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Vitória quase completa

Autor original: Marcelo Medeiros

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Vitória quase completa

No dia 4 de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 2401/03, conhecido como PL da Biossegurança, que dispõe entre outras coisas sobre a produção, pesquisa e comercialização de organismos geneticamente modificados - os famosos transgênicos. Como não podia deixar de ser, a decisão foi precedida de muita discussão: o projeto original, de autoria do governo, sofreu algumas modificações, e a versão aprovada, na forma de substitutivo, foi a do deputado Renildo Calheiros (PCdo B-PE), relator final do projeto.

A comercialização e o plantio da safra de soja transgênica de 2004/2005 foram liberados, decisão considerada uma lástima pelos ambientalistas. No entanto, conseguiu-se aprovar pontos importantes, como os mecanismos que impedem a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão subordinado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, de ter a última palavra sobre o licenciamento ambiental para cultivo em escala comercial de produtos transgênicos. Segundo o texto aprovado, além da CTNBio, o Ibama e a Anvisa também possuem poder de veto nesses casos.

O projeto cria também a Comissão Nacional de Biossegurança (CNBS), órgão subordinado à presidência, que reunirá 15 ministros e terá como função resolver impasses entre as demais autoridades envolvidas com a biossegurança.

Apesar das mudanças conseguidas pela bancada ruralista, a aprovação foi considerada uma vitória para o movimento ambientalista. A engenheira agrônoma Flávia Londres, membro da ONG AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa) e assessora da campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos, comenta nesta entrevista os resultados do PL, que agora segue para análise no Senado.

De acordo com Londres, apesar dos ganhos, ainda não é momento de cantar vitória, pois a força da bancada ruralista é muito grande e isso pode provocar modificações no texto durante a tramitação no Senado. Por outro lado, diz que ficará satisfeita se a versão aprovada na Câmara, apesar de seus defeitos, como a liberação da soja transgênica em 2004 e 2005 e pouco controle sobre a pesquisa, for aprovada. “A essência se manteve”, afirma.

Rets - A aprovação do Projeto de Lei na Câmara já pode ser considerada uma vitória para o movimento ambientalista?

Flávia Londres - Ainda não é o momento de cantar vitória, pois o projeto agora segue para o Senado e lá pode ser alterado e até piorar. Essa hipótese existe e não pode ser descartada. Se isso acontecer, o PL voltaria para a Câmara.

Mas é fato que quem saiu vitorioso fomos nós. Não foi uma vitória absoluta porque o projeto original foi modificado, mas a essência se manteve.

Rets - Qual sua opinião sobre a prorrogação do prazo para plantio e comercialização de soja transgênica?

Flávia Londres - A liberação foi muito negativa. É mais uma safra produzida sem estudos suficientes de impacto ambiental e a população vai continuar sem saber quais são os riscos para sua saúde. Outro aspecto relevante quanto à liberação da soja é que, embora a rotulagem de produtos transgênicos já esteja regulamentada e tenha entrado em vigor em 1º de fevereiro, até agora ninguém viu nenhum produto com o selo. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária, subordinada ao Ministério da Saúde] não está fiscalizando como deveria.

Rets - É possível que essa prorrogação seja estendida para outras safras por meio de medidas provisórias?

Flávia Londres - Acho pouco provável. Se o PL for aprovado da maneira como está, significa que a safra 2005/2006 deverá ser submetida à lei. A prorrogação entrou nessa lei porque consideraram que o período necessário para aprovação seria muito longo para ser possível fazer os testes previstos na próxima safra (2004/2005).

Rets - Qual a força do lobby pró-transgênicos no Congresso?

Flávia Londres - Ele é muito forte. O que assistimos durante as discussões foi a presença do lobby ruralista, que já é antigo, e sua união com um grupo de cientistas. Desde 1997 batalhamos pela aprovação de uma lei de biossegurança que substituísse a anterior, de 1995, e o lobby sempre foi forte. Ele é liderado pelos ruralistas de sempre: Ronaldo Caiado (PFL-GO), Aberlardo Lupion (PFL-PR) e outros.

A mudança de atuação foi a aliança com o grupo de cientistas ligados a pesquisas de genética molecular, que passaram a se denominar “os cientistas”. São profissionais que pesquisam transgênicos e são liderados pela Anbio (Associação Nacional de Biossegurança), espécie de ONG favorável à liberação comercial de transgênicos.

Ruralistas e cientistas se juntaram “em nome da ciência”. Não foi raro vermos ruralistas andando de jaleco branco pelo Congresso se dizendo favoráveis à pesquisa científica, como se nós fossemos contrários. A grande mídia, aliás, tentou fazer essa polarização – ambientalistas versus cientistas - mas ela não é verdadeira. Queremos justamente mais pesquisas, que atestem a segurança dos transgênicos para o meio ambiente e a saúde humana.

Há um ponto interessante nesse posicionamento dos cientistas. Eles estavam brigando pelo substitutivo do [deputado] Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que liberava todo tipo de pesquisa [Aldo Rebelo foi o primeiro relator do PL. Deixou a relatoria e a liderança do governo na Câmara para assumir o Ministério da Coordenação Política]. Porém, quando saiu a proposta de Renildo Calheiros (PCdoB-PE), que também libera a pesquisa, mas mantém a necessidade de autorização para comercializar produtos, não a apoiaram. Ou seja, há interesses comerciais por trás disso.

Rets - O Ministério do Meio Ambiente ficou enfraquecido por não poder mais dar a palavra final na liberação de transgênicos, função prevista para o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS)?

Flávia Londres - Não é bem assim, a grande imprensa distorceu um pouco o resultado do PL. O artigo que trata do CNBS afirma que ele avaliará a liberação para comercialização oportunamente, mas não pode avaliar mérito. Se o Ibama diz que um produto deve ser vetado, ele deve ser vetado. O CNBS não pode reverter essa decisão. Essa é nossa interpretação. Por outro lado, os técnicos do Ministério da Agricultura entendem de outra maneira. Para eles, o CNBS pode suspender vetos.

Rets - Então o texto abre precedentes para mais de uma interpretação? Isso não pode causar confusão no futuro?

Flávia Londres - Sim, e isso pode resultar em conflitos de interpretações. Mas para nós é claro que o Ibama pode vetar. Se for parar na Justiça, tenho certeza que ganharemos.

Rets - A aprovação por consenso fortalece o projeto no Senado?

Flávia Londres - Na verdade, a aprovação não foi conseguida por consenso e nem houve votação simbólica – ela foi nominal. Houve um acordo de maioria, onde a base aliada votou junta, com exceção do PPS. Isso garantiria a aprovação. Mas a oposição pediu votação nominal, o que é direito dela. Isso não quer dizer que houve acordo para aprovação. A identificação foi feita e o PL aprovado depois de negociações. A liberação da safra de soja, por exemplo, era um ponto sobre o qual eu não imaginava que o governo fosse ceder. A liberação de pesquisas com transgênicos, na qual já houve muitas irresponsabilidades, como o cultivo de vários hectares de milho a céu aberto, podendo contaminar outras áreas, é outro aspecto polêmico.

Mas foi a única forma de aprovar o PL. Ainda assim, por ter havido muita negociação, acredito que ele chegue com força no Senado. Mas isso, repito, não garante que nada será modificado.

Rets - O PL prevê que a CTNBio, ao invés de 18 integrantes, terá 27. A sociedade civil tem direito a seis cadeiras na comissão, uma a menos do que previa o texto original e três a mais do que atualmente. Como você vê a participação da sociedade civil organizada na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança?

Flávia Londres - A sociedade teve sua participação diminuída. Os favoráveis à liberação dos transgênicos afirmam que não faz sentido membros da sociedade civil organizada participarem da comissão, pois ele é um órgão técnico. Reclamaram diversas vezes de que os cientistas seriam minoria na CTNBio, o que é mentira. [Dos 27 integrantes previstos, 12 devem ser especialistas nas áreas de conhecimento sobre os setores animal, vegetal, ambiental e de saúde humana (3 para cada área). Os demais devem ser representantes do governo e da sociedade civil].

Para ser membro, é preciso ter doutorado na área. É uma ilusão dizer que a sociedade civil não possui doutores. Aliás, acho que a exigência de doutorado é absurda. Convocar pessoas com notório saber já seria mais do que suficiente.

Rets - A voz da sociedade civil fica, então, abafada?

Flávia Londres - Pode ficar. Do jeito que ficou a composição da CTNBio, ela toma suas decisões por voto. São 27 especialistas no total, cada um com sua especialidade. Ou seja, ainda que um deles apenas afirme que há riscos, a decisão vai passar, pois ele é minoria. Mas os riscos continuam. É como a construção de um prédio, onde há vários tipos de engenheiros: um para saber a quantidade de concreto, outro para medir riscos de incêndio, mais um para parte hidráulica e por aí vai. Se um diz que há riscos e os outros passam por cima desse parecer, a probabilidade de um acidente aumenta.

É uma forma absurda de decisão. O consenso deveria ser adotado sempre.

Rets - Há agora mais garantias para o meio ambiente e a saúde humana?

Flávia Londres - Caso o PL seja aprovado como está, haverá mais garantias em relação à sua comercialização. Quem quiser, pode fazer festa com a pesquisa, mas os riscos já são menores do que a liberação do plantio.

Mas ainda resta a briga pela rotulagem no Executivo. Não está havendo vontade política para que os produtos transgênicos sejam realmente rotulados. Os órgãos responsáveis não estão fazendo seu trabalho corretamente.

Rets - Foi instituída uma contribuição de 1,5% sobre a venda de sementes e mudas transgênicas, cujos recursos formarão o Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento da Biossegurança e da Biotecnologia para Agricultores Familiares (FIDBio). Essa iniciativa é válida?

Flávia Londres - Pelo que diz o PL, o dinheiro arrecadado vai para pesquisas voltadas para o uso de transgênicos pela agricultura familiar. Mas quem disse que os pequenos agricultores querem transgênicos?

Há outras pesquisas melhores a serem feitas. Essa decisão de impor uma taxa me parece uma tentativa de ser politicamente correto, mas sem fundamento. Até agora nenhuma associação de pequenos agricultores me disse que queria plantar transgênicos. Com certeza prefeririam pesquisas sobre agricultura agroecológica.

Rets - Então não há interesse de pequenos agricultores em culturas transgênicas?

Flávia Londres - Pode haver no futuro. É difícil dizer. Não somos contra os transgênicos por princípio, mas sim contra a falta de consenso científico sobre os riscos que esses organismos possuem. Se algum dia disserem, com absoluta certeza, que eles são seguros, tudo bem.

Rets - Já houve alguma repercussão internacional devido a essa aprovação?

Flávia Londres - Ainda é cedo para a decisão repercutir. A repercussão virá quando o PL sair do Congresso.

Rets - Você acredita que o PL será aprovado no Senado como está?

Flávia Londres - Vai depender da correlação de forças. Os ruralistas vão apostar no aumento de poder da CTNBio, enquanto nós buscaremos mais controle das pesquisas, além de tentarmos reverter a liberação da próxima safra de soja, que foi algo absurdo.

Marcelo Medeiros 

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