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Reflexão necessária

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Reflexão necessária
Bruno Marcello

No dia 3 de janeiro, um menino de 13 anos que dormia em uma praça de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, teve 40% do seu corpo queimado. O agressor – outro menino da mesma idade – confessou ter usado solvente para atear fogo à vítima, a quem acusou de pertencer a um grupo inimigo. O crime trouxe à tona lembranças do ocorrido em 1997, em Brasília, com o indígena pataxó Galdino Jesus dos Santos, também queimado vivo por cinco adolescentes. Mais do que isso, esse novo episódio de violência foi interpretado por diversas pessoas envolvidas na temática da infância e da adolescência como um sintoma de que é preciso rever as políticas de atendimento a jovens em situação de rua. O juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, Siro Darlan, disse que o número de abrigos municipais é insuficiente e faltam programas voltados para os pais dessas crianças. Afirmou ainda que existe um déficit de 80 mil vagas nas creches da cidade. Sobraram críticas também para o programa Zona Sul Legal, do governo do estado, que prevê o recolhimento da população de rua – o próprio garoto queimado teve diversas passagens por abrigos, mas sempre acabava indo embora.

O secretário de Segurança do estado, Anthony Garotinho, culpou a carência de abrigos pela volta das crianças às ruas. O prefeito César Maia, por sua vez, reclamou que o governo do estado não cumpre a Lei Orgânica de Assistência Social – segundo ele, o fundo de assistência pública tem recebido apenas contribuições do governo federal e da prefeitura. "A responsabilidade é de todos que atuam na área social, não há responsabilidade isolada. O sistema de proteção é tripartite. O equívoco nesse caso é tentar achar um culpado”, diz o secretário Municipal de Desenvolvimento Social, Marcelo Garcia.

Vitória Lúcia Faria, vice-presidente da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) – órgão da administração estadual responsável pela normatização, implantação e execução de políticas de garantias dos direitos de crianças e adolescentes –, pondera que o menino que foi queimado teve várias passagens por instituições de abrigo, o que mostraria a preocupação do poder público de acolhê-lo. E argumenta que é preciso passar a cultuar um pouco mais a família. “O caso desse garoto não é sintoma de falência de política pública, mas sim da família. Que família é essa que deixa esse menino ficar na rua?”. Para ela, os meios de comunicação poderiam exercer um papel importante se passassem a enfatizar a questão dos laços afetivos.

Diretora executiva da Associação Brasileira Terra dos Homens, Cláudia Cabral considera que o atendimento às famílias merece atenção especial. “A gente se acostuma a ver esses jovens como 'filhos do poder público'. Ninguém percebe que, se tivesse uma pessoa física para cuidar dessas crianças, elas não seriam 'filhas do governo'. Por isso acho que o foco principal é o fortalecimento dessas famílias e da região onde vivem”.

Outra preocupação é com a forma como a mídia aborda o tema. A Terra dos Homens, que integra a Rede Rio Criança e participa da Comissão de Comunicação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), tem dedicado especial interesse às relações com a imprensa, buscando uma aproximação com a sociedade e um estímulo ao envolvimento das pessoas nessas questões. Ela acha que falta uma conscientização de todos – setor público, empresas e os próprios cidadãos. Sintoma disso se verificou na última votação para composição do Conselho Tutelar – órgão que recebe denúncias e é responsável por garantir a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “A população do Rio participou com apenas 0,25% dos votos. Então... quem conhece o ECA?”, indigna-se.

Cláudia percebe, de outro lado, uma dificuldade para a implantação de políticas para a infância e a juventude. Isto se deve, segundo ela, à forma fragmentada de administração e acompanhamento dessas políticas. Enquanto isso perdurar, lamenta, não haverá mudanças estruturais. “Fica uma briga entre poderes: o Judiciário culpa o Executivo, que diz que não tem condições de fazer. Já a sociedade civil fica dependendo de apoio para viabilizar suas iniciativas, mas as empresas não investem como poderiam. É um novelo onde estamos todos embrulhados, um jogo de forças que precisa de consciência. Por isso acho fundamental a comunicação para que se implemente o Estatuto”. Ao ECA, aliás, ela faz uma crítica, por não ter determinado a autonomia da gestão do Fundo da Infância e da Adolescência. Esse fundo capta recursos para a implantação de programas e iniciativas voltados para crianças e adolescentes em situação de risco e é administrado pelo Conselho Municipal. “O que acontece é que o dinheiro não sai”, reclama.

Recolhimento

O problema é complexo. Seria também o caso de rever as políticas pedagógicas empregadas pelos próprios abrigos? Para o secretário municipal, isso é natural. “Práticas sociais e educativas precisam ser repensadas sempre. São um processo, não há receita de bolo para a metodologia dessas práticas. Ai de quem disser que não precisa mudar!”, exclama Marcelo Garcia. A assistente social Cristina Salomão, coordenadora sociopedagógica da Associação São Martinho, diz que precisa, e dá como exemplo o caso de um menino que já era atendido por um abrigo e foi encontrado por ela pedindo esmola na rua. Os dois começaram a conversar e ela quis saber por que ele fazia aquilo. A resposta foi desconcertante: o garoto gostava de tomar refrigerante na hora do almoço, coisa que o abrigo não oferecia.

