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Dignidade ao mar

Autor original: Marcelo Medeiros

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Dignidade ao mar

No dia 12 de novembro oito africanos, vindos da Costa do Marfim e da Guiné, chegaram ilegalmente ao porto de Recife (PE). No dia seguinte, outros dois, também da Guiné, entregaram-se à Polícia Federal. Alguns foram obrigados a se jogarem ao mar, depois de serem descobertos pela tripulação do navio em que viajavam clandestinamente e espancados. Quase dois meses depois, em seis de janeiro, mais seis imigrantes africanos, oriundos de outros países (Nigéria, Gana e Libéria), aportaram na mesma cidade. Todos foram fichados pela Polícia Federal e detidos em presídios - o que, segundo a advogada Vera Baroni, que acompanha o caso, é uma atitude arbitrária. Hoje, todos estão soltos graças à mobilização de organizações da sociedade civil.

Os dois casos ilustram o despreparo dos órgãos do governo federal ao lidarem com imigrantes clandestinos, que tiveram seus direitos humanos desrespeitados. Nesta entrevista Baroni diz que a Polícia Federal precisa se requalificar para lidar melhor com esse tipo de situação e encarar o fato de que o Brasil é rota de imigrantes ilegais. Para a coordenadora geral da ONG Uialamakagi – Sociedade de Mulheres Negras de Pernambuco, que está prestando assessoria jurídica aos 16 refugiados, não é possível dizer que há racismo na política migratória nacional. Porém, caso sejam detectadas práticas preconceituosas por parte do governo, as organizações estão preparadas para acioná-lo judicialmente e denunciá-lo às Nações Unidas.

Baroni explica que todos os imigrantes são jovens e vieram ao Brasil por acaso, pensando estarem viajando rumo à Europa. Porém, agora querem permanecer no país por acharem que podem ter aqui uma vida melhor do que em suas terras de origem. Atualmente, os africanos esperam apreciação do caso pelo Conselho Nacional para Refugiados, o que só acontecerá a partir de fevereiro. Enquanto isso, eles ficam sob a guarda de organizações defensoras de direitos humanos da capital pernambucana.

Rets - Em novembro, dez africanos chegaram ilegalmente a Recife. O que aconteceu com eles e qual é a atual situação?

Vera Baroni - Em 12 de novembro recebemos informações de que chegariam a Recife seis passageiros clandestinos de um navio chinês. Eles foram achados nadando em alto mar por um pescador, que os resgatou. Um deles foi levado imediatamente ao hospital, por ter tido um braço quebrado após ser espancado na embarcação estrangeira.

Em seguida, todos foram levados à Polícia Federal (PF). Horas depois, a Polícia Militar chegou à sede da PF com mais dois homens, encontrados no mesmo navio. Esses, quando viram as luzes da cidade, jogaram-se ao mar e nadaram até o porto, onde foram presos. No dia seguinte, mais dois foram à Polícia Federal espontaneamente. Segundo a versão deles, saíram do porto de Recife escondidos em um caminhão. Esses últimos são da Costa do Marfim e tinham status de refugiados concedido pelo governo da Guiné.

Conseguimos conectar os três grupos, que estavam no mesmo navio, sem se conhecerem. O primeiro alegou estar sem comida ou água em um compartimento muito apertado. Haviam se alimentado a viagem inteira de barras de cereais. Quando não agüentaram mais o sufoco, começaram a bater na porta para poder sair e então foram descobertos pela tripulação. Houve discussão entre eles e alguns marinheiros os agrediram. Um teve o maxilar quebrado e outro tomou golpes de barra de ferro, que quebraram seu braço. Dos seis, três foram jogados ao mar e os demais obrigados a fazer o mesmo. Nadaram por três horas até serem resgatados.

Foi uma situação muito difícil para eles, que vêm da Guiné. Estive no local onde foram atirados. As ondas eram muito altas e fortes.

Rets - Ao chegar em terra firme, como eles foram tratados pelas autoridades brasileiras?

Vera Baroni - Primeiro foi a Polícia Federal, que realizou exame de corpo delito neles e depois os encaminhou a um hotel, onde permaneceram acompanhados por dois agentes. Fizemos acompanhamento sanitário e eles foram vacinados. No dia 23 de dezembro, às 18h30, a Polícia Federal chegou com agentes armados os chamando para ir a outro hotel. Os africanos pediram um tempo para poderem arrumar malas, mas não puderam fazer nada. Em seguida foram levados ao Instituto Médico Legal (IML) para novo exame de corpo delito e de lá foram para uma prisão de segurança máxima, o Centro de Observação Criminológica e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel), por decisão judicial pedida pela PF.

