Autor original: Marcelo Medeiros
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Não é a primeira vez que esse tipo de denúncia é feita. Em novembro, Tabak havia reclamado do governo pelo mesmo motivo e nada foi resolvido. A saída do hematologista causou preocupação na sociedade civil organizada, pois sua experiência de 16 anos à frente do Cemo era reconhecida nacional e internacionalmente. Quem expressa o sentimento é Merula Steagall, presidente da Associação Brasileira de Leucemia e Linfoma (Abrale), entidade com 15 núcleos espalhados pelo país dando assistência a pessoas portadoras da doença e seus familiares.
Para Steagall, a solução para os “fura-filas” é acabar com a espera, respeitando as opiniões médicas e dando mais treinamento a profissionais da área para que novos centros possam ser instalados pelo país. Segundo ela, apesar da disposição do governo para ouvir, as decisões têm demorado muito para serem tomadas. Como exemplo, cita um levantamento feito pela organização no ano passado e entregue em novembro ao Ministério da Saúde junto a um projeto (ver o link Propostas da Abrale, ao lado) com sugestões de melhoria do atendimento. Representantes do governo prometeram para breve uma reunião na qual comentariam as propostas, mas até agora o encontro não foi agendado.
Entre as idéias da Abrale está a intensificação de campanhas de conscientização da população nos locais de coleta de sangue. “As pessoas não sabem que é tão simples e fácil”, diz Merula, referindo-se à doação de medula óssea.
Nessa entrevista, ela comenta a influência de políticos na fila de transplantes, as soluções para o problema e a fila de pessoas obrigadas a esperarem por um tratamento que pode lhes dar nova vida.
Rets - Como você vê as denúncias de ingerência política na fila de transplante de medula óssea?
Merula Steagall - Se isso estiver mesmo acontecendo, como denunciou o doutor Daniel Tabak, há algo de errado e é preciso investigar a fundo.
Acredito que se não existissem filas, não haveria problemas desse tipo. A solução é acabar com as filas. Enquanto o governo não levar os transplantes a sério nada vai mudar, pois o problema não é a falta de dinheiro. Ele existe, mas precisa ser aplicado – é uma decisão política.
Em novembro a Abrale apresentou ao governo um levantamento nacional sobre a situação dos transplantes, incluindo a oferta e a demanda em cada região, e com ele um projeto para melhorar as condições de doação e operações. O governo prometeu analisar o documento e convocar uma reunião para discutir os resultados, mas até agora nada. Seria uma reunião aberta a todos os interessados, mas já se passaram dois meses e nem foi agendada.
O governo passa a impressão de que é transparente, mas esse atraso não está favorecendo o paciente.
Rets - Essa não é primeira denúncia sobre a influência política nas filas de transplante. Qual a força dessa influência na área médica?
Merula Steagall - A influência existe em todas as áreas – na mídia, na educação, na saúde. Acredito que ela seja forte, até porque alguns cargos são preenchidos por amizade. É uma utopia acreditar que ela vai parar, mas é um vexame isso ainda acontecer. É um absurdo que, além de sofrer com a angústia, a família de uma pessoa que precisa de transplante precise procurar políticos para conseguir um doador e um leito para ser internado.
Os médicos ficam em uma posição difícil, pois, se denunciam, são perseguidos, como aconteceu com o Daniel Tabak. Então muitos casos não são divulgados. Não é o nosso caso, pois nossa missão é assistir pessoas com leucemia e linfoma e pressionar por melhorias.
Rets - Então também há omissão dos médicos por não denunciarem as ingerências?
Merula Steagall - Por um lado sim, mas por outro lhes falta opção e estrutura para trabalhar.
Rets - Qual a relevância do afastamento do médico Daniel Tabak da direção do Cemo?
Merula Steagall - Foi algo muito delicado, ele estava há 16 anos na direção do centro. É uma perda muito grande. Com a qualificação dele, há apenas outros três no país. O Tabak é reconhecido não só no Brasil, mas também no exterior. É uma pena o governo não levar isso em conta. Um médico desses não é como uma secretária que você pode substituir sem prejuízo.
Mas já estamos em contato com a nova direção [o médico Luiz Fernando Bouzas]. Precisamos ver como vai ficar essa questão da influência política.
Rets - Como seria possível evitar que pressões externas interfiram no trabalho médico?
