Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Três milhões de mortos só neste ano. Cinco milhões de novos casos. E uma estimativa de 40 milhões de infectados em todo o mundo. Os números divulgados nesta semana pelo Programa das Nações Unidas para HIV/Aids (Unaids) levaram o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, a comparar a doença a uma arma de destruição em massa e certamente vão transformar este 1º de dezembro – Dia Mundial de Luta contra a Aids – em um momento especial de reflexão. Em entrevista à Rádio BBC, de Londres, Annan afirmou que a guerra contra o HIV não está sendo vencida por falta de engajamento dos líderes mundiais. “O que estamos fazendo?”, indagou. “Isto indica uma inacreditável falta de sensibilidade, que não era esperada no século 21”.
De fato, em alguns países, a situação ainda é dramática. Na África Subsaariana a epidemia atingiu boa parte da população economicamente ativa – em Botsuana e Suazilândia, por exemplo, a taxa de infecção é de 39% –, o que poderá provocar efeitos devastadores. Mais de 60% dos novos casos surgidos neste ano foram registrados na região, onde também ocorreram 2,3 milhões das 3 milhões de mortes provocadas pelo HIV. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 11 milhões de crianças africanas estão órfãs por causa da Aids e a estimativa é que 20 milhões tenham perdido ao menos um dos pais até 2010, devido à doença. Segundo a Unaids, verifica-se uma “quase completa ausência” de programas de tratamento e prevenção em grande escala.
Mas há outras ameaças. Países como China, Índia, Indonésia, Rússia e alguns do leste europeu – onde a taxa de contaminação continua crescendo – já vivem situação potencialmente crítica, o que leva especialistas a admitirem que o pior ainda está por vir. Peter Piot, diretor do Unaids, é taxativo: “A epidemia de Aids continua se expandindo. Não alcançamos o limite ainda”. A preocupação ganha mais relevo quando se considera que a maioria das pessoas infectadas apenas recebe o diagnóstico depois que aparecem os primeiros sintomas, o que pode levar anos.
“Acho que o pior ainda está por vir”, prevê Michel Lotrowska, representante no Brasil da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da organização Médicos sem Fronteiras (MSF). “Certamente há pessoas que foram contaminadas há uns dez anos e podem ter transmitido o vírus nesse período. Então é possível que no ano que vem os números sejam ainda mais elevados”.
Almir Pereira Jr., oficial responsável pelo Programa HIV/Aids da ActionAid Brasil, lamenta que iniciativas como o Fundo Global de Combate a Aids, Tuberculose e Malária [criado pela ONU em junho de 2001, com previsão de arrecadar 10 bilhões de dólares anuais entre os países mais desenvolvidos, fundações e setor privado], não tenham resultado em avanços efetivos: “Há uma defasagem entre o volume de recursos que se esperava obter dos países ricos para esse fundo e o que foi efetivamente arrecadado”. Embora reconheça os riscos em países como a China – “uma bomba prestes a explodir” –, ele reclama da pouca atenção dada à situação da América Latina, onde o número de infectados pelo HIV está na faixa de 1,3 milhão a 1,9 milhão de pessoas. “O Haiti, por exemplo, tem uma taxa de incidência de Aids maior do que alguns países africanos”, alerta.
Três em cinco
Evitar uma catástrofe é um dos propósitos do plano que a Organização Mundial de Saúde (OMS) lança por ocasião das comemorações do Dia Mundial de Luta contra a Aids. A meta é garantir que, até o ano 2005, 3 milhões de pessoas tenham acesso a tratamento anti-retroviral. O projeto, que vem sendo chamado informalmente de “3 em 5”, é capitaneado pelo sanitarista Paulo Roberto Teixeira, ex-coordenador do elogiado programa brasileiro de combate à Aids, hoje diretor do Departamento de HIV/Aids da entidade. Ele está convencido de que a meta é viável, desde que haja uma mobilização geral.
“Absolutamente, sim, desde que mobilizemos todos os atores nos âmbitos nacionais e internacional. As condições técnicas, políticas e estruturais existem, desde que a gente consiga essa mobilização”, afirma. A idéia da OMS é oferecer a cada país – com a ajuda de organizações parceiras – o apoio necessário para a expansão do tratamento, principalmente na parte técnica, com o objetivo de simplificar medidas de diagnóstico e tratamento, garantir capacitação e monitorar a resistência aos medicamentos anti-retrovirais. “Também estamos negociando com os agentes financiadores, como o Fundo Global de Combate a Aids, Tuberculose e Malária, para que os recursos disponíveis sejam usados da forma mais eficaz possível”, acrescenta.
Para Michel Lotrowska, o projeto é ambicioso e seu sucesso vai depender da responsabilidade dos governos, da fiscalização permanente da sociedade civil e da simplificação do tratamento. “Se a pessoa toma quatro comprimidos de um medicamento e sete do outro, fica muito complicado atender todo mundo. Esses medicamentos são separados porque são fabricados por empresas diferentes, mas as empresas que fabricam genéricos podem fundi-los em um só”, explica. O problema, segundo ele, é que muita gente ainda põe em dúvida a qualidade dos genéricos, daí a necessidade de uma certificação de qualidade - papel que a OMS já desempenha, embora de maneira lenta e tímida, com poucos recursos e funcionários. “Tem de haver uma posição firme da organização em favor dos genéricos”, defende. “A OMS é quem dá o aval para que os medicamentos sejam comprados pelos países, e essa qualificação é feita de forma muito lenta. A OMS precisa propor isso como alternativa, e acho que vai propor”.
A própria MSF pré-qualificou alguns genéricos para seu uso e já vem aplicando as pílulas “3 em 1” (o que também é conhecido como Associação Fixa de Medicamentos) para tratar pessoas com HIV/Aids em 19 países nos quais oferece assistência a portadores da doença. Dessa forma, acredita-se que será possível quadruplicar o número de pacientes atendidos até o final do ano.
Resistência
Teixeira também se refere ao início de negociações entre a OMS a indústria farmacêutica para a concessão de licenças voluntárias para fabricação de medicamentos pelos governos. “O laboratório cederia a patente, permitindo o início de uma produção local, sem os traumas do processo compulsório”. Lotrowska, porém, é cético. “A licença voluntária, até agora, não se mostrou um mecanismo eficaz na América do Sul. A empresa só vai ceder voluntariamente se houver alguma coisa que a obrigue”. Para ele, é preciso reforçar os mecanismos de licença compulsória, o que significa tentar implementar os mecanismos do acordo Trips* e da Declaração de Doha**. “A licença voluntária é uma alternativa, mas não vai ser alcançada pelos belos olhos de quem negocia”.
As relações com os laboratórios nem sempre transcorrem em clima ameno. Recentemente, o próprio Paulo Roberto Teixeira teve de rebater argumentos sobre um suposto aumento da resistência do HIV aos anti-retrovirais utilizados em países em desenvolvimento. A alegação era de que a baixa escolaridade da população poderia levar a uma manutenção inadequada do tratamento, acarretando mutações no HIV e, conseqüentemente, maior resistência. Lotrowska reage: “Essa afirmação não tem nenhum fundamento, é apenas preconceito. O único risco, de fato, é devido à situação de quem não tem acesso a tratamento adequado, daí pode desenvolver alguma resistência”.
Teixeira justifica: é natural do próprio sistema de mercado tentar preservar os lucros. “O acesso a medicamentos em países em desenvolvimento significa um elemento novo, relacionado com a decisão de fazer produção local de medicamentos”, explica. Mas é incisivo: “Não há mais o que discutir: resistência aos anti-retrovirais é problema para todo mundo, não só para os países mais pobres, só que não pode ser pretexto para impedir o acesso ao tratamento”. Para ele, no entanto, as reservas e dificuldades impostas ao tratamento em países mais pobres é uma tendência que está sendo vencida.
Recursos
Em relação, particularmente, ao programa brasileiro de combate a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Aids, outra questão que desperta interesse diz respeito às conseqüências do acordo sobre propriedade intelectual na Área de Livre Comércio das Américas (Alca). “A gente sabe que os EUA estão tentando reverter algumas derrotas que eles tiveram nesse campo e isso pode gerar problemas para a continuidade do programa brasileiro”, diz Almir Pereira Jr., oficial responsável pelo Programa HIV/Aids da ActionAid Brasil. “O programa só se mantém a partir da possibilidade de produção de genéricos. Se você tem uma reversão nesse processo nas negociações da Alca, que passa a vigorar em 2005, pode haver risco para as medidas de combate à doença”. Ele acredita que o Brasil terá de driblar os possíveis problemas com as negociações da Alca e da Organização Mundial do Comércio (OMC) e tentar garantir recursos para complementar as verbas do programa.
No dia 27 de novembro, o Ministério da Saúde anunciou a renovação do acordo com o Banco Mundial que prevê a liberação de mais 100 milhões de dólares para o Programa Nacional de DST/Aids (com uma contrapartida no mesmo valor por parte do governo federal). Segundo o diretor do programa, Alexandre Grangeiro, esse investimento vai permitir “fortalecer iniciativas nas áreas de prevenção, assistência e desenvolvimento tecnológico”. O acordo é responsável por 8% dos gastos com ações de combate e prevenção à Aids e se encerra em 2006. O que vai acontecer a partir dali é que deixa Pereira Jr. temeroso: “Nosso medo é que, na hipótese de uma contenção de gastos, o governo acabe cortando na área social e, em particular, no programa de HIV/Aids. Diminuindo os recursos, ele não tem como se manter”.
Roberto Pereira, coordenador geral do Centro de Educação Sexual (Cedus) - representante de ONG/Aids da Região Sudeste na Comissão Nacional de Aids do Ministério da Saúde e ex-membro da Secretaria Executiva do Fórum de ONG/Aids do Rio de Janeiro - expressa o mesmo receio. “O programa brasileiro, com todas as dificuldades que possa ter, é muito positivo. A grande preocupação que se tem é que os recursos continuem sendo alocados, pois a exigência de verbas tem sido cada vez maior”.
Situação brasileira
Números divulgados recentemente pelo Ministério da Saúde mostram que, embora verifique-se uma estabilização no registro de novos casos, a taxa de incidência do HIV entre homens e mulheres heterossexuais de baixa renda vem se mantendo estável nos últimos anos. “É uma situação próxima do que se vê na África”, assusta-se Almir. “Com esse perfil, se a gente não conseguir manter o programa e, principalmente, ampliá-lo, podemos chegar a uma situação parecida com a que vive o continente africano hoje”.
Um dado novo é o aparecimento dos primeiros indicadores referentes a pessoas de terceira idade, o que talvez represente que essa população tenha passado a se considerar fora de risco. A explicação para isso, segundo Roberto Pereira, reside na falta de informação. “A gente tem quase dez anos da última grande campanha. Apesar de a população brasileira conhecer razoavelmente a doença, a Aids deixou de ser capa de revistas. Por isso as pessoas que estão começando agora sua vida sexual recebem pouca informação sobre doenças sexualmente transmissíveis. Fala-se em camisinha e prevenção, mas não se tem uma idéia muito clara do que isso significa. Hoje não se vê mais o artista famoso, o desportista que tem o HIV. E passou a ser um tema muito mais relacionado às populações empobrecidas”.
Roberto acredita que o excesso de comentários sobre o coquetel de medicamentos talvez passe a idéia equivocada de que tomando remédios a pessoa pode até se curar. “Acho que falta informação mais sólida, faltam referências e existe essa falsa impressão sobre o tratamento”, diz.
Ex-coordenador do programa brasileiro, Paulo Roberto Teixeira faz elogios à maneira como o programa vem sendo conduzido após sua saída e destaca iniciativas como a campanha Fique Sabendo [que procura estimular a população a realizar o teste gratuito para diagnóstico de HIV], as negociações com a indústria farmacêutica para redução dos preços dos medicamentos e a distribuição de preservativos nas escolas. “São avanços que muito poucos países estão sonhando e que considero positivos pelo reconhecimento de problemas sérios que precisam ser enfrentados”. O Ministério da Saúde admite, porém, que é preciso avançar no apoio a usuários de drogas injetáveis e presidiários, bem como na prevenção da contaminação de filhos por mães infectadas. “São grupos muito mais vulneráveis – não só à Aids, mas a outras DSTs também. Por isso necessita-se que as informações sejam reforçadas o tempo todo. Os índices de infecção têm sido crescentes, o serviço público não tem conseguido atender e falta treinamento”, analisa Roberto Pereira, que também destaca a resistência de setores mais conservadores – incluindo parlamentares – a iniciativas como o uso de preservativos e a distribuição de seringas. “A recente posição do Vaticano contra o uso da camisinha é um exemplo disso. Embora muita gente tenha a impressão de que isso não é significativo, o fato é que a Igreja ainda é uma formadora de opinião muito forte”.
Mais tempo
Se o panorama da Aids no Brasil parece bastante animador quando comparado à situação global da epidemia, há que se observar o assunto com a devida cautela. A própria Unaids fez questão de deixar um alerta ao governo brasileiro, para que não se deixe empolgar pelos elogios ao seu programa de combate ao HIV e continue dedicando especial atenção ao problema, pois a doença se propaga rapidamente em todo o mundo e não se pode descartar o risco de que uma epidemia surja no país e não seja detectada imediatamente.
Vale para uso interno a advertência de Paulo Roberto Teixeira: “Estamos muito longe do controle da epidemia em relação a todos os seus componentes, mas especialmente em relação ao tratamento. Tem havido avanços, claro, mas o enfrentamento da doença ainda não pode nem ser considerado satisfatório. Para controlar a epidemia nós certamente precisaremos de muito mais tempo”.
* O acordo Trips (Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio Internacional) foi assinado em 1995 e garantiu às empresas de nações filiadas à Organização Mundial do Comércio (OMC) a proteção de suas patentes nos demais países-membros.
** Documento produzido ao final da 4ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, realizada na cidade de Doha, no Catar, em 2001, com uma agenda de 21 itens considerados fundamentais, incluindo tópicos relacionados à propriedade intelectual.
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