Foi um momento de tensão, pois os imigrantes alegaram nunca terem sido presos na vida e não aceitavam que isso acontecesse. Chegaram a dizer que iriam se matar. A ordem de prisão era de 30 dias, extensível por mais 30. Decidiram então fazer greve de fome, que durou dois dias, tempo que levamos para entrarmos com um pedido de habeas corpus e conseguirmos libertá-los. Agora, não estão sob a guarda da Polícia Federal, mas da sociedade civil. Algumas organizações se responsabilizaram por eles.

Rets - As atitudes da Polícia Federal eram legais, cabíveis ao caso?

Vera Baroni - O Estatuto do Estrangeiro prevê prisão administrativa, mas ela não pode ser em presídio, ainda mais de segurança máxima. Eles podem até ficar presos em casas, hotéis, mas em presídio, não. Até porque, entre os dez, havia menores de 18 anos.

Poderia haver vários problemas se eles permanecessem presos. As regras de segurança proíbem qualquer preso de se aproximar dos muros da prisão e dão ordem aos guardas para atirarem se houver qualquer atitude suspeita. Eles estavam desesperados, a toda hora chegavam perto das paredes. No presídio ninguém fala a língua deles [o idioma oficial da Costa do Marfim e da Guiné é o francês] e a cultura é muito diferente. Eles poderiam ter uma atitude que provocasse outras, talvez até violentas. Nesse presídio há visitas íntimas uma vez por semana. Imagina se esses africanos falam alguma coisa para a mulher de algum outro preso e este não gosta? Como os detentos não entendem a cultura e o que eles estão falando, havia possibilidade de brigas, que por sua vez poderiam gerar até rebeliões. A direção ficou apreensiva com a estada dos africanos. Eles jamais poderiam ter sido colocados em presídios, foi uma decisão arbitrária.

Rets - As organizações que hoje acompanham o caso estão tomando alguma medida em relação a isso?

Vera Baroni - Como a Polícia Federal não apresentou o questionário para dar entrada em pedido de refúgio, a gente pediu. Tomamos informações e protocolamos o pedido na Polícia Federal, já que ela não estava respeitando o pedido que havíamos feito. Estávamos completando o questionário quando a PF chegou. Sete papéis estavam prontos e outros três terminamos no presídio. Quando formalizamos o pedido, o Tribunal de Justiça teve que liberá-los, segundo a lei 9.474/1997, que implementa o Estatuto do Refugiado.

Rets - Além desses dez, em 6 de janeiro chegaram outros seis africanos. Como está a situação deles depois de tudo que aconteceu com os demais?

Vera Baroni - A história deles é diferente. Eles embarcaram no porto de Lagos, na Nigéria. Dos seis, dois são nigerianos, um de Gana e três da Libéria, mas viviam desde pequenos na Nigéria. Todos trabalhavam no porto e, por isso, deduzimos que houve facilidades para embarcarem. Saíram de lá no dia 31 de dezembro e em dois dias foram descobertos. O capitão informou a Companhia Marítima de que estava transportando cinco clandestinos que seriam entregues assim que aportassem.

No dia em que atracaram, descobriram mais um. Mas a situação deles foi diferente, foram alimentados, dormiram em camas, não sofreram maus tratos. Assim que soubemos, publicizamos o caso e eles foram recebidos pela PF. A polícia pediu ao juiz prisão administrativa e os levou, novamente, direto para o presídio em mais uma atitude arbitrária. O fato de entrarem ilegalmente não quer dizer que precisam ser extraditados (expulsos), mas, sim, expatriados. E há uma grande diferença entre as atitudes.

Rets - Qual a diferença entre extradição e expatriação?

Vera Baroni - Só é expulso (extraditado) aquele que já esteve no país e foi expulso por alguma razão ou então aquele que entra em situação de violação grave da lei, como tráfico de drogas. No caso dos africanos, eles entraram ilegalmente, sem documentos e de modo incorreto. Por isso, devem ser repatriados, ou seja, enviados de volta às suas nações de origem. O processo de repatriação depende de inquérito da Polícia Federal, que o encaminha ao Ministério da Justiça. Se o imigrante pede refúgio, o pedido deve ser apreciado e deliberado também pelo Ministério. No caso deles, a agência marítima responsável pelo frete do navio deve custear a volta.

Rets - Em novembro, foram dez imigrantes e, em janeiro, outros seis. O Brasil é um destino escolhido ou eles chegam aqui por acaso?

