Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Artigos de opinião
Fernando Luis Monteiro Soares*
O esgotamento de um modelo de organização da sociedade e da economia não induz à superação desse modelo. Ao contrário, objetivamente, o status quo (a situação dada) tende a se propagar inercialmente até que, no contexto da correlação de forças interagentes na sociedade, haja a transformação.
O atual modelo econômico e societário brasileiro está esgotado desde o final da década de 70, quando os índices de crescimento econômico ainda eram altos. Durante o período ditatorial, o PIB brasileiro chegou a atingir taxas de crescimento superiores a 6% ao ano.
Mas, como afirmou o autor de "A Geografia da Fome", Josué de Castro, "crescimento não é desenvolvimento". A ficção do crescimento econômico não impediu a sociedade de ir para as ruas, mesmo diante de toda a violência ditatorial, e clamar por democracia. A sociedade brasileira não aceitava mais a supressão de seus direitos de liberdade e a exploração do seu trabalho e o aviltamento da sua dignidade em nome de um nacionalismo sem referência popular e comunitária, sem justa distribuição da renda nacional.
Desde então essas taxas “de crescimento” caíram gradualmente, demonstrando o esgotamento desse modelo. Em 2004, o crescimento do PIB brasileiro deverá variar entre 0% e 4% ao ano (4 % de acordo com os mais otimistas/governistas). O desemprego estrutural, conjugação do avanço tecnológico com o modelo dominante, gera novo processo de acumulação do capital, principalmente nos países centrais, revertido na manutenção do status quo.
A política de geração de “superávit primário”, “como disse o ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, em coluna do jornal Valor de 26 de novembro, é a política do 'faça o que digo, não o que faço'. Trata-se de estimular os países fracos a se endividarem no exterior para o bem do mercado financeiro internacional e de induzi-los a manterem suas moedas supervalorizadas (e assim reduzir o endividamento aparente) para diminuir sua competitividade e facilitar as exportações dos países ricos. O Brasil está comprometido com esses critérios (do FMI) até o fim de 2004. Para este ano, já é inevitável um crescimento do PIB praticamente zero (...)"[Carta Capital, 3/12/2003, nº269, págs 48-49]
O que fazer? Precisamos evitar a esperança passiva e a frustração causada por análises que não levaram em conta o atual estado da correlação de forças sociais.
A ação referencial foi planificada nos anos 80, quando a sociedade se mobilizou pelas diretas, e não se contentou com o modelo de democracia representativa. Através da mobilização pelas emendas populares, recolhemos milhares de assinaturas e, mesmo em condições adversas, construímos um modelo de democracia, híbrido, avançado em relação ao sistema puramente representativo. Um modelo caracterizado pela participação social, expresso na criação dos conselhos de direitos, na desjudicialização, e da conseqüente descriminalização, ainda que parcial, das questões sociais.
Construímos uma Constituição relativamente avançada, no que tange aos direitos sociais e à ordem econômica, mesmo com todas as objeções que possamos fazer, ela incorpora, em seu artigo 5º, a legislação internacional de direitos humanos ratificada pelo Brasil como norma constitucional, dispõe sobre a função social da propriedade, fixou em, no máximo, 12% os juros anuais, traz, implícito, o princípio da prioridade absoluta para a implementação dos direitos fundamentais, da criança e da pessoa humana.
Mas, o pacto social descrito na Constituição Federal de 1988 vem sendo desfeito. Mais grave, o movimento social foi duramente golpeado na última década. Todo o edifício da assistência social e comunitária foi desmontado. As obrigações sociais do Estado foram reduzidas a ações exemplares (como se o Estado fosse uma ONG) de cunho assistencialista.
Resistimos? Nesse processo tivemos (a sociedade civil) que nos recolher, nos institucionalizar, adotar modelos de gestão baseados na eficiência empresarial e, em alguns casos, na substituição do papel do Estado frente às demandas sociais. Foi também um processo de aprendizado, e não perderemos o que aprendemos nesse longo percurso.
Mas, no contexto atual, precisamos coordenar nossas forças, de forma cooperativa e mobilizar a sociedade para garantir os direitos conquistados em 1988. Precisamos frear o impulso inercial rumo a supressão desses direitos. Temos que lutar para garantir nossos direitos, como ensina o jurista italiano Luigi Ferrajoli, idealizador do garantismo. Temos que construir um Modelo de Desenvolvimento em Direitos Humanos.
O que vem a ser um Modelo de Desenvolvimento em Direitos Humanos? Um modelo de desenvolvimento fundamentado na implementação progressiva e planificada dos direitos humanos garantidos nas legislações nacionais e internacionais, com o que se comprometeu o governo brasileiro junto à comunidade nacional, interamericana e internacional ao assinar e ratificar, de forma exemplar, a maioria dos tratados de direitos humanos.
O que isso significa em termos econômicos e sociais? Que o Estado deve investir na universalização dos direitos fundamentais à saúde, à educação, à cultura e ao trabalho dignos, de qualidade. Que o Estado deve regular a atividade econômica de forma a garantir o desenvolvimento sustentado, ecológico, reduzindo a injustiça na distribuição da renda nacional, incentivando a responsabilidade social do capital e a geração de novos empregos através da qualificação da mão-de-obra e da redução da jornada de trabalho. Ou, como no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC):
"os direitos econômicos, sociais e culturais fixam limites à discricionalidade estatal na decisão de suas políticas públicas devendo dedicar prioritariamente 'até o máximo de recursos de que disponha' (na realização desses direitos); em seu art. 2.1, o PIDESC estabelece uma ordem de preferência para a utilização dos recursos".
Essa prioridade orçamentária, pela efetividade dos Direitos Humanos, diriam alguns, em “economês”, afetaria o crescimento econômico, pois reduziria a capacidade do Estado de potencializar o grande capital e as exportações e poderá afetar o pagamento dos serviços da dívida, ampliar o risco-país e retrair os investidores estrangeiros, levando o país a uma crise recessiva ainda mais aguda.
Mas, esse modelo de inversão prioritária da economia, para subsidiar o grande capital, o sistema financeiro, e o setor exportador, somente perpetuará uma inserção subalternizada do país na divisão internacional do trabalho. Reiterando o que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso chamou de “teoria da dependência” à supremacia dos países centrais, mais predispostos a investir em inovações tecnológicas nos processos de reprodução e circulação do capital, da informação. Não podemos, pois, nos ater somente a essas análises subjetivas e engessadas do cenário internacional. A correlação de forças nesse cenário não é imutável. O Brasil, pelo potencial de seu mercado consumidor, pelas reservas de água potável e biodiversidade, pela capacidade de coordenar a América Latina, com o hemisfério sul e os países orientais podem levar a Europa a um realinhamento, podem ampliar a expressão dos movimentos sociais mundializados, provocando uma nova compreensão na opinião pública internacional, podemos reinventar esse cenário, e ajudar a inaugurar uma nova fase da história mundial.
E, como em Josué de Castro: crescimento não é desenvolvimento, dado o caráter endógeno, participativo e distributivo deste, vamos além. Já em 1960 o sociólogo norte-americano Daniel Bell propunha: "Uma sociedade submetida a uma quíntupla mutação: passagem de uma economia de produção para uma de serviços; uma mudança na estrutura de empregos (preeminência da classe profissional e técnica); a nova centralidade do saber teórico como fonte de inovação e de formulação de políticas públicas; a necessidade de antecipar o futuro; o desenvolvimento de uma nova 'tecnologia intelectual'. A nova sociedade se caracteriza não mais pela labor theory of value e sim pela knowledge theory of value!" [Mattelart, História da Sociedade da Informação]*.
Bell advogou pela objetividade desse "desenvolvimento" (como em Weber). Ainda que questionemos essa “tendência natural”, admitimos que esse rumo foi seguido pelos "desenvolvidos". No Brasil, 40 anos após a profecia desenvolvida por Bell, menos de 7% dos brasileiros conclui o ensino universitário. Assim, só poderemos ratificar a "teoria da dependência", em toda a sua objetividade inercial. É possível um outro modelo de desenvolvimento diferente tanto da inserção subalternizada do Brasil na globalização, quanto do objetivismo norte-americano?
Mobilizando-nos, de forma participativa e autônoma, podemos disciplinar o Estado a investir de forma ousada e progressiva no desenvolvimento educacional, tecnológico, cultural e humano da nação, na conquista de alternativas de geração de energia, de organização das redes informacionais, de democratização das comunicações, de posse e utilização do território, garantindo a nossa soberania alimentar e nutricional, política e tecnológica. Pois, para acabar com a fome, só com reforma agrária. Nós, a sociedade e o Estado, temos que ter a determinação de realizar as reformas estruturais apontadas pelos movimentos sociais desde os anos 60, para construir, concretamente, um Estado Democrático de Direitos.
Temos que empenhar nossas subjetividades de forma disciplinada, com humildade e coletivamente (subjetividade ampliada e transcendente) nesta construção de um modelo de desenvolvimento em direitos humanos.
*MATTELART, Armand (2001). Histoire de la société de l'information. História da Sociedade da Informação. Trad. Nicolás Campanário. Edições Loyola, São Paulo, 2002.
*Fernando Luis Monteiro Soares é jornalista da Organização de Direitos Humanos Projeto Legal e, atualmente, coordenador de comunicação da Regional Leste do Movimento Nacional de Direitos Humanos, seção Rio de Janeiro.
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