Merula Steagall - Em primeiro lugar, é preciso confiar nos critérios médicos, estabelecer que só pode decidir quem faz parte da equipe médica encarregada. É ela quem deve avaliar as prioridades – se há um paciente que pode esperar uma semana, ele deve ser colocado atrás daquele que só pode esperar um dia. Além disso, é preciso aumentar a infra-estrutura para não concentrar a fila em determinados centros. Sei que há poucos recursos disponíveis, mas esse não é o caso do transplante de medula, cujo custo de montagem de infra-estrutura é muito baixo. Para tudo funcionar direito são necessários R$ 40 milhões – menos que o avião comprado pela presidência [a aeronave presidencial vai custar R$ 56 milhões]. O Ministério da Saúde investiu recentemente R$ 10 milhões em campanhas de publicidade para o transplante de órgãos...
É preciso unir todas as forças, procurar gente bem intencionada para participar das decisões.
Rets - Quem seriam essas pessoas bem intencionadas?
Merula Steagall - Todos os que participam de um transplante de medula – o hemocentro, o laboratório que faz a tipagem [verificação de compatibilidade das medulas], os transplantadores e os superintendentes dos centros. Com certeza a regulamentação que vai ser criada satisfará a todos, mas, se na reunião a ser marcada só for chamado um grupo, vai ser criada uma desigualdade indesejada. O transplante é uma orquestra, não se pode tocar faltando um instrumento.
Rets - Como está o diálogo do Ministério da Saúde com a sociedade?
Merula Steagall - Há uma abertura muito grande, sempre foram muito gentis e receptivos a nós. Não há do que reclamar nesse aspecto. Porém, a velocidade das decisões ainda está muito lenta. Já apresentamos projetos, todos com apoio, mas até agora nada.
Rets - Do que trata o projeto que a Abrale apresentou ao governo?
Merula Steagall - Diversos pontos: conscientização, melhoria dos bancos de sangue e de dados, solicitação de melhora na infra-estrutura. Foi um estudo feito inteiramente pela Abrale, que sugere ainda alterações no treinamento de pessoal e outras ações, que já começaram. Uma delas é a Conferência Internacional sobre Leucemia e Linfoma, marcada para acontecer de 2 a 4 de abril em Campinas.
Rets - Falando agora sobre os transplantes, qual é a maior dificuldade para se conseguir um?
Merula Steagall - A maior dificuldade é encontrar um doador compatível, pois a diversidade genética brasileira é muito grande. O banco de dados é pequeno, falta esclarecimento à população para que ela se torne voluntária. Há também o pequeno número de leitos, insuficiente para a população – é preciso localizar o doador e ainda ter chance e sorte de se encontrar um leito. Há 1.200 pessoas na fila aguardando doador e 80 que já localizaram aguardando um leito. Em todo Brasil, temos apenas quatro centros de transplante não aparentado de medula, em Curitiba, Rio, São Paulo e Recife.
As outras formas de transplante são o aparentado, quando familiares doam a medula e o autólogo, feito quando a doença está num estágio menos avançado. Nesse caso os médicos transplantam células da própria pessoa. As que estão num estágio mais avançado da doença são “substituídas” pelas que estão menos avançadas. É um paliativo, que atrasa a evolução da doença.
Rets - As campanhas de conscientização são suficientes?
Merula Steagall - Elas precisam envolver os hemocentros. O banco de sangue faz a coleta, mas a lei obriga também a colher amostra de 10 ml, que devem ir para o banco de dados de medula óssea. Mas isso nem sempre é feito. As pessoas não sabem que é tão simples e fácil. No projeto que apresentamos ao governo tudo está explicitado. Não é preciso nem anúncio na grande mídia, apenas nos hemocentros.
Rets - E qual seria esse custo?
Merula Steagall - Muito mais barato do que uma campanha convencional, pois não há custo de veiculação, só de produção de cartazes etc.
Rets - O Ministério da Saúde afirma estar implantando uma política de descentralização dos transplantes, hoje muito concentrados no sul do país. Qual a sua opinião sobre esse processo?
Merula Steagall - Essa discussão deve ser feita com cautela, pois não existem equipes suficientes. É preciso treino de pessoal e segurança para levar adiante essa idéia. Todos os profissionais envolvidos devem ser capacitados, além do envolvimento da sociedade, que pode ajudar muito. A Abrale, por exemplo, possui 15 núcleos espalhados pelo país, que estão mais próximos dos pacientes e conhecem melhor suas necessidades. Estamos muito dispostos a levar nosso conhecimento ao governo. Se ele nos convocar, estaremos lá.
Rets - Qual o papel da sociedade civil organizada na área de transplantes de medula?
Merula Steagall - Fundamental. Há um trabalho de ajuda, de conhecimento da vida do paciente e de dar acesso a treinamento médico. Nós, por estarmos ao lado do paciente, abrimos espaços para a atuação de políticas públicas, conhecemos bem a área. A participação da sociedade civil é muito importante.
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