Autor original: Mariana Abreu
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Cumplicidade e integração: para Américo Lacerda, um dos fundadores e atual presidente do Serviço de Educação e Organização Popular (SEOP), estas são as características que melhor definem o trabalho da entidade. Criado em 1989 para ajudar as duas mil famílias de Petrópolis (região serrana do Rio de Janeiro) desabrigadas por causa de fortes chuvas, o SEOP sempre se norteou por dois princípios: o atendimento às necessidades imediatas da população de baixa renda e a atuação política de organização dessas pessoas, para provocar mudanças estruturais na sociedade que produz a exclusão social.
Tudo começou com a distribuição de sopa em postos montados na cidade. Logo a aglomeração de crianças motivou a criação de centros de educação infantil e, pouco a pouco, o trabalho se ramificou em diversos projetos. Hoje o SEOP atua também na cidade vizinha de Teresópolis e em municípios da Baixada Fluminense, com iniciativas voltadas para educação infantil, meio ambiente, organização popular e microcrédito. Entre as iniciativas há creches, centros de assistência social, cursos de artesanato e formação de lideranças e até um programa de TV.
Américo logo destaca os projetos de educação infantil, porque conseguem integrar o trabalho e a comunidade. Nas sete creches, que atendem crianças de até seis anos, com exceção da coordenação, todos os cargos são ocupados por moradores capacitados pelo SEOP. "Isso gera grande cumplicidade das pessoas com o projeto. Não é mero serviço. A comunidade assume seu poder coletivo. Tudo é discutido com eles: desde como tratar as crianças até como desenvolver atividades", explica o presidente.
Um grande diferencial é a proposta pedagógica do SEOP, que utiliza conceitos do educador Paulo Freire e do construtivismo [corrente teórica que pretende levar o aluno a refletir sobre suas experiências, de forma a construir o próprio conhecimento], procurando valorizar as crianças como sujeitos. O resultado logo aparece quando, aos seis anos, elas são encaminhadas para as escolas públicas e costumam, segundo Américo, se destacar nas salas de aula. E o trabalho não pára por aí. A organização continua acompanhando o desenvolvimento das crianças. Não se trata de reforço escolar. Américo explica que as atividades culturais, esportivas e artísticas têm o objetivo de estimular o desenvolvimento do espírito crítico das crianças, não o de assumir tarefas da escola.
Ecologia também é renda
Outro projeto destacado por Américo são as Estações de Tratamento de Efluentes Domésticos. O processo de tratamento é todo orgânico, sem utilizar qualquer produto químico. Embora hoje uma estação não custe mais de R$ 10 mil, na época da construção, 1998, foi preciso pagar caro pela nova tecnologia: cerca de 90 mil dólares. Mesmo assim, o SEOP entendeu que valia a pena. Além de ser ecológico, esse tipo de estação traz diversos benefícios, como a possibilidade de geração de renda para as próprias comunidades.
Foram construídas duas estações em comunidades de Petrópolis. Uma em Vila de São Francisco, que atende cerca de 130 casas e já foi entregue à gestão dos moradores, capacitados para a manutenção. A segunda em Sertão de Carangola, comunidade formada pelo assentamento das famílias desabrigadas pela chuva, que estimulou a criação do SEOP. Lá, a rede de esgoto construída pelo projeto atende em torno de 80 casas.
Cada etapa do processo de purificação é aproveitada para algum tipo de produção e se torna, de certa forma, um subprojeto. O material passa primeiro pelo biodigestor, onde se transforma em gás natural, usado para alimentar o fogão de uma das creches do SEOP.
Em seguida, há os tanques de purificação, que formam uma espécie de cadeia produtiva. No primeiro, as algas que absorvem as bactérias da água servem de alimento para a criação de patos. O pouco que resta de dejetos e bactérias é comido pelos peixes criados no tanque seguinte. Por último, plantas aquáticas finalizam a purificação e, removidas a cada quinze dias, servem de adubo para a horta cultivada no local.
A água resultante é igual à da Cedae [companhia de abastecimento do estado do Rio] e tudo vira renda: o gás economiza energia; patos, peixes e a produção da horta são comercializadas na própria comunidade.
O tempo da terra
Além disso, nove jovens entre 14 e 16 anos trabalham na manutenção da estação, nas criações e no cultivo da horta. Lá, conta a educadora ambiental Maria da Paz Oliveira, eles recebem treinamento, bolsa de R$ 120, praticam esportes e têm acompanhamento escolar. Como a procura é muito maior do que a demanda da estação, há uma seleção de acordo com a necessidade e o interesse de cada um. Todos precisam estar na escola, por isso, após um ano na estação, chega a hora de ceder o lugar a outro.
Maria da Paz conta que, ao ingressarem no projeto, os adolescentes se transformam rapidamente. Tornam-se mais educados e a agitação típica da idade dá lugar à calma. "É como se, ao lidar diretamente com a natureza, eles passassem a seguir o tempo da terra", avalia a educadora.
Devanice Atanásio, voluntária na estação e mãe de dois adolescentes no projeto, endossa. Ela conta que os meninos ficam mais responsáveis e levam tudo que aprendem aos irmãos e colegas de escola. O rendimento escolar de todos também melhorou muito. "Antes eles tiravam muita nota baixa, até 1,5. Hoje ninguém tira menos de 6", conta, entusiasmada.
O sucesso do projeto despertou curiosidade e a estação passou a ser visitada por escolas da região, pesquisadores e pessoas interessadas no método, principalmente estrangeiros. O ingresso, um quilo de alimento, vai para as creches e famílias atendidas pela organização. O movimento deu origem a novas idéias. O SEOP vai capacitar os jovens para monitorar e guiar os grupos e ainda pretende criar um refeitório onde serão servidos pratos feitos com a produção local. O objetivo é que no final do ano que vem eles estejam prontos para assumir totalmente a gestão da estação.
Com tudo isso, a rejeição inicial da comunidade à idéia de lidar com esgoto deu lugar ao orgulho e ao reconhecimento dos benefícios conquistados. Um bom exemplo é o que conta Devanice: "Antes diziam que a gente molhava as plantas com água de cocô. Hoje vendemos tudo, não sobra um pé de alface". E para quem ainda lhe pergunta por que trabalhar sem ganhar nada, Devanice traz na ponta da língua a resposta: "Digo que ganho coisas muito mais valiosas. Todo dia a gente ensina e aprende um pouco mais".
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