a tomar a frente desse tratado internacional sobre comércio de armas, já que em nível doméstico o governo vem defendendo o desarmamento, acaba de ser aprovado o Estatuto do Desarmamento e o governo federal fala na possibilidade de realização de um referendo sobre o tema no próximo ano. E há um enorme interesse popular pelo controle de armas. Nós acreditamos, portanto, que o Brasil seria um excelente parceiro em um tratado internacional sobre comércio de armas, já que poderia liderar o movimento tanto em âmbito nacional quanto no exterior.

Fausto Rêgo

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