Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original:
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Em dezembro a Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar) e a Conectas, ONG de defesa de direitos humanos, propuseram uma ação civil pública que pedia o fechamento da unidade 5 da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor de São Paulo (Febem-SP), localizada no bairro do Tatuapé, zona leste da capital paulista. O complexo é o maior do estado, com 17 unidades. O que as motivou a ir à Justiça foi a morte de um adolescente em junho do ano passado dentro da Febem. A direção do órgão estadual até hoje ainda não esclareceu como ele veio a morrer queimado. Para piorar a situação, laudos emitidos pela Vigilância Sanitária e pelo Corpo de Bombeiros afirmam que a unidade do Tatuapé não possui mínimas condições de higiene e segurança. Os documentos recomendavam reformas imediatas, mas nada foi feito.
Se a estrutura é inadequada, o respeito pelos direitos dos jovens e crianças internados é mínimo. Em visitas feitas à Febem após a morte do adolescente com outros representantes de entidades de defesa dos direitos humanos, a advogada Eloísa Machado, da Conectas, constatou que muitos internos ficavam sem banho durante longos períodos e eram proibidos de tomar sol. Isso sem mencionar as agressões praticadas por monitores.
Todas as informações colhidas no local constam da ação, que ainda não foi julgada, apesar de no dia 28 de janeiro ter recebido um apoio de peso: o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. fez um pedido público pessoal para que a ação fosse apreciada com urgência.
Nessa entrevista, Eloísa Machado fala sobre as motivações da ação civil pública e comenta a participação da sociedade civil e do Estado no trabalho de inclusão social de crianças e adolescentes em conflito com a lei.
Rets - Por que pedir o fechamento da Febem do Tatuapé?
Eloísa Machado - A idéia de promover uma ação civil pública pedindo o fechamento surgiu após um adolescente morrer queimado no ano passado. Os laudos feitos pela Vigilância Sanitária e pelos Bombeiros após o incidente verificaram diversos problemas nas instalações da Febem, mas o motivo ainda não foi revelado. Descobrimos que a unidade não tinha nem alvará de funcionamento da prefeitura, operava à revelia de todas as normas de segurança.
Para resguardar os interesses de todos os envolvidos, achamos que a melhor medida seria uma ação coletiva para obrigar o Estado a reformar a unidade ou fechá-la de vez.
Rets - O governo do Estado estava ciente dessa falta de autorizações? Como ele se portou em relação a isso?
Eloísa Machado - Antes de propormos a ação procuramos diversas autoridades e comunicamos a diversos órgãos do governo o resultado dos laudos. Requeremos ações, mas não obtivemos resposta de ninguém. Acho que todos devemos seguir a lei, mas a Febem, por ser um órgão público, tem um motivo a mais para isso.
Rets - O governo estadual de São Paulo pode ser processado por negligência?
Eloísa Machado - Pode. O Estado estava ciente do acontecido e, ainda por cima, foi notificado. Ou seja, pode incorrer em crime de responsabilidade, podendo até o governador ser condenado. Se houver um novo acidente nesse período, quero ver o que vai acontecer...
Rets - A história da Febem é marcada por casos de violência e de desrespeito aos direitos humanos, mas poucas medidas foram tomadas em relação a isso. A que você credita esse descaso?
Eloísa Machado - Concordo em parte com a afirmação. Pelo menos por parte da sociedade civil muitas medidas foram tomadas. A Febem faz parte de um contexto geral de violação dos direitos humanos no Brasil, mas seu caso é mais grave. Falta vontade política para resolver esses problemas, pois é um tema com pouco apelo eleitoral. A sociedade, aliás, muitas vezes apóia o fortalecimento das punições e o aumento da repressão.
Essa situação é resultado da falta de políticas concretas de longo e até curto prazo que dêem conta dessas emergências.
Rets - Então falta planejamento e vontade política das diversas administrações estaduais?
Eloísa Machado - Falta participação da sociedade civil na administração e vontade política. Há projetos muito bem sucedidos feitos por organizações sociais em unidades de internação, mas são iniciativas que acabam fechadas e limitadas. A idéia que tivemos foi judicializar o problema ao invés de só ficar fazendo manifestações, comunicados etc. Talvez assim, com a pressão da Justiça, o Estado passe a agir.
Rets - Por falar em parceria com ONGs, qual sua opinião em relação à terceirização de algumas atividades de unidades da Febem, como aconteceu na Unidade de Semiliberdade do Brás, cujo aspecto pedagógico e profissionalizante, além dos monitores, serão de responsabilidade de uma ONG?
Eloísa Machado - Na verdade, o Estatuto da Criança e do Adolescente é formatado para a participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas, mas isso pouco acontece. Há equipes interdisciplinares desenvolvendo ótimos trabalhos, mas que se ressentem da falta de apoio e de estabilidade. É injusto a Febem se abrir para compensar problemas mas não para construir suas políticas internas. São acordos que podem ser quebrados a qualquer momento, soam mais como desrespeito do que como ajuda.
Rets - Com a terceirização não há risco do Estado assumir uma postura de lavar as mãos e deixar a responsabilidade com as ONGs?
Eloísa Machado - Sou extremamente cética em relação ao papel do Estado na sociedade. Ele não pode se eximir de suas responsabilidades. Para muitos meninos que vão para a Febem, aquele é o primeiro contato com o Estado que têm na vida - nunca foram à escola, ao hospital, nunca viram polícia. E acabam torturados.
O poder do Estado é legítimo, não se pode deixar esse poder de educação e inclusão para empresas privadas. O controle das atividades é difícil, mas pelo menos o Estado tem a pressão e a vigilância da sociedade. A privatização tende a piorar os problemas e a afastar as pessoas do que está acontecendo e os presos, da inclusão social.
Rets - Mesmo quando ONGs que possuem atividades educacionais e todo um trabalho em penitenciárias e unidades de internação de crianças e adolescentes assumem a responsabilidade?
Eloísa Machado - A participação de ONGs na administração já existe. O Estado já se abriu a parcerias e algumas delas realmente valem a pena, como o projeto Fique Vivo, que trabalhava na prevenção do HIV/Aids. Mas não basta dar espaço para organizações da sociedade civil se não for por inteiro; gera problemas. Pelo menos algo está sendo feito, vale a pena tentar nesses casos.
Rets - Qual sua posição em relação à diminuição da idade para ser condenado?
Eloísa Machado - Há posicionamentos muito radicais em relação a isso. Tem gente que quer baixar a idade para 12 anos. Sou contra, acho que não vai resolver o problema da violência. Em primeiro lugar, a Constituição não permite. Segundo: como inserir essas crianças na sociedade depois de conviverem com adultos por períodos prolongados? E terceiro, tal decisão seria um abandono do ECA, que está em sintonia com as mais avançadas legislações do mundo, por incompetência. Essas mudanças são apresentadas como solução para a violência, mas, se prestarmos mais atenção, veremos que isso é besteira.
Os crimes praticados por adolescentes recebem muita visibilidade na mídia, apesar da proporção entre esses e os praticados por adultos se manter igual há mais de 20 anos. Portanto, parecem ter uma dimensão muito maior do que a realmente existente.
Rets - Então os meios de comunicação possuem um papel importante nessa questão de diminuição da idade?
Eloísa Machado - Possuem tanto na promoção do debate quanto no fomento da idéia de diminuir a idade para ser condenado. Na verdade a mídia é um cenário para essa discussão e para os problemas, que por meio dela são apresentados. Ela distorce a realidade ao dar mais espaço para crimes praticados por adolescentes e acaba refletindo a opinião do senso comum - severa quando se trata da ameaça da violência.
Rets - O que você acha da recente decisão de acabar aos poucos com as grandes unidades da internação de crianças e adolescentes na capital para criar outras menores espalhadas pelo estado?
Eloísa Machado - É uma boa iniciativa, que segue as diretrizes do ECA. A relação é simples: quanto menor o número de crianças e adolescentes internados numa instituição, melhor será o trabalho que se pode fazer. É como uma escola qualquer, onde quanto menos alunos, mais atenção o professor poderá dispensar para cada um.
Espero que mais unidades pequenas possam ser criadas.
Rets - Há alguma diferença entre as novas e as velhas unidades da Febem?
Eloísa Machado - As novas unidades estão sendo criadas sob novos parâmetros. Só de serem menores, já são melhores. Em São Paulo há unidades com capacidade para 70 pessoas que abrigavam 500. O limite de internos também é mantido, o que permite maior integração entre eles, bem como a melhoria da rede de atendimento e a inserção dos meninos quando ainda são internos.
Rets - Alguma mudança no ECA seria bem vinda?
Eloísa Machado - Acho triste haver intenções para mudar, pois a lei é boa. De fato há problemas em sua execução, mas o importante é fazer valer o que o estatuto diz e, não, procurar o caminho mais fácil. Como já disse antes, não acredito que as mudanças surtam efeito na sensação de segurança. Os adolescentes que cometem crime contra a vida não passam de 2% do total de ocorrências dessa faixa etária. As alterações não me parecem adequadas, mas, sim, um paliativo para aumentar a sensação de segurança.
Rets - Já há previsão para o julgamento da ação civil pública impetrada por vocês?
Eloísa Machado - Ainda não. No dia 30 de janeiro, última vez em que estive no Fórum, ela já estava com o juiz. Espero que seja julgada em breve, mas não tenho previsão.
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