“Estamos dando respostas muito pobres para jovens que têm desejos como quaisquer outros. Continuamos a ver a população pobre não como sujeito de direito. Ainda é a ideologia do colonizador, um olhar que permeia nossa prática desde o descobrimento. É aquele olhar de quem chega a uma favela e comenta que tem um monte de homens tomando cerveja, como se eles só pudessem viver trabalhando. É o olhar de quem encontra uma moradora de favela que cuida da aparência e comenta que ‘as unhas dela são mais bem cuidadas que as minhas’. Não percebem que o menino quer entrar em uma oficina de dança em vez de aprender a fazer vassouras. Nossa imagem social, que se reflete nos abrigos, é que essas crianças e adolescentes pobres têm apenas de estudar e trabalhar. E aí, claro, a rua é muito mais sedutora, o abrigo é muito mais cruel. Esses jovens vêm cada vez mais para as ruas devido a um quadro de miséria cada vez maior. Por outro lado, os abrigos, da forma como estão colocados, não atendem às necessidades maiores dessas crianças e desses adolescentes. É evidente que esses meninos e essas meninas querem ter um projeto de vida, têm sonhos e desejos”, analisa.

Quanto ao fato de não serem atraentes, o secretário Marcelo Garcia não discorda: “O abrigo, por si só, não é atraente. É uma estratégia de proteção entre outras. É uma dicotomia o que vocês jornalistas estão querendo dizer. Vocês estão querendo transformar abrigo em solução permanente”. Garcia lembra que as instituições abrigadoras não são mais fechadas como antes, que as crianças entram e saem diariamente e, por isso, as metodologias devem ser diferenciadas. Mas garante: os abrigos cumprem perfeitamente sua função de proteger e reintegrar as famílias. “Mas é preciso lembrar que abrigo não é casa, é uma solução temporária. Há várias formas de proteção. O abrigo é apenas uma”. Entre as alternativas existem a família acolhedora (uma família provisória), a casa-lar (uma guarda-provisória múltipla, com uma família acolhendo um grupo de crianças) e a república (nos casos em que o jovem já pode viver autonomamente).

À crítica quanto à carência de vagas em creches o secretário responde garantindo que o município do Rio conta com a maior cobertura do país, com mais de 500 creches públicas ou conveniadas, atendendo 92 mil crianças. “Precisa de mais? Precisa, mas é questão de como olhar o copo com água na metade. Ele está meio cheio ou meio vazio? Em 2003 fechamos com mais sete creches e só este ano serão mais 79, cujo convênio assinamos em dezembro. Atenderemos mais 14 mil crianças. É um ritmo avassalador”, entusiasma-se.

Acolhimento

Outra questão lembrada diz respeito à adaptação dessas crianças. Nenhum programa de recolhimento atende se não houver acolhimento. Cristina defende que o conceito pedagógico esteja impregnado por quem está na ponta, para que se criem cidadãos plenos. “Essas crianças são recolhidas da rua e jogadas num abrigo, com gente que nunca viram, num quarto coletivo, com um monte de regras. Ora, o que é que nós fazemos com as nossas crianças, quando vão entrar na escola ou mudar de escola? A mãe fica acompanhando durante uma ou duas semanas, até concluir a adaptação. Por que com uma criança pobre deve ser diferente?”. Cristina afirma ainda que os funcionários não são preparados para o trabalho. Esse conjunto de fatores, conclui, faz com que o jovem não consiga romper a situação de rua. “Não se entende, por exemplo, que a criança pode não gostar de quiabo. O discurso ainda é do tipo: ‘se passava fome na rua, então tem que comer sem reclamar’”.

As drogas são outro problema grave – e cada vez mais sério. Há alguns anos, o que se consumia nas ruas era apenas cola de sapateiro. Hoje o tíner, a cocaína e até mesmo o crack são consumidos. Garantir tratamento para os dependentes químicos, porém, é uma grande dificuldade. “Geralmente não há vagas”, diz Cristina. Conseguir uma, no entanto, significa apenas vencer uma primeira etapa. “Como eles vêm de uma cultura de rua, é preciso que se entenda a dificuldade que encontram para seguir uma disciplina de ambulatório”.

Em meio a tantas adversidades, o amparo familiar pode ser um aspecto fundamental. Mas os programas são insuficientes e às vezes cometem o erro de culpar as famílias, em vez de responsabilizá-las. “Não duvido que esses meninos de Copacabana tivessem na rua condições muito melhores do que no lugar onde moram. Tenho certeza de que estavam muito bem amparados por algum restaurante próximo que lhes dava comida, por alguma senhora que dava um casaco para se protegerem do frio, por algum turista que dava dinheiro", observa Cláudia Cabral.

Para ela, os focos principais dessa luta pela formação de cidadãos plenos devem ser o fortalecimento das famílias desses jovens e da região onde elas se encontram. E, paralelamente, o investimento em iniciativas que coloquem o jovem no papel de protagonista. “A gente precisa parar de olhar de cima, com o sentido da dúvida, ou de baixo, com o sentido do medo”.

Fausto Rêgo
colaborou Marcelo Medeiros

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