Por Flavia Fascendini, com a colaboração de Maria Cruz Ciarniello Para alguns, lixo informático; para outros, a ante-sala da reciclagem. Cuidado com o meio ambiente, inserção no mercado de trabalho e inclusão digital são os principais ganhos derivados da reciclagem e recondicionamento de computadores. Neste artigo, o primeiro de uma série de quatro, apresenta-se uma introdução à problemática do lixo informático e a reciclagem de computadores no contexto latino-americano. Convidamos-lhes a acompanhar este percurso que começa aqui. Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o lixo eletrônico é “qualquer dispositivo que utilize um fornecimento de energia elétrica, que tenha atingido o fim de sua vida útil”. Mas determinar o fim da vida útil de um produto como um computador é uma questão bastante controversa. Quando chega a hora de desfazer-se desse aparelho que em algum momento foi o ápice da tecnologia? Quando já não funciona mais? Quando se consegue comprar um melhor para substituí-lo? [foto] Impressoras, monitores, discos rígidos, teclados e CPUs são alguns dos elementos que, uma vez descartados por seus donos, passam a ter rótulo de lixo informático. Cada ano que passa, o volume desse tipo de lixo cresce exponencialmente junto com seus níveis de produção e consumo. Segundo a Organização das Nações Unidas, cada ano em todo mundo são geradas cerca de 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico. O lixo eletrônico é altamente contaminante para o meio ambiente e representa sem dúvida um problema que precisa de uma solução urgente. Os computadores contêm substâncias extremamente prejudiciais ao meio ambiente e a saúde humana como alumínio, arsênio, cádmio, bário, chumbo, mercúrio, cromo, níquel, zinco e prata. Para introduzir-se no tema, encontra-se disponível online uma versão curta de “Citizens at Risk”, um documentário sobre as condições subumanas em que é processado o lixo eletrônico nas proximidades de Delhi, na Índia. As maiores geradoras de lixo informático são as organizações em geral, públicas e privadas. Os governos têm um peso importante na produção de lixo eletrônico, que se viu aliviado nos últimos anos pela posta em marcha de alguns programas estatais de reciclagem e recondicionamento de computadores. Mas atenção: os pequenos consumidores juntos produzem uma quantidade nada desprezível de resíduos informáticos. Conquanto o lixo informático represente só entre 7 e 12% do volume total dos resíduos dos aparelhos elétricos e eletrônicos (RAEE), resulta crucial entender o marco jurídico e político onde estes últimos se movem já que provavelmente seja dentro desse mesmo marco que os resíduos informáticos serão formalmente tratados. Em seu texto “O lixo eletrônico e a ilusão da obsolescência”, o pesquisador Felipe Fonseca convida a que se proponha uma interessante e estratégica pergunta: que é o lixo eletrônico? Isto é, quem determina o que é - ou não é - lixo eletrônico? Observando-se o dado de que cerca de 94% dos materiais usados nas máquinas são recuperáveis, estas perguntas parecem mais do que necessárias e oportunas. Fonseca integra a rede MetaReciclagem, uma rede que trabalha a favor da desconstrução do hardware, o uso de licenças abertas e a busca por transformação social. Como conhecedor do tema, Fonseca explica que o problema do lixo eletrônico começa basicamente com a produção e o consumo: “com o auxílio da mídia especializada, a indústria de eletroeletrônicos se esforça para criar a ilusão de obsolescência – convencer as pessoas de que precisam trocar seus computadores, celulares, câmeras e outros equipamentos em períodos cada vez mais curtos. Além disso, a indústria também adota práticas predatórias no processo produtivo – mão de obra precária, uso de matérias-primas extraídas sem levar em conta os impactos social e ambiental, entre outras. Por outro lado, as pessoas comuns, que em última instância têm a grande possibilidade de mudança desse cenário – é delas o poder de compra – ignoram a gravidade da situação e continuam acelerando o ritmo de consumo, sem pensar no que acontece com seus equipamentos daqui a poucos anos.” O blog http://lixoeletronico.org tem como objetivo informar sobre questões relacionadas ao lixo eletrônico no Brasil e no mundo, partindo do estudo “Resíduos eletroeletrônicos no Brasil” realizado em 2007 por investigadores brasileiros em conjunto com a ONG Waste.nl da Holanda. Dito estudo contribui com valorosas informações à discussão sobre o lixo eletrônico num país que é nada mais nem nada menos que o quarto maior mercado de computadores pessoais do mundo. Sabia que uma cidade como São Paulo produz em média 1 kg por dia de lixo eletrônico por habitante? Ou que dos 5.507 municípios brasileiros, somente 192 realizam uma coleta seletiva? [foto 2] Em uma entrevista coletiva, os membros da equipe do lixoeletronico.org afirmam que a América do Sul apresenta uma peculiaridade no tema do lixo eletrônico. “Por um lado produzimos uma grande quantidade de resíduos eletrônicos como em países desenvolvidos, mas ainda que não se veja claramente o fenômeno da mineração urbana como na Ásia e na África, nossas políticas públicas em relação aos resíduos sólidos e à responsabilidade do produtor ainda estão muito atrás da legislação correspondente dos Estados Unidos e da União Européia.” A mineração urbana é o processo de recuperação dos metais preciosos presentes no lixo eletrônico, entre eles ouro, cobre, paládio e platina, através da desmontagem, separação e incineração das peças. Trata-se de uma atividade sumamente rentável, mas que lamentavelmente não é muito controlada apesar de ser um trabalho de alto risco. Na China, a clandestinidade, a falta de controles e segurança neste campo é notória, enquanto que o Japão apresenta um sistema organizado que demonstra que é possível compatibilizar rentabilidade econômica com segurança para os empregados e cuidados para com o meio ambiente. Porém, que setores possuem algum tipo de responsabilidade em matéria de resíduos informáticos? Quais responsabilidades? O setor privado toma parte na matéria através da indústria de equipamentos e a indústria de reciclagem. Enquanto a primeira deveria assegurar uma correta gestão dos resíduos informáticos que produz, a segunda leva adiante as diferentes fases do processo de reciclagem como o recolhimento, armazenamento, desmontagem, disposição final dos resíduos tóxicos e recuperação dos componentes. A indústria latino-americana de reciclagem propriamente dita supõe basicamente a desmontagem profissional, a venda dos metais e plásticos extraídos no mercado local e a comercialização no exterior com empresas especializadas em recuperação de metais preciosos. Para que haja ganho neste processo, é necessário um volume importante que supere o custo da transferência. O Estado, por sua vez, tem responsabilidades quanto à regulação e monitoramento do processo de reciclagem, além do dever de educar sobre a importância das 3R (reduzir, reutilizar, reciclar). Uma ação governamental inteligente, por exemplo, seria o outorgamento de subsídios para financiar o tratamento daqueles elementos contaminantes não negociáveis. É possível apreciar que quanto mais se pesquisa sobre reciclagem e recondicionamento de computadores, cada vez mais a responsabilidade surge como uma peça chave. A responsabilidade parece ser o nó que une os diversos atores exigindo seu compromisso para enfrentar o problema do lixo informático. Vidas de gato Os equipamentos em desuso podem percorrer os seguintes circuitos: armazenamento transitório (em lares e em empresas), reutilização e recondicionamento comercial (em mãos de serviços técnicos e montadores de computadores), recondicionamento social (realizado por organizações comunitárias), reciclagem de computadores com tratamento de resíduos (realizado por empresas especializadas como Silkers S.A na Argentina ou Recycla no Chile) e, finalmente, os materiais atirados nas lixeiras sem tratamento algum. Um dos grandes desafios está no descarte final daquilo que já não tem como ser reaproveitado. Como tratar esse resíduo? Onde atirá-lo ou que fazer com ele? Existem projetos sociais que encaram esta instância do ciclo de reciclagem, dando novo significando aos elementos descartados e transformando-os em, por exemplo, peças de arte. Robótica Livre ou Metareciclagem são experiências que exemplificam esse tema. Porém, dado que a presente investigação se concentrará naquela porção do denominado lixo eletrônico que se pode reciclar e recuperar, não nos aprofundaremos neste aspecto. A reciclagem se entende como a ação de voltar a introduzir no ciclo de produção e consumo materiais obtidos de resíduos. Quando se recicla um computador, suas partes ou as matérias primas de suas partes são reutilizadas na fabricação ou montagem de novos produtos. O mercado de reciclagem cresce mais cada dia. Porém, na maioria dos países da América Latina se trata de mercados que contam com uma grande informalidade. Como explica Fonseca, Brasil é um destes. A principal razão da informalidade do mercado no caso brasileiro – bem como na grande maioria - está numa questão legal. O Congresso brasileiro ainda não aprovou a política de resíduos sólidos que recebe múltiplos elogios no mundo inteiro já que responsabiliza os fabricantes pelo manejo dos refugos antes de sua disposição final. O recondicionamento de computadores, entendido como uma forma de reciclagem, é o processo técnico de reestabelecimento das condições funcionais e estéticas de uma máquina. Através do recondicionamento, o equipamento dá começo a um novo ciclo de vida (já que o resultado final é