Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
Em 1996, Cláudio Santos de Souza teve o diagnóstico: era portador do vírus HIV. No mesmo dia em que recebeu a notícia, perdeu o emprego e foi despejado. Ainda desempregado, ele mantém o site Soropositivo (o link está ao lado), com informações sobre a doença, e tenta obter recursos para viabilizar a organização não-governamental que criou – Vida Positiva –, com a qual pretende ajudar a recolocar portadores de HIV no mercado de trabalho. A seguir, o seu depoimento:
"Sou ex-morador de rua. Morei nas ruas dos 12 aos 17 anos, quando uma garota de programas me estendeu a mão e me deu um emprego de lavador de pratos na antiga Boate Louvre, que ficava na Major Sertório, 178, antiga Boca do Lixo, em São Paulo. Ali me tornei DJ [disk-jockey], com imensa facilidade de acesso a mulheres e sexo fácil. Tendo em conta a minha vida anterior, completamente vazia de carinho, foi inevitável que eu me tornasse um compulsivo por sexo. Logo que apareceram os primeiros casos eu entendi que a doença não era uma coisa de gays, como queriam fazer acreditar; sabia que era uma DST [doença sexualmente transmissível] e que matava. Isso era tudo.
Quando transava com alguém, sempre pensava na Aids, mas achava que não aconteceria comigo ou, se acontecesse, que se danasse tudo, eu ia simplesmente morrer. Eu não sabia que entre a infecção por HIV e a morte por alguma doença oportunista decorrente da Aids haveria um longo e tenebroso processo de depauperação orgânica e de discriminação social que se estende a todos os setores, inclusive o mercado de trabalho.
Numa dessas transas, contraí o HIV. Mas não faço a menor idéia de com quem possa ter sido. Foram muitas as mulheres com quem me relacionei e, acredito, além de ter me infectado, devo ter transmitido a doença a muitas pessoas. É uma culpa sem dolo que eu carrego, para complicar ainda mais.
Usei o coquetel [de medicamentos] e suportei seus efeitos colaterais por cinco anos e meio. Desde então, com a saúde em ordem, o CD em 850* e a carga viral** em 85.000, entrei em "férias terapêuticas" por tempo indeterminado. O que delimitará este tempo é a contagem de células CD4. Quando ela se aproximar de 350 eu terei de entrar novamente com a medicação.
Mas tenho olhos e ouvidos e uma esposa soropositiva que toma anti-retrovirais. Não faz muito tempo, faltou um deles na Casa da Aids, ambulatório do Hospital das Clínicas, mantido com o apoio da Fundação Zerbini: o Amprenavir, um inibidor de protease, peça-chave em tratamento de pessoas que têm a infecção há muito tempo. Felizmente, tínhamos algum em estoque e a situação se regularizou em 15 dias. Mas muita gente ficou sem remédio. E há uma severa doutrina, quase espartana, de adesão a esta medicação. O ideal é que não se falhe uma única dose, sob o risco de desenvolver resistência à medicação. No caso de minha esposa, isso teria sido quase que fatal, pois, segundo os exames de genotipagem, ela está na ultima combinação possível entre as disponíveis no Brasil.
No meu modo de ver, o novo governo deixou meio que 'a barlavento' o programa de atendimento aos portadores de HIV e não implementou, como o anterior também não, um esquema de prevenção efetivo, com envolvimento, mesmo que forçado, da mídia televisiva e radiofônica, com spots de 30 segundos a cada 30 minutos, 24 horas por dia, visando todas as camadas da população, pois todas estão vulneráveis à Aids, especialmente as mais pobres e, dentro destas, as do sexo feminino, notadamente as mulheres faveladas e adolescentes.
Enquanto isso não for feito, enquanto não forem tomadas providências sérias, a epidemia, no Brasil, e a pandemia, no mundo, continuarão progredindo. A tendência de crescimento é exponencial. Cada pessoa recém-infectada é um novo vetor para o vírus e permanece assim por muitos anos, sem encontrar uma razão que a convença da necessidade de preservativo. Pior ainda: as pessoas começam a duvidar que a Aids mate, e a doença se espalha cada vez com maior velocidade, para um número maior de vetores num moto-perpétuo cujo escopo chega a ser aterrador. Basta ver as populações africanas, onde a prevenção é zero: há paises em que um entre cada cinco habitantes está infectado pelo vírus. E isso é o que se espera de melhor nesses lugares.
E os paises com populações gigantescas, então, como é o caso da China? Estamos diante de uma calamidade sem precedentes na historia humana. Nem mesmo a peste negra terá sido tão devastadora como a pandemia que vem se delineando, sob os olhos e barbas desatentas e descuidadas de governantes do G8."
* O corpo humano está sob ataque constante de uma grande variedade de bactérias, vírus e fungos. A função do sistema imunológico é remover ou controlar esses invasores e proteger o corpo de seus efeitos danosos. Entre os elementos mais importantes do sistema imunológico estão as células chamadas CD4 ou células T. Elas lideram a resposta imune contra as infecções e, mais especificamente, mandam outras células procurarem e destruírem bactérias, fungos e outros vírus que causam infecções.
** O número de vírus em uma pequena amostra do sangue é conhecido como contagem ou carga viral. A carga viral é um indicador do grau de atividade do HIV nos nódulos linfáticos e em todo o organismo, oferecendo, portanto, mais uma forma de acompanhar a progressão da doença. (Fonte: www.soropositivo.org)
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