Autor original: Fausto Rêgo
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Stédile defende a construção de um projeto popular para o país, com a retomada dos movimentos de massas, a participação ativa da população na vida política e um mutirão nacional de debate envolvendo toda a sociedade civil organizada – de sua parte, o MST pretende investir na formação de militantes e na consolidação de uma coordenação de movimentos sociais. “O projeto popular significa reorganizar a economia e o regime político, para que a produção e a riqueza do país sejam em função das necessidades da população e não do capital”, afirma.
Rets - O senhor afirma que a sociedade brasileira encontra-se em estado de letargia e que depende dela a revisão do modelo econômico brasileiro. No entanto temos visto diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como a Abong, se posicionando de forma crítica ao governo e à própria condução da economia. De que forma, então, o senhor acredita que a sociedade deve agir para que essa transformação ocorra?
João Pedro Stédile - O Brasil vive uma crise de projeto. Uma crise de destino, como nos ensinaram [o sociólogo] Florestan Fernandes e [o economista] Celso Furtado. Desde a crise do modelo de industrialização dependente, a classe dominante brasileira tentou impor o neoliberalismo. Mas ele não se consolidou como projeto, pois é um projeto de subordinação ao capital internacional e, portanto, nega a nação. O que é necessário é que a sociedade, através de suas mais diferentes formas de organização social, como universidades, sindicatos, igrejas, movimentos sociais, faça um verdadeiro mutirão de debate sobre a saída para essa crise de projeto. E esperamos que com esse debate se motive a voltar um processo de ascensão do movimento de massas, que significa o povão sair da expectativa, da letargia, e participar ativamente da vida política. Somente essa mobilização social poderá encontrar um novo rumo para o país.
Rets - O MST defende a revisão do atual modelo econômico e a construção de um "projeto popular" para o país. Como, exatamente, seria esse projeto popular?
Stédile - O projeto popular significa reorganizar a economia e o regime político, para que a produção e a riqueza do país sejam em função das necessidades da população e não do capital. Assim, hoje, precisamos identificar as causas das mazelas sociais que transformaram a nossa sociedade na mais desigual do mundo. E elas são a concentração da riqueza, da renda e da terra, a concentração e o monopólio dos meios de comunicação e a colonização cultural que as elites internacionais tentam impor ao nosso povo. Um projeto popular é a tentativa de enfrentar essas concentrações. E o debate na sociedade e com o povo é que vai dar os contornos a esse projeto. Porque ele não é um exercício acadêmico, teórico apenas, mas necessariamente precisa ser incorporado ao ideário do povo – de que é possível organizarmos nossa economia e nossa sociedade sobre outras bases.
Rets - O senhor classificou a reforma agrária feita em 2003 como "uma vergonha". O governo prometeu assentar um milhão de pessoas em quatro anos. O senhor acredita que essa promessa será cumprida? O que lhe parece o atual Programa Nacional de Reforma Agrária?
Stédile - O governo Lula praticamente não fez nada pela reforma agrária em 2003. Mas tivemos, por outro lado, durante todo o segundo semestre, um debate com o governo para construir um plano de reforma agrária. Nós achamos que na construção desse plano se enfrentaram as três propostas, que também estão presentes na sociedade e no governo. O setor que quer continuar o neoliberalismo não dá importância à reforma agrária e tinha colocado no PPA [Plano Plurianual]dos próximos anos recursos para assentar apenas 80 mil famílias. De outro lado, o professor Plínio [de Arruda Sampaio, economista] reuniu mais de 40 técnicos e estudiosos do próprio governo. Eles elaboraram um plano que estaria inserido no projeto popular, porque massificaria a reforma agrária e utilizaria a reforma agrária para mudar o modelo econômico, [que, então, seria] centrado na geração de empregos. E por isso colocaram a meta de um milhão: para poder afetar a concentração da terra e gerar milhões de empregos. E, como resultado, tivemos uma alternativa que, no nosso modo de entender, é apenas reciclar. O Ministério do Desenvolvimento Agrário optou por uma meta de 550 mil famílias, sendo 400 mil por desapropriação. E 150 mil seriam pelo credito fundiário, que, a rigor, não é bem reforma agrária.
Nós continuaremos lutando. Primeiro para que se realize o compromisso das 400 mil famílias assentadas nos próximos anos – e inclusive para ampliá-lo, pois sabemos que a velocidade e o volume da reforma agrária dependem da capacidade de mobilização dos trabalhadores, já que o governo diz ter vontade política.
Rets - Durante a coletiva de lançamento do Relatório Direitos Humanos no Brasil 2003 [no dia 3 de dezembro, no Rio de Janeiro], um representante do Pré-Vestibular da Rocinha, que estava na platéia, lhe perguntou sobre a construção de uma aliança entre os trabalhadores do campo e da cidade. Ao responder sobre essa possibilidade, o senhor mencionou que o espaço principal que está sendo construído é o da coordenação dos movimentos sociais e disse: "No aspecto da formação de militantes, depois a gente conversa". Vocês conversaram? Em que o senhor acredita que o MST pode contribuir com a organização dos movimentos comunitários nas favelas, por exemplo, e vice-versa?
Stédile - Conversamos, e vamos marcar outras reuniões, para que se possam programar cursos de formação de militantes em que se juntem os militantes da área urbana com os movimentos sociais do campo. Também achamos que o melhor espaço para ir construindo essa aliança é a Coordenação de Movimentos Sociais, que estamos construindo em todo o país.
Rets - O MST é, provavelmente, o maior movimento social da América Latina. Como lidar com o crescimento desse movimento sem perder a identidade e sem abrir espaço a oportunistas?
Stédile - Mantendo fidelidade a nossos princípios e continuando a priorizar a educação e a formação de militantes. E nunca perder de vista que somente a organização do povo é que faz a roda da historia girar. Em relação aos desvios de oportunistas, somente o coletivo, a organização social, é que pode controlá-los e reeducá-los para uma vida mais digna.
Rets - O senhor tem uma postura de crítica ao comportamento da mídia e já afirmou que "a imprensa brasileira é de uma mediocridade e falta de ética a toda prova". Diante disso, gostaria de lhe perguntar três coisas: essa crítica é exclusivamente para a grande mídia ou vale também para os demais veículos? O que lhe parece a abordagem feita pela imprensa das notícias envolvendo o MST? E, por fim, que análise o senhor faz da cobertura do governo Lula na nossa imprensa em comparação com a que se fazia nos governos anteriores?
Stédile - Nossa crítica se refere aos veículos de imprensa da classe dominante, dos ricos do Brasil, que têm um verdadeiro monopólio na televisão, nos grandes jornais e revistas. E procuramos estimular e participar de todas as lutas e formas que ajudem a democratizar os meios de comunicação. Por isso apoiamos as rádios comunitárias, apoiamos a televisão pública, apoiamos o [jornal] “Brasil de Fato” e outros jornais e espaços populares e de esquerda. A chamada grande imprensa defende ideologicamente apenas os interesses da classe. A grande imprensa, no Brasil, substituiu os partidos ideológicos da direita. A direita se expressa não pelo PFL ou pelo PMDB; se expressa na grande mídia.
O tratamento que essa grande mídia dá ao governo Lula depende apenas de seus interesses de classe. Se o governo Lula toma uma medida que lhes interessa, ficam bajulando; se algum setor do governo toma uma medida que afeta seus interesses, eles caem de pau. Como fazem com freqüência, por exemplo, com o ministro da Ciência e Tecnologia, com o presidente do BNDES e com os ministros do Itamaraty, só porque são contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas].
Rets - O MST inicia em março uma série de atividades com o objetivo de mobilizar a população. Quais serão essas atividades?
Stédile - O MST está sempre em movimento, por isso é um movimento social. Nós nunca nos baseamos muito em calendários. O que nos move é a necessidade de resolver os problemas das famílias pobres do campo. Agora estamos envolvidos com a Coordenação de Movimentos Sociais, que está preparando uma grande jornada nacional, um verdadeiro mutirão, para primeiro debater com a sociedade as causas do maior problema social que temos, que é o desemprego. Vamos organizar uma grande jornada nacional pelo direito ao trabalho, de desemprego zero. Isso acontecerá durante todo o primeiro semestre do ano que vem.
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