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Corrupção: um acerto de contas

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Corrupção: um acerto de contas


A inimaginável quantia de 1,5 trilhão de dólares é, segundo estimativa de Daniel Kaufmann, diretor do Banco Mundial, o valor desviado anualmente por atos de corrupção em todo o mundo. A revelação, feita durante conferência da ONU sobre o problema realizada em dezembro, na cidade de Mérida, no México, mostra bem as dimensões de um crime que traz ainda um outro déficit (este, incalculável): os recursos que poderiam ser aplicados em programas de desenvolvimento social acabam engordando contas bancárias, muitas vezes em paraísos fiscais.

No Brasil, auditoria feita pela Controladoria-Geral da União em 281 municípios ao longo do ano passado revela que em apenas 10% deles não há sinais de irregularidades. Mais do que estatística, o número indica falhas administrativas e, acima de tudo, éticas, que permeiam as várias instâncias do Estado brasileiro há anos, configurando-se quase como uma cultura nacional, tida por muitos como inevitável. Segundo recente pesquisa do instituto Sensus e da Confederação Nacional dos Trabalhadores, 72,9% dos entrevistados acreditam que a corrupção é maior no Brasil do que em outros países e 33% acham que ela está presente em todos os poderes. No ranking divulgado anualmente pela organização Transparência Internacional, o Brasil aparece atualmente em 54º lugar.

Estes dados vão ao encontro do que pensa o coordenador da área de Transparência e Responsabilidade Social do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), João Sucupira. Para ele, a persistência da prática da corrupção decorre de toda uma história que remonta aos tempos de ditadura, em que o Estado, principalmente o Executivo, era muito mais fechado. "Naquele período, a publicização de dados e informações era muito mais difícil. A ditadura facilitava a corrupção. E foi-se criando e estabelecendo essa cultura da esperteza, do jeitinho, do clientelismo; de que o que é público não é de ninguém. E, como qualquer questão cultural, é difícil de debelar", afirma.

Como signatário da Convenção da ONU contra a Corrupção, o governo brasileiro se comprometeu a adotar medidas efetivas de combate a essa prática e a colaborar internacionalmente, congelando contas bancárias, confiscando bens e extraditando suspeitos. Um dos primeiros resultados desse compromisso foi o decreto nº 4.923, de 18 de dezembro de 2003, que instituiu o Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção. Ele será composto paritariamente por representantes do governo e de entidades da sociedade civil, entre as quais a Ordem do Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a ONG Transparência Brasil. Vinculado à Controladoria-Geral da União, o conselho terá a atribuição de debater e sugerir medidas de aperfeiçoamento dos métodos de controle, o incremento da transparência na administração pública e estratégias de combate à corrupção e à impunidade. Com 18 integrantes, o novo conselho será presidido pelo ministro do Controle e da Transparência, Waldir Pires, chefe da Controladoria-Geral da União.

Paralelamente, foi criada na Câmara dos Deputados a Frente Parlamentar de Combate à Corrupção, oficializada em final de janeiro. Com a adesão inicial de 122 deputados, a finalidade do movimento é apoiar as ações do Executivo no combate à corrupção, além de debater e sugerir projetos de lei que possibilitem o aperfeiçoamento do controle e da fiscalização dos gastos públicos. Para o deputado que propôs a criação da frente, Paulo Rubem Santiago (PT-PE), a iniciativa deve fazer a revisão da legislação e o aperfeiçoamento de mecanismos de combate à lavagem de dinheiro.

Conselheira federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Elenice Carille é cética quanto às possibilidades do recém-criado Conselho de Transparência Pública, cujos membros são indicados pelo presidente da República. “Como é um ‘braço’ do governo, tenho certa preocupação. Não sou muito simpatizante de conselhos criados pelo próprio governo. Às vezes eles até conseguem apurar alguma coisa, mas depois acabam acobertando”. Elenice é candidata a ocupar a presidência da Comissão Especial da OAB para Apuração de Acusações de Corrupção, que deve estar formada até a segunda semana de março. O objetivo é ouvir a sociedade e apurar eventuais denúncias, encaminhando os casos às instâncias legais. “A corrupção é um câncer que está corroendo o país. Acho que hoje a sociedade já consegue perceber que precisa agir e que tem um papel fundamental para que os corruptos sejam responsabilizados. Pode até não ter sucesso em 100% dos casos, mas consegue fazer com que alguns sejam punidos”, analisa.

Para Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil, a corrupção é um sinal da ineficiência administrativa e institucional. E a sua persistência decorre das falhas dos mecanismos de controle e monitoramento do Estado e da própria sociedade civil, como a imprensa e as ONGs. O caminho para evitá-la, afirma, seriam processos administrativos e institucionais mais claros e visíveis. “Gritar ‘pega ladrão’ e correr atrás dele é mais difícil e mais caro. Prender é caro e ineficiente. Aperfeiçoar os mecanismos para que não ocorram os delitos seria mais inteligente”, sugere. “Como diz o velho ditado: melhor prevenir do que remediar”.

Informação transparente, o trunfo

Abramo toma dois casos recentes e de grande repercussão como exemplo: o escândalo do “propinoduto”, envolvendo fiscais da Fazenda no governo do Estado do Rio de Janeiro, e a Operação Anaconda, da Polícia Federal, que revelou um esquema de corrupção no Judiciário em São Paulo. No primeiro, argumenta, tudo foi possível porque os fiscais tomavam decisões autonomamente, sem que precisassem dar satisfações a ninguém. No segundo, o foco do problema foi a “opacidade” dos mecanismos da Justiça, pois a sociedade tem quase nenhuma informação sobre o que se passa dentro do poder judiciário. Para evitar isso, há quem defenda mecanismos externos de controle. Elenice Carille é uma dessas pessoas. "Acho que aumentaria o controle e inibiria mais esse tipo de prática. Quando se trata de assunto judicial, não tem de haver sigilo. As pessoas têm o direito de saber o que está acontecendo", afirma.

A informatização, continua Abramo, também poderia ajudar a resolver o problema. “As decisões dos juízes não são comparadas, não ficam sujeitas a escrutínio público. No mundo moderno, em que os instrumentos de informatização são baratos e simples, isso deveria ser estimulado”. Para ele, também é preciso que os órgãos públicos adquiram o hábito de coletar e agregar informações de forma transparente.

O que, segundo Sucupira, do Ibase, quase não acontece. E, quando ocorre, é praticamente impossível leigos entenderem as contas de municípios e estados. "Está previsto na Constituição que cada prefeitura tem de colocar, a cada dois meses, balancetes disponíveis para os interessados tomarem conhecimento. Mas o simples fato de os dados estarem disponíveis não garante que aquilo esteja transparente. Muitas informações estão em ‘economês’, não em português. Eu mesmo, às vezes, não consigo entender alguns orçamentos", confessa o economista, que coordena no Ibase programas como o Cidade Transparente, que disponibiliza na Internet informações sobre os orçamentos das cidades de São João de Meriti, Rio de Janeiro e, mais recentemente, São Paulo. "A gente pretende traduzir para o cidadão as informações orçamentárias, para que a participação e o acompanhamento possam se dar de fato", diz Sucupira.

No sítio do Cidade Transparente (cujo endereço pode ser encontrado na área de Links desta página), as pessoas podem consultar os gastos das três cidades de acordo com a área em que os recursos foram aplicados. Podem também fazer comparações entre os gastos desses municípios.

Silvio Caccia Bava, diretor do Instituto Pólis, também acredita que existam resistências à disponibilização de informações transparentes nas gestões públicas. "Elas se expressam pelo uso de uma linguagem cifrada, do discurso técnico, pela apresