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A biossegurança, os OGMs e a polêmica

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





A biossegurança, os OGMs e a polêmica
Paulo Duarte, sobre imagens
do Greenpeace

A manipulação genética e tudo que lhe diz respeito, sempre que abordados, são cercados de polêmica, fruto de um misto de desconhecimento, medo e preocupação ética. Pudera: quando o Homem começa a brincar de Deus, alterando artificialmente a natureza, mexe com a vida, com a ordem estabelecida das coisas e seres e pode, assim, causar mudanças imprevistas, inseguras e até irreversíveis. Pior: alterações para as quais a sociedade não está sequer moralmente preparada para assimilar. Assim acontece com o assunto da clonagem e assim vem acontecendo com o tema da manipulação de alimentos e remédios. Biotecnologia deve ser executada com cuidado; biossegurança é motivo comum de preocupação; biogenética por vezes não é nem devidamente compreendida; e por aí vai. A presença do prefixo "bio" é quase sinônimo de complexidade no assunto.

Assim, era de se esperar que o projeto de lei (PL) de biossegurança, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional no dia 31 de outubro, causasse a consternação que vem causando. O PL nº 2.401 "estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados - OGMs e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional e dá outras providências", conforme indica a introdução da proposta. Em termos práticos, trata da autorização para pesquisas e comercialização de transgênicos. Portanto, dentro da lógica de que manipular geneticamente alimentos é, via de regra, motivo para manifestações acaloradas (uma vez que mexe com o que seria "natural"), o projeto de lei vem obtendo o previsível: polêmica. Porém, com um agravante: a discussão sobre transgênicos implica não só debates sobre questões éticas e biosseguras. O componente econômico pesa consideravelmente - mesmo que de maneira camuflada - nas discussões e na tramitação da proposta.

Os lados

O projeto de lei cria um Conselho Nacional de Biossegurança, a ser integrado pelos ministros da Casa Civil, da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, da Ciência e Tecnologia, do Desenvolvimento Agrário, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Justiça, da Saúde, de Segurança Alimentar e Combate à Fome, do Meio Ambiente, das Relações Exteriores, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e pelo Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca. Este Conselho seria a última e definitiva instância para deliberar sobre os assuntos relacionados à biossegurança no país. Além disso, define a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), integrante da estrutura básica do Ministério da Ciência e Tecnologia, como tendo caráter consultivo e deliberativo, "para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança. Assim, a instância deixa de ser a única responsável pela decisão sobre liberação dos transgênicos, como antes acontecia. Além disso, a proposta cria, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, o Sistema de Informações em Biossegurança (SIB), "destinado à gestão das informações decorrentes das atividades de análise, autorização, registro, monitoramento e acompanhamento das atividades que envolvam OGMs e seus derivados".

As reações das ONGs da área do meio ambiente foram, em sua maioria, favoráveis ao PL. Isto pode ser explicado, em parte, pelo fato de que a proposta apresentada pelo Governo Federal foi elaborada com contribuição significativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA), que tem à frente uma equipe identificada com os propósitos defendidos pelas organizações não-governamentais da área - a começar pela própria titular da casa, a ministra Marina Silva, egressa de movimentos sociais. Desse modo, muitos dos pontos propostos e sustentados pelo MMA - e refletidos no PL - são eco das preocupações das entidades da sociedade civil que lidam com assunto.

Isto já se mostrou verdade durante a Conferência Nacional do Meio Ambiente, ocorrida entre final de novembro e início de dezembro de 2003, em Brasília. Na ocasião, o texto do projeto foi apresentado aos representantes de ONGs que participavam do evento, que, em sua maioria, consideraram positivo o seu teor. Conforme afirmou à Agência Brasil na época, o coordenador do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Fábio Abdalla, considerou que a "conferência confirmou sua posição favorável ao projeto de lei de Biossegurança". Segundo Abdalla, a recomendação comum entre as pessoas que participaram da conferência seria a de proibir a comercialização dos OGMs.

Para Flávia Londres, da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA) e integrante da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos, "o PL poderia ser melhorado. Mas, quanto a pontos fundamentais, resolve". Ela lembra que, com relação à liberação comercial dos OGMs, o texto do projeto de lei cria instâncias que podem contribuir para avaliações mais criteriosas. Londres se refere à criação do Conselho Nacional de Biossegurança, que vem sendo conhecido como conselho de ministros. Presidido pelo Ministro da Casa Civil, o conselho tem não só a competência de formular e implementar a Política Nacional de Biossegurança, mas também a de avaliar "se entender necessário, em última e definitiva instância, os aspectos de conveniência e oportunidade, os pedidos de autorização para atividades que envolvam a construção, cultivo, produção, manipulação, transporte, transferência, comercialização, importação, exportação, armazenamento, pesquisa, consumo, liberação e descarte de OGM e seus derivados", como indica o artigo 7º do PL em debate no Congresso Nacional. Ou seja, seria deste órgão a decisão final sobre um assunto, depois de este ser avaliado por outras instâncias.

Assim, no caso de pedido de liberação comercial dos OGMs, além do pleito ser analisado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), como ocorre hoje em dia, também seria avaliado por mais uma ou duas instâncias. "Se a CTNBio desse parecer negativo a algum pedido, este parecer seria terminativo. Porém, se resolvesse pela aprovação de determinado pleito, o pedido teria, então, que passar pelos órgãos de fiscalização de cada ministério [especificamente dos ministérios da Saúde, da Agricultura, do Meio Ambiente e a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca], que poderiam pedir informações mais completas e detalhadas sobre o assunto. O PL cria também um conselho formado por ministros, que teria de avaliar e decidir sobre todos os pedidos de liberação comercial de transgênicos, caso tais pedidos fossem avaliados positivamente pelas instâncias anteriores", explica a representante da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos.

Em um outro setor da sociedade, no entanto, o teor do PL não foi tão bem recebido. Grupos de cientistas têm se demonstrado descontentes com a proposta. Encabeçados pela Associação Nacional de Biossegurança (Anbio), alguns pesquisadores fizeram protestos no Congresso Nacional, no início de dezembro. Na terça-feira, dia 9, e na quarta-feira, dia 10, em um movimento que vêm chamando de "Luto pela Ciência", eles procuraram sensibilizar parlamentares para a importância da desburocratização das pesquisas no país.

Comercialização x Pesquisas

O principal ponto defendido pelos cientistas é a necessidade de diferenciação do tratamento dado a pesquisas e daquele dispensado à comercialização dos OGMs. "O cenário das pesquisas com OGMs hoje no Brasil está paralizado. Do ponto de vista da pesquisa, o processo precisa ficar mais fácil, com o risco de termos um prejuízo irrecuperável para o país. Vários projetos de mestrado e doutorado estão sendo cancelados. O PL vem para tentar resolver essa questão, mas não resolve. Pior, agrava. O fato de um pedido ter que passar pela CTN-Bio, depois pelos órgãos de fiscalização e, posteriormente, ainda pelo conselho de ministros... esse processo não leva menos que um ano", defende Leila Oda, presidente da Anbio.

Deise Capalbo, líder da Rede de Biossegurança da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) - entidade vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - também acredita que o PL, enviado pelo próprio governo, poderá burocratizar o processo de liberação das pesquisas com OGMs no país. "A pesquisa pode ser mais simplificada do que a comercialização. O projeto de lei prevê informações que devem ser apresentadas pelos pedidos de liberação. Se for só um projeto de pesquisa, algumas delas não deveriam precisar ser apresentadas", defende a diretora da rede, que existe há um ano e só faz a parte de pesquisa que não precisa ser levada a campo. Ela reconhece no entanto, que as pesquisas com OGMs que demandarem plantio necessitam e devem ser conduzidas com mais cuidado.

Ao comentar sobre os motivos alegados pelos pesquisadores que vêm participando da campanha "Luto pela Ciência", Flávia Londres é taxativa: "a Anbio é um grupo de lobby financiado pelas indústrias. Todos os pontos que certos pesquisadores vêm defendendo se referem, em última instância, à liberação comercial de transgênicos". Peter Mann Toledo, diretor do Museu Emilio Goeldi (entidade de pesquisa ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia), defende que as pesquisas precisam certamente ser estimuladas no país - "falta investimento na pesquisa e incentivo ao acesso a novos instrumentos", diz - mas reconhece que cuidado e bom senso são necessários: "pesquisa não pode ser prejudicial nem no processo, nem para os beneficiários. Por isso, aquelas feitas com transgênicos precisam ser conduzidas de forma criteriosa".

O estágio atual

Atualmente, com o recesso do Congresso Nacional, a tramitação do PL está parada. O regime de urgência com que tramitava a proposta foi retirado pelo Governo Federal no dia 10 de dezembro, ao perceber que o assunto era polêmico demais para ser votado com a rapidez que seria obrigatória e que a matéria passaria a trancar a pauta do Congresso a partir do dia 15 de dezembro. Assim, tudo indica que o PL será votado somente em fevereiro, quando serão retomados os trabalhos na Câmara e no Senado. Existe ainda a possibilidade de convocação extraordinária do Congresso, de 20 de janeiro a 14 de fevereiro, para votação de temas como o próprio PL de Biossegurança, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) paralela da Previdência, alterações na reforma tributária, o Plano Plurianual, entre outros. Possibilidade essa remotíssima: uma convocação extraordinária custa muito aos cofres do governo.

De qualquer maneira, assim que o projeto de lei estiver de novo em votação, haverá pressões a serem enfrentadas. A Anbio já avisou que vai continuar a fazer mobilizações no Distrito Federal. "Vamos retomar o 'Luto pela Ciência', que significa tanto o fato de estarmos de luto quanto indica que lutamos pela ciência. Assim, vamos continuar a expor porque acreditamos que existe uma moratória na área científica brasileira", avisa a presidente da instituição, Leila Oda. A principal pressão a ser encarada, no entanto, é no âmbito do próprio governo, onde o PL foi iniciado e onde provavelmente será acertado. O governo e a comissão especial montada para analisar o projeto precisam chegar a um consenso sobre o parecer a ser apresentado pelo relator do projeto, deputado Aldo Rebelo. A indefinição sobre este parecer, aliás, foi um dos motivos pelos quais o regime de urgência do PL foi retirado. Neste trajeto, o Executivo precisará fazer a concertação sobre até que ponto preservar os pontos sustentados pelo MMA, garantindo, assim, sua força, e até que ponto fará concessões para que a área da biossegurança fique mais "segura" no país.

Maria Eduarda Mattar

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