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Humanos por direito

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Humanos por direito
Paulo Duarte
“Acho que no próximo ano a gente vai ter de chamar o Palocci para debater, em vez do Nilmário Miranda”. O comentário, em tom de brincadeira, é da jornalista Maria Luisa Mendonça, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a propósito do debate que marcou o lançamento do relatório “Direitos Humanos no Brasil 2003”, publicado pela organização, em parceria com a Global Exchange. O evento, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no dia 3 de dezembro, reuniu alguns dos colaboradores do livro e contou com a participação do Secretário de Estado de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. A julgar, porém, pela opinião majoritária dos representantes da sociedade civil – que consideram a mudança do modelo econômico um imperativo para o respeito aos direitos humanos no país –, talvez fosse mesmo adequado estender o convite ao Ministro da Fazenda, Antonio Palocci. “Acreditamos que é necessária uma política mais ampla de combate às desigualdades e à pobreza, e isso passa, necessariamente, pela revisão do modelo econômico”, defende Maria Luisa.

O cenário desenhado pelo relatório, a partir do relato de diversas organizações, é preocupante. Registra-se um aumento significativo de conflitos no campo, bem como no número de indígenas assassinados ou mortos em circunstâncias não muito claras. Este ano, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), houve 61 assassinatos de camponeses somente até novembro – contra 43 no ano passado e 29 em 2001. Quanto aos indígenas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) contabilizava em 23 o número de vítimas da violência, na ocasião do lançamento da publicação. Além disso, segundo a assessora jurídica da entidade, Rosane Lacerda, ainda estavam sendo apurados casos de desaparecimento (três deles no estado de Mato Grosso) e um suposto suicídio ocorrido em uma delegacia de Pernambuco. Rosane lembra ainda que o bispo Dom Pedro Casaldáliga, de São Félix do Araguaia (MT), tem recebido ameaças de morte por se posicionar a favor dos indígenas.

“A expectativa, no início do ano, era que a questão indígena pudesse ter melhores respostas diante do quadro histórico de desrespeito. A perplexidade é que tudo que se poderia ter encaminhado neste governo foi ficando para trás”, lamenta José Eden Pereira Magalhães, secretário executivo do Cimi. Ele considera que algumas questões são sintomáticas da ausência de uma política indigenista no país. Uma delas, a falta de empenho pela aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, que há mais de dez anos tramita no Congresso Nacional. Outra, a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima – que vem sendo anunciada desde o governo passado, mas permanece como uma promessa. Magalhães lembra ainda que cerca de 80% das áreas indígenas demarcadas estão invadidas e classifica como um fato “gravíssimo” a redução das terras dos Caiapós, no Alto Xingu. Na última semana, mais uma notícia preocupante: o governo de Mato Grosso enviou mensagem à Assembléia Legislativa propondo a redução do Parque Estadual do Xingu em 40 mil hectares. O parque funciona como um cinturão de proteção da reserva indígena, que abriga diversas etnias. O secretário do Cimi atribui fatos como esses à pouca atenção que vem sendo dada pelo poder público à questão indígena. “As forças antiindígenas ‘foram para cima’ justamente por conta da falta de uma política”, reclama. “Há vários confrontos acontecendo e nenhuma reação por parte do governo”.

O titular da Secretaria Especial de Direitos Humanos contesta. “Ao longo do ano, realizamos inúmeras audiências públicas em diversos estados para discutirmos com movimentos sociais, parlamentares e representantes do poder executivo situações de conflito. Participamos também de diversos momentos de gerenciamento de crises e resolução de conflitos. O nosso trabalho tem sido de muito diálogo e mediação com as nações indígenas”, defende-se Nilmário Miranda, falando com exclusividade à reportagem da Rets.

Marchas e contra-marchas

O recrudescimento dos confrontos é um fato que também ocorreu no campo. Nesse caso, porém, no ponto de vista da Comissão Pastoral da Terra, com motivação um pouco diferente: seria uma reação de latifundiários e ruralistas à falta de apoio do poder executivo aos seus interesses. Para o secretário da coordenação nacional da CPT, Antonio Canuto, não houve retrocesso na defesa dos direitos humanos no meio rural. “Houve até um avanço considerável, sobretudo no combate ao trabalho escravo”, assinala.

Embora critique a falta de ações mais efetivas pela reforma agrária, Canuto acredita que a não repressão a movimentos sociais e manifestações dos trabalhadores teria soado aos latifundiários como um recado de que não contariam mais com o apoio do Executivo - daí uma reação mais contundente, até mesmo com métodos semelhantes aos empregados pelos camponeses. “Os trabalhadores fazem suas marchas e os ruralistas passaram a fazer contra-marchas. Estão adotando as mesmas estratégias de luta, para tentar conter uma possível reforma agrária que possa estar em curso”, argumenta. Para Canuto, o governo está “sob fogo cruzado”, por isso os movimentos sociais devem continuar a se manifestar – do contrário, argumenta, "fica tudo como está". O preço disso, porém, pode ser mais violência. Este ano, até o final de setembro, 60 trabalhadores agrários já haviam sido assassinados. “Nem em Eldorado dos Carajás [cidade paraense onde 19 pessoas foram mortas, em 1996] o número foi tão elevado. Desses últimos 15 anos, 2003 foi o que teve o maior número de mortes. O conflito pode se acirrar. Acredito que, à medida que o governo aja de forma mais propositiva, a reação dos latifundiários será ainda mais intensa”, adverte. O que a Pastoral da Terra espera, neste momento, é que o governo federal invista mais recursos na reforma agrária e cumpra a promessa de assentar 400 mil famílias até 2007.

Trabalho escravo

Uma das metas já anunciadas pelo governo Lula, e ratificadas por Nilmário Miranda durante o evento na PUC, é a erradicação do trabalho escravo no país. Um passo importante neste sentido se deu com a indenização pioneira ao trabalhador José Pereira Ferreira, no Pará, marcando o reconhecimento oficial do problema pelo poder público federal. Miranda adianta algumas medidas que serão tomadas em breve – entre elas, a criação do Disque-Direitos Humanos para receber denúncias de todo o país. O secretário acredita que será possível, dessa forma, ter uma visão mais abrangente das violações de direitos humanos. “Será um grande avanço, pois vamos ter a dimensão das violações e teremos a oportunidade de agir prontamente. Este serviço vai dar início à criação de um Sistema Nacional de Direitos Humanos, que terá o objetivo de monitorar e zelar pela garantia dos direitos de cada pessoa”, revela ele. Este sistema compreenderá delegacias, Ministério Público, poder judiciário, conselhos, comissões e todos os órgãos de Estado envolvidos na garantia e na defesa dos direitos humanos.

O governo também pretende criar, em conjunto com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), um sistema nacional de atendimento socioeducativo. “Com recursos orçamentários e do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, vamos apoiar os estados na concepção e construção de unidades de internação de adolescentes infratores e implementação de outras medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, prossegue Miranda. “Até 2006, teremos alguns estados que servirão de modelo para o resto do país e provarão que, se o ECA é aplicado, os resultados são muito bons”.

Por fim, o secretário anuncia que a campanha de incentivo ao registro civil - iniciada em 2003 - será ampliada, com ações realizadas nas comunidades quilombolas e nos assentamentos. Anualmente, segundo estudo que acaba de ser lançado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 800 mil crianças deixam de ser registradas durante o primeiro ano de vida.

Venda de órgãos

Até aqui, as medidas adotadas pelo governo federal são consideradas positivas, mas insuficientes. Paulo César Carbonari, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), reconhece o mérito do relatório da Rede Social, mas acredita que existe um longo caminho a ser percorrido para que se faça um diagnóstico preciso e aprofundado da situação. “O esforço, nos últimos anos, tem sido significativo para a constatação de várias violações. No entanto somos muito facilmente levados a analisar a situação em função das violações em si. Em geral, acabamos nos pautando na reação às violações, o que não é suficiente”, pondera. Carbonari entende que esse tipo de ação tem sido a tônica da atuação do governo no campo dos direitos humanos. “Claro que a denúncia é importante e faz a sociedade perceber que precisa estar atenta, mas isso não resulta em mudanças de fundo”, lamenta.

Das informações apresentadas pelo relatório, Carbonari destaca, em particular, o que considera um problema dramático, principalmente por seu forte vínculo com a impunidade: a tortura. Em muitos casos, seu uso é tão freqüente que acaba sendo visto como recurso natural e aceitável, o que acaba repercutindo no aspecto da violência, do crime organizado e dos grupos de extermínio. O que mais impressionou o coordenador do MNDH, porém, foi um dado que não aparece no documento: a recente descoberta, em Pernambuco, de uma possível rede de tráfico de órgãos humanos. O grupo teria convencido 30 pessoas a viajar até Durban, na África do Sul, para a retirada de um dos rins – o valor da “negociação” estaria em torno de R$ 40 mil. “É um fato de uma dramaticidade impactante sob o ponto de vista dos direitos humanos, como implicação da própria pobreza”, comenta. “Para mim, é um dado surpreendente, que mostra a situação dramática dos direitos humanos, mostra a que o ser humano pode acabar sendo submetido”.

Cidadania sem resgate

Nas duas últimas décadas, a exclusão social no país aumentou 11%. A pobreza costuma ser ponto de partida para a violação de direitos e resulta, via de regra, em dificuldade de acesso à educação, insegurança e violência policial, em um círculo vicioso que se alimenta de preconceitos. O professor Jailson de Souza e Silva, diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, não admite que se fale em resgate da cidadania para essas comunidades. Para ele, o pobre ainda não foi reconhecido para além do discurso dos economistas, que o tratam, segundo Jailson, como “coitadinho”. “Ou a pessoa é cidadã ou não é”, afirma.

Para Maria Luisa Mendonça, a população exige mudanças, e votou por elas nas últimas eleições. “Na nossa concepção de direitos humanos, que envolve os direitos econômicos, sociais e culturais, as políticas praticadas têm sido insuficientes para enfrentar as demandas históricas da sociedade brasileira por esses direitos básicos. O Brasil vive ainda, em alguns aspectos, a situação de colônia. É o caso da reforma agrária. Também é um absurdo que aqui ainda se passe fome. É um problema de modelo. E nossa conclusão é que seria necessária uma mudança na política econômica para que esses direitos sejam alcançados em toda a sua amplitude”.


Fausto Rêgo

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