Você está aqui

Favelas: proliferam os preconceitos onde não habita o orgulho

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Foto: Favelas: proliferam os preconceitos onde não habita o orgulho


Assim como as favelas, os dados se multiplicam: no início de outubro, as Nações Unidas lançaram um estudo sobre o crescimento do número de pessoas que moram em áreas favelizadas. Há poucos dias, em 12 de novembro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou uma pesquisa sobre informações municipais em que o crescimento das favelas é o principal ponto divulgado. As taxas, estatísticas e porcentagens vêm apenas confirmar aquilo que se vê diariamente, em especial nas grandes cidades: as favelas são cada vez mais comuns e cada vez mais gente mora nesses lugares.

O levantamento da ONU dá conta de que, até 2030, o número de pessoas vivendo em favelas no mundo todo vai dobrar e baterá a casa de dois bilhões de indivíduos. As causas apontadas são as mais óbvias: urbanização acelerada e o aumento da pobreza. "É uma bomba-relógio", definiu o diretor de Análises de Políticas do Habitat (órgão da ONU que trata de habitação), Naison Mutizwa-Mangiza, na ocasião em que o levantamento foi divulgado. Já o estudo do IBGE – a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) 2001 – revela que 70% das favelas estão nos 32 maiores municípios (com mais de 500 mil habitantes) do país. No total, 2.362.708 domicílios estão em áreas favelizadas no país todo – e estes são apenas os cadastrados pelas prefeituras.

Isso quer dizer que são mais de dois milhões de casas instaladas, na sua maioria, de forma inadequada e em áreas não raro desprovidas de serviços públicos básicos. Mais do que esse esquecimento do Estado, as pessoas que moram em favelas enfrentam problemas mais sutis e mais danosos ao exercício da cidadania: o preconceito – amplo e generalizado –, a baixa auto-estima e, muitas vezes, a vergonha de morar onde moram. É o que percebe, por exemplo, José Júnior, coordenador executivo do Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR), que há dez anos atua em favelas da cidade do Rio de Janeiro. "Eu via isso muito claramente na década de 80, quando procurava emprego. As pessoas mentiam o lugar onde moravam, com medo de discriminação. Isso ainda acontece – e muito – em função do medo de situações como a que ocorreu outro dia, com um rapaz que a gente conhece: ele fez uma entrevista de emprego. Tudo corria bem, até que a pessoa lhe perguntou onde ele morava. O comentário, quando ele respondeu, foi 'eu não trabalho com favelado'. Quer dizer, muita gente – de dentro ou de fora das favelas – ainda tem este preconceito".

O pesquisador e escritor Paulo Lins, incisivo, afirma que "as pessoas que moram na periferia não têm acesso a nada. Ninguém quer papo com favelado. E a exclusão social acontece com muita naturalidade. Se você pega a população das favelas, 80% das pessoas que moram ali estão excluídas, mas não estão na criminalidade. E a favela, para muitas pessoas, é uma espécie de prisão, elas não conseguem sair dali".

Justamente para reverter este problema e esta vontade de "sair dali" a que se refere o autor de "Cidade de Deus", Jaílson Souza, coordenador do Observatório Social de Favelas, propõe a "valorização da positividade", do que existe de bom e exemplar nas favelas. "Romper com o estigma é fundamental. O preconceito é equivocado. Muitas favelas têm todos os serviços – água, luz etc. – e, mesmo assim, são representadas por aquilo que não teriam, como, por exemplo, na expressão 'comunidades carentes'. Ou seja, precisamos parar de falar sobre aquilo que as comunidades supostamente não têm, para falar daquilo que é bom, que deve ser estimulado e cuidado".

Ele lembra também que o estigma da violência é outro forte fator de preconceito com relação a quem mora em uma favela. "Isso é um erro. A população não pode ser tratada como potencialmente criminosa. Mas, infelizmente, é o que acontece. A Maré, por exemplo, tem 132 mil habitantes. Se 10% dessas pessoas saíssem todo dia de casa para assaltar, roubar, seqüestrar etc., imagine o caos que seria! Só de lá seriam 13.200 pessoas saindo com essa intenção. Quer dizer, na realidade são muito poucos aqueles que de fato estão envolvidos com o crime, mas o estigma atinge a todos. As intervenções do poder público nos bairros são para promover o exercício da cidadania. Nas favelas, para combater a violência. Essas são as justificativas que a gente escuta, revestidas de preconceito de todos os lados", afirma. "A gente pensa que tem muito crime no Brasil, mas não sabe nem a metade, ainda mais 'do colarinho branco'. A violência que acontece na periferia é muito pouca em relação ao que acontece no Brasil", defende Paulo Lins.

Injustificados ou não, preconceitos e estigmas existem. O próprio relatório da ONU, intitulado "O Desafio das Favelas", afirma que esse tipo de urbanização propiciou que os moradores de favelas e cortiços fossem freqüentemente vistos como sujos, marginais e problemáticos. E justamente essas pessoas que acabam atingidas diariamente – as que chegam a mentir o local onde moram, como exemplificou Júnior – são aquelas que têm o papel principal na conscientização sobre a importância de se valorizar aquilo que é próprio da comunidade.

"A maioria, aqui, também tem vergonha de dizer que mora em favela. Nós tentamos encorajar as pessoas a encararem o dia-a-dia e a conquistarem o direito de terem direitos. Porque, ao que parece, nós só temos o direito de não termos direitos", afirma Misael Avelino dos Santos, fundador da Rádio Favela, de Belo Horizonte. A emissora ligou pela primeira vez seus microfones em 1981, dentro do conjunto residencial Aglomerado da Serra, a fim de "criar um espaço para divulgar música e cultura negra, falar da discriminação contra os moradores da favela e conscientizar os jovens da comunidade sobre os problemas relacionados à violência e às drogas". A iniciativa foi ganhando corpo e notoriedade até que, no ano passado, sua história foi retratada no filme "Uma Onda no Ar", de Helvécio Ratton. A película ganhou prêmios nos festivais de Gramado, Paris e Miami, entre outros.

"Agora, depois que a rádio estourou e ficou famosa no mundo todo, por causa do filme, o orgulho de morar aqui está começando a existir", conta Misael, lembrando a situação de precariedade em que vivem muitos dos moradores da favela, que tem mais de 100 mil habitantes e apenas uma rua com sistema de esgoto. Ele conta também que foi justamente com a intenção de fazer "uma mídia voltada para nós mesmos, que tratasse dos temas que nos afetam, que começamos a operar a rádio". Todos os programas da rádio são produzidos dentro da favela, por pessoas do local, voltados para os interesses dos moradores de lá.

A rádio é, assim, um exemplo da "valorização da positividade" pedida por Jaílson. Outro exemplo forte é o dos grupos culturais que têm suas atividades nessas comunidades, como o próprio Afro Reggae. Segundo seu coordenador, já se pode sentir uma mudança de atitude por causa do trabalho de reeducação feito por iniciativas como a que ele dirige. "Acredito que, de uma maneira geral, as pessoas que moram em favelas vêm gradativamente tendo menos vergonha de se dizerem moradoras dessas áreas, pois, graças a Deus, vários fatores têm conseguido, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro, abrandar essa imagem ruim que quem está fora tem e quem está dentro aceita. Trabalhos como o nosso, como o do Nós do Morro, no Vidigal, ou como o do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), entre muitos outros, mostram que há muito o que se valorizar nas favelas", diz José Júnior. Segundo ele, são algumas dessas "experiências que diferem", como ele definiu, que têm conseguido promover mudanças tanto no modo como a sociedade, em geral, enxerga as pessoas que moram em favela quanto no modo como elas próprias vêem o lugar onde vivem.

Entre essas "experiências que diferem" estão várias das iniciativas do GCAR, que atua em quatro favelas do Rio: Vigário Geral, Morro do Cantagalo, Parada de Lucas e Cidade de Deus. Além da já famosa banda Afro Reggae, há a Afro Lata, a Afro Samba, a Tribo Negra, o grupo de circo Levantando a Lona, a Trupe da Saúde, os programas de rádio Afro Ritmia e Baticum, entre outras atividades. Todas envolvem diretamente moradores de favelas, principalmente os jovens, em programações culturais e sociais que procuram demonstrar que a música, a cultura etc. são caminhos para crescer pessoal e profissionalmente, sem que seja preciso se envolver com a criminalidade ou se curvar aos preconceitos dispensados a quem mora nas favelas.

Se iniciativas semelhantes proliferarem, é possível que, no futuro, as favelas sejam habitadas cada vez menos por estigmas e cada vez mais por orgulho.

Maria Eduarda Mattar. Colaborou Fausto Rêgo.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer