Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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No início do ano, a declaração da ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Emília Fernandes, sobre a proposta de inclusão do planejamento familiar entre as contrapartidas exigidas das famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família causou confusão e a reação de organizações de mulheres de todo o país. A obrigatoriedade do planejamento familiar remeteu ao controle de natalidade, proibido por lei. A possibilidade de o planejamento familiar vir a ser condição imposta pelo governo para se obter acesso a outros benefício foi descartada pelo novo ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, mas reacendeu um debate que provavelmente não será encerrado enquanto não forem esclarecidas algumas questões que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos.
Para Sonia Corrêa, coordenadora nacional de pesquisa e ação em saúde e direitos sexuais e reprodutivos da Rede Dawn – Development Alternatives with Women for a New Era, esse debate está apenas começando junto a grande parte da população, embora seja antigo entre algumas organizações feministas. O grande problema dessa discussão, na opinião de Sonia, é o desconhecimento dos formadores de opinião e – por incrível que pareça – dos políticos sobre as políticas existentes. "O nível de falta de entendimento é surpreendente. Política de planejamento familiar existe e as ações têm sido realizadas, mas tudo se passa como se não fosse assim. O debate está muito ideologizado. O que devemos discutir é a eficácia dessa política – falta avançar em áreas que ainda não foram tocadas".
A lei...
O direito ao planejamento familiar está previsto na Constituição brasileira e foi regulamentado pela lei 9.263, de 1996. De acordo com essa norma, mulheres e homens têm o direito de decidir livremente sobre o número de filhos que querem ter, assim como devem ter acesso à informação e aos meios para regular a sua fecundidade – que abrangem a educação sexual, o acesso aos serviços de saúde e ao uso de contraceptivos, como camisinha e pílula anticoncepcional, e também a esterilização voluntária (laqueadura das trompas ou vasectomia).
"Não é o governo que deve dizer quantos filhos as pessoas devem ter e como devem ter. Cada um deve decidir o que é melhor para si e sua família, de forma autônoma e responsável. As políticas públicas devem respeitar esse direito de decisão", diz Dulce Xavier, coordenadora de comunicação da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Ou seja, o exercício desse direito só pode acontecer quando o poder público fornece, sistematicamente, todas as informações e as condições sociais e materiais necessárias para tanto. "É dever do Estado defender a liberdade reprodutiva e materializar em políticas públicas os direitos das pessoas", reforça Fátima Oliveira, secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
O reconhecimento do direito ao planejamento familiar é uma conquista do movimento feminista, que luta há mais de três décadas pela sua garantia. Na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada no Cairo (Egito) em 1994, e na Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim (China) em 1995, o movimento de mulheres reafirmou a importância do planejamento familiar para o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.
... e a sua aplicação
Segundo Dulce Xavier, muitas vezes, a população tem acesso aos meios anticoncepcionais, mas tem dificuldade em usá-los, em razão da ausência de um trabalho educativo que deve ser feito pelos profissionais de saúde. Para ela, falta um empenho maior do poder público para capacitar esses profissionais e para obrigar os serviços públicos de saúde a fazerem esse atendimento. Ana Paula Portella, coordenadora de pesquisa da SOS Corpo, concorda: "O governo nunca conseguiu fazer uma cobertura eficaz de ações para o planejamento familiar no país todo. Infelizmente, não é uma prioridade dentro da política de saúde pública no país".
Para Fátima Oliveira, o governo federal não consegue suprir a demanda no país inteiro. "Em 2003, houve um aumento expressivo da disponibilização dos métodos contraceptivos pelo governo, mas não de forma suficiente. É preciso que os estados e os municípios também façam a sua parte".
Uma das barreiras apontadas pelas organizações para a implementação da lei de formar eficaz é a posição da Igreja Católica contrária aos métodos de contracepção que não sejam "naturais". "Algumas cidades têm dificuldade de realizar ações por causa da Igreja, que considera alguns métodos anticoncepcionais abortivos. Em algumas regiões, a Igreja interfere e veta até a distribuição de camisinhas e o serviço de aborto legal", diz a representante das Católicas pelo Direito de Decidir.
As feministas acusam ainda outras forças que cerceiam o direito de escolha das mulheres. "Para alguns setores não interessa que essa lei seja implementada, como alguns políticos do interior do Nordeste, por exemplo, que compram votos em troca de laqueadura das trompas, quando esta é um direito das mulheres", diz Sonia. O resultado disso é que, atualmente, cerca de 40% das mulheres entre 15 e 49 anos estão esterilizadas no Brasil - dado agravante, visto que se trata de um método irreversível e desnecessário. "Se a lei funcionasse, sem as limitações que existem hoje, isso não aconteceria", reforça Elizabeth Saar, assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), que aponta a educação sexual nas escolas como uma das ações fundamentais para a garantia do direito ao planejamento familiar.
Além de assegurar a oferta de meios anticoncepcionais reversíveis através do Sistema Único de Saúde (SUS) para a população mais jovem, na opinião Sonia Corrêa, o governo terá que enfrentar outros temas complicados, como a legalização do aborto e a dupla jornada vivida pelas mulheres. "A questão da dupla jornada não é problema da mulher, é da sociedade, mas nunca foi tratada de maneira sistemática. É preciso haver o envolvimento dos homens no planejamento familiar. A responsabilização dos homens pela criação dos filhos deve ser objeto de campanha pública", diz Sonia.
Idéia ultrapassada
A confusão gerada com a idéia de controle de natalidade representa mais um obstáculo que se soma aos outros citados, para o avanço das ações de promoção de saúde reprodutiva no país. O termo controle de natalidade é oposto ao planejamento familiar, pois está associado a políticas coercitivas, que exige das mulheres pobres o uso de meios contraceptivos e não lhes dá o direito de decidir, por meio de educação e acesso a serviços de saúde. A utilização do termo controle de natalidade é, portanto, inadequada num Estado democrático como o Brasil.
Para Elizabeth Saar, a confusão é feita pelos próprios políticos. "Eles usam o termo planejamento familiar, quando o discurso é sobre controle de natalidade. O controle tem um grande apelo, pois costuma-se fazer uma associação fácil: se controlarem o número de filhos, controlam a pobreza. Isso não é verdade, mas é um discurso muito utilizado por políticos e que só esconde outra questão: a desigualdade social".
A relação entre a taxa de fecundidade e a reprodução da miséria é mais um aspecto que apareceu no discurso da ex-ministra e que também não parece claro para a opinião pública. Segundo Dulce Xavier, essa é uma visão muito antiga, ultrapassada e equivocada, especialmente nos dias de hoje. "A idéia de que a partir da diminuição do nascimento de pessoas é possível reduzir a pobreza é totalmente equivocada. Prova disso é a queda expressiva da taxa de fecundidade no Brasil nos últimos 20 anos – hoje, comparável às dos países desenvolvidos – e que, no entanto, não foi acompanhada pela redução da pobreza. Sabemos que é a concentração de renda injusta que causa exclusão social. A pobreza não depende do resultado do número dos filhos que se tem", enfatiza.
Sonia lembra que no início dos anos 80 prevalecia uma tendência pró-natalista na sociedade e que a idéia de controle da natalidade estava adormecida. Para ela, os principais fatores que reavivaram esse pensamento foram o recrudescimento da violência urbana e a maneira como a mídia projeta a imagem da pobreza para a sociedade. "Para retratar a pobreza, a mídia sempre usa a imagem de mulheres pobres cheias de filhos", diz.
O que acontece é o analfabetismo – muito comum entre as camadas mais pobres - dificultar o acesso à informação e, conseqüentemente, o conhecimento dessa parcela da população sobre os meios contraceptivos e sobre o próprio corpo. Entretanto, a maior queda de fecundidade nos últimos anos, segundo dados demográficos, aconteceu entre as mulheres pobres e negras, onde há uma taxa maior de analfabetismo. Isso significa que essas mulheres encontraram saídas para exercerem a sua liberdade reprodutiva, segundo Fátima Oliveira. "É claro que quanto mais informações tiverem, mais condições as mulheres terão para planejarem. Mas os dados mostram que já chegou à consciência dessas mulheres de que elas têm o direito de regular a sua própria fecundidade. Por outro lado, são estas mulheres que mais precisam ter meios contraceptivos disponíveis pela rede pública de saúde", afirma.
Portanto, cabe aos governos refletir sobre a importância de entender o que é o planejamento familiar, tratar de fato a questão como ação básica de saúde e seguir o exemplo, estabelecido pelas próprias mulheres, de buscar saídas que suplantem os obstáculos encontrados – atitude que seria coerente especialmente em 2004, Ano da Mulher, segundo lei sancionada pelo presidente Lula.
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