Vera Baroni - Por acaso. Nenhum dos 16 sabia que estavam vindo para o Brasil. Em geral alegam terem pensado que estavam indo para os EUA ou Europa. Um dos refugiados pensou que estava na Espanha por causa da movimentação noturna e das pessoas nas ruas à noite.

Nossa hipótese é de que, após os atentados de 11 de setembro, os portos e embarcações norte-americanos estejam mais vigiados enquanto na Europa o aumento da xenofobia esteja dificultando a imigração. Por isso acreditamos que haja uma lenta mudança de rota na busca por melhores condições de vida.

O Brasil já recebeu clandestinos de Portugal, Espanha, Holanda, China, Alemanha, Polônia, Itália e outros países. Como o Brasil sempre teve um porto aberto, queremos que os africanos tenham ao menos o mesmo tratamento. O país tem uma dívida com os africanos. Foram os negros que construíram a nossa riqueza. Em 2001, o governo participou de uma conferência internacional sobre racismo, xenofobia e outras formas de discriminação [realizada em Durban, África do Sul] e assumiu o compromisso de reparar os crimes de escravidão. Os 179 países reconheceram que o tráfico é um crime contra a humanidade e precisa ser reparado como já se fez com as vítimas do holocausto.

Rets - Qual o perfil desses imigrantes?

Vera Baroni - Todos são muito jovens. O mais velho tem 29 anos; outro tem 23; um deles tem 21 e os outros são menores de 21 anos. Eles saem de seu país em busca de trabalho e estudo, vindos de situações muito difíceis. Um deles até era estudante, dava aula no primário. Mas os outros eram pedreiros, motoristas, nunca foram à escola. Correram riscos para ter uma vida melhor.

Rets - Há racismo na política imigratória brasileira?

Vera Baroni - Não posso dizer que haja, em nenhum momento afirmei isso. Mas considerando que há uma nova rota, o Brasil deve se colocar como parte dela. O governo tem assumido que precisa fazer ações de reparação para com os africanos e com certeza buscará uma saída para esses casos. Não podemos admitir a estadia em presídios, o que caracteriza racismo e preconceito. Ao fazer isso, pressupõe-se que eles são marginais, criminosos. Caso esse tipo de prática continue, o governo vai ser denunciado por racismo às Nações Unidas e processado.

Rets - As organizações que estão envolvidas nos casos estão mobilizadas para entrar na Justiça?

Vera Baroni - Claro, por isso eles estão sendo acompanhados.

Rets - A política imigratória brasileira é boa? As leis são adequadas para a atual conjuntura?

Vera Baroni - Nós em Recife só agora nos deparamos com a realidade. Com certeza, outros imigrantes clandestinos já chegaram e não ficamos sabendo. Esse caso nos chamou atenção pela violação dos direitos humanos. Sentimos a obrigação de defendê-los, pois o direito de ir e vir é universal. A dignidade dessas pessoas foi ultrajada e precisamos acompanhar o caso. É bom lembrar que a atitude de jogar as pessoas ao mar foi do capitão do navio chinês, que está detido, e não do governo brasileiro. Mas, precisamos garantir que o governo não dê tratamento degradante e ilegal aos imigrantes. Não temos notícia de nenhum imigrante espanhol colocado em presídio arbitrariamente. A Polícia Federal precisa se qualificar, pois estamos num estado democrático de direito.

Rets - Como ficará a situação desses imigrantes agora?

Vera Baroni - O Comitê Nacional para Refugiados (Conare) é o órgão encarregado de analisar o caso. No entanto, sua próxima reunião será só em fevereiro. Ele deve ter de julgar recursos de outros estrangeiros. Sabemos que os portos do Rio (RJ), de Santos (SP) e de Tubarão (ES), além de Recife, recebem muitos clandestinos. Não sei se há algum tipo de prioridade. Porém, enquanto isso o Ministério da Justiça designa representante para conversar com os imigrantes para reunir informações para o julgamento do caso.

Rets - A vontade deles é ficar no Brasil?

Vera Baroni - Eles querem ficar. Os oriundos da Costa do Marfim correm risco de vida, um deles teve toda a família morta. Os outros dizem que a situação em sua área é muito difícil por causa dos conflitos étnicos. Há outras formas de preconceito na África, diferentes das encontradas no Brasil. O problema deles não é só econômico, mas também político. Precisamos julgá-los com olhos africanos. Confio que o governo brasileiro terá essa capacidade.

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