comparável ao de um computador novo). A reciclagem de computadores, bem como o recondicionamento, são considerados na presente investigação como saídas estratégicas ante o problema do lixo informático, saídas que redundam em benefícios sociais, educativos e meio ambientais. A maioria dos projetos de recondicionamento de computadores na América Latina pode dividir-se em duas grandes categorias: por um lado, projetos de educação formal, impulsionados por governos, com um tipo de recondicionamento profissional e com um público destinatário, geralmente infantil; por outro lado, projetos de organizações sociais, impulsionados de forma autônoma, com um tipo de recondicionamento artesanal e com um público destinatário mais variado. Estes últimos, conquanto escassos, são exemplo de como podem pôr-se em marcha soluções efetivas. “As organizações não governamentais aparecem como atores relevantes nisto, mas são muito poucas e o problema é que aparecem como importantes porque não há atores estatais relevantes”, destaca Héctor González, coordenador do Subprograma Gestão Integral de Resíduos Sólidos Urbanos do Instituto Nacional de Tecnologia Industrial da Argentina. “Também é necessário ter vontade política para isto porque os fundos não são suficientes”, agrega. Entre os projetos sociais de transferência de equipamentos mais destacados nos países industrializados e que funcionaram como modelo em iniciativas latino-americanas encontramos o caso da Computer Aid International ou World Computer Exchange nos Estados Unidos. A Electronics Take Back Coalition é um claro exemplo de ações não governamentais que promovem a reciclagem responsável por parte da indústria eletrônica. Mais perto, a Plataforma de Resíduos Eletrônicos do PC na América Latina e Caribe, é um projeto sem fins lucrativos que articula iniciativas que promovam soluções para a prevenção, a gestão e o tratamento final dos resíduos eletrônicos gerados pelos computadores na região. Executado por Sur-Corporación do Chile, não é casual que seu Comitê esteja integrado por representantes de Computadores para Educar da Colômbia, da Fundação Equidade da Argentina e do Centro Regional do Convênio da Basiléia para a América do Sul, todos espaços e iniciativas exemplares no manejo do tema e consultados na presente investigação. Especificamente sobre a Fundação Equidade se publicará em breve uma entrevista realizada com Carolina Aniño, diretora executiva e Oscar Zúccolo, da Escola Taller Equidad. A organização Nodo Tau de Rosario, Argentina, é outro exemplo de trabalho no recondicionamento de computadores. Já recondicionaram mais de 100 equipamentos, que foram doados a diferentes telecentros comunitários de informática e organizações sociais, fornecendo também apoio técnico em seu uso e manutenção. “Um problema que se está vendo agora é o da troca dos monitores clássicos (CRT) pelos de plasma. Isso está gerando uma quantidade de monitores obsoletos, que não é que não funcionem, senão que consomem bem mais do que os de plasma e é muito oneroso processá-los para reciclar as partes”, destaca Eduardo Rodriguez, responsável do Banco de Máquinas da Nodo Tau. “Com este panorama serão vistas montanhas de monitores nos depósitos de lixo”, adverte. Segundo alguns especialistas, os projetos sociais de reciclagem e recondicionamento de computadores ainda estão longe de ser perfeitos, e há alguns requisitos que deveriam cumprir para atingir um melhor desempenho: profissionalizar-se seria um primeiro passo, atingir maior associatividade e ter acesso a subvenções que apontem à sustentabilidade do modelo, seriam outros. Falou-se nestes últimos parágrafos do trabalho das organizações sociais, porém o que ocorre com o Estado neste palco? Se tem responsabilidades, seja de regulação ou educativas, entre muitas outras, cabe perguntar-se quem regula o compromisso do Estado? O Estado entorpece ou favorece a reciclagem de computadores? Como se visualiza desde o Estado esta problemática que, a primeira vista, parece técnica mas em verdade é política? Existem experiências estatais de reciclagem de computadores que possam considerar-se dignas de réplica? O próximo capítulo abordará, entre muitas outras, essas perguntas, pondo de manifesto a faceta política multinacional da problemática da reciclagem de computadores. “O projeto que deu origem a este trabalho foi o ganhador da Bolsa AVINA de Investigação Jornalística. Os conceitos, opiniões e outros aspectos do conteúdo da investigação são responsabilidade exclusiva do autor e/ou meio”. “El proyecto que dio origen a este trabajo fue el ganador de las Becas AVINA de Investigación Periodística. Los conceptos, opiniones y otros aspectos del contenido de la investigación son responsabilidad exclusiva del autor y/o medio”.
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