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Falta de capacitação: do que estamos falando mesmo?

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Marta Gil*

A pesquisa "Retratos da Deficiência no Brasil", realizada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas/RJ, integrando o Programa Diversidade, desenvolvido pela Fundação Banco do Brasil, já se tornou uma obra de referência. Ela prestou um enorme serviço, ao recuperar, reunir e trabalhar os dados sobre a condição da Deficiência no Brasil desde os tempos do Império. Desconheço iniciativas semelhantes e, mais uma vez, expresso minha alegria pela concretização desta iniciativa.

Porém acho que precisamos ter cuidado ao falar sobre estes dados, pois podemos levar as pessoas a ter uma postura imobilista, do gênero maktub [estava escrito], que certamente não é a que queremos.

Refiro-me, mais especificamente, à questão da “falta de qualificação” das pessoas com deficiência. Esta afirmativa é real: muitas pessoas com deficiência têm um nível de qualificação abaixo do que as empresas esperam. Este é um dado fundamental e, como tal, deve ser considerado, encarado, discutido e analisado. Não pode ficar escondido debaixo do tapete, não deve ser escamoteado.

O perigo reside quando não nos perguntamos o porquê desta baixa qualificação. Não falamos que as famílias, muitas vezes, ignoram que estas crianças podem ser alfabetizadas; ou não sabem que têm este direito; ou que tentaram exercer este direito e foram impedidas pela própria escola (temos muitos exemplos destes, na Rede Saci); ou que a escola até as acolhia, mas não havia sistema de transporte público; ou... e eu poderia continuar enumerando muitos outros obstáculos, de toda ordem e natureza, envolvendo órgãos, entidades e instituições da sociedade brasileira.

A combinação perversa e poderosa destes obstáculos certamente tem muito a ver com esta “falta de qualificação”. Sem que eles sejam levados em conta, não podemos dizer que estamos fazendo uma análise; estaremos meramente repetindo números e porcentagens, sem ir mais fundo e tentar desvendar seu significado. Entendo que é exatamente este aprofundamento o que caracteriza uma análise.

Por outro lado (e esta é uma questão que apresenta muitos lados), a população brasileira, como um todo (e aqui me refiro às pessoas ditas “normais”) não tem um nível de qualificação alto, infelizmente. Os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), apenas para utilizar um indicador, nos apontam isso. Notícias freqüentes na imprensa sobre crianças que chegam à 4ª série e não sabem ler e nem escrever, sobre acidentes de trabalho ocorridos porque as pessoas não entendem manuais de operação, depoimentos de ministros, ex-ministros, especialistas no assunto, de empresários e sindicalistas que revelam sua preocupação com o baixo nível da educação em nosso país e, conseqüentemente, com os reflexos desta situação sobre o futuro desempenho destas pessoas levam à indagação: de quem, realmente, estamos falando quando mencionamos a falta de qualificação? Pois parece que ela abrange outros segmentos, além do das pessoas com deficiência...

Acredito que as pessoas com deficiência apenas reproduzam estas condições – vigentes para grande parte da população brasileira – com cores mais fortes, por assim dizer. Mas o padrão é o mesmo.

Outro aspecto a ser considerado é o das entidades e instituições que oferecem capacitação profissional para as pessoas com deficiência. Será que elas estão formando pessoas com habilidades e postura profissional para o momento atual? Não seria este o momento para estabelecer alianças e parcerias com outras entidades de formação, oferecendo o que cada uma tem de melhor?

Ainda há outro lado da questão a ser considerado: o dos investimentos em formação e qualificação que estão sendo feitos.

Recente matéria publicada pela Rede SACI (http://www.saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro=8351) cita diversas iniciativas neste sentido. Não são as únicas; há outras mais sendo feitas. Por que elas não são levadas em conta quando a “falta de qualificação” é mencionada?

Se ficamos apenas batendo na tecla da “falta”, corremos um sério risco: o de culpabilizar a vítima. No caso, a pessoa com deficiência. É como se disséssemos: “Veja, estou de braços abertos, com uma bela vaga a oferecer... mas nenhuma pessoa com deficiência está apta....tsk, tsk”.

E cruzamos os braços, condoídos, pois nossa atitude “generosa” não encontra eco. Mais uma vez, enfatizamos a D-eficiência e não a E-ficiência, mais uma vez fazemos o levantamento do “não” e não o levantamento das capacidades, das habilidades, das possibilidades. E se tentássemos inverter o jogo?

Como?

- fazendo uma reavaliação do perfil do cargo: é realmente necessário saber fazer tudo o que está sendo solicitado?

- investindo no processo de qualificação e de formação da pessoa com deficiência. Afinal, não é exatamente isso que o todas as teorias e todos os manuais preconizam? Não é por isso que muitas empresas mudaram o nome de seus departamentos de Recursos Humanos para Talentos Humanos? Não é isso o que significa responsabilidade empresarial?

- reavaliando nossas posturas e valores. Não é “pecado” ter preconceito, este sentimento faz parte de nossa natureza humana. Mas podemos ser honestos e sinceros, aproveitando esta situação para nos examinarmos e dar uma oportunidade a nós mesmos para mudar algo internamente.

Não quero dizer que todas as pessoas com deficiência estão prontas e qualificadas; não quero dizer que as empresas utilizam os dados estatísticos para se eximir de sua responsabilidade social. Gostaria apenas de refletir sobre este momento que vivemos – tão rico, estimulante e desafiador.

A Fundação Banco do Brasil e a Fundação Getúlio Vargas/RJ aportaram uma contribuição valiosa e significativa; cabe aos demais atores sociais, compromissados com esta temática, continuar a discussão.


*Marta Gil é gerente da Rede Saci (www.saci.org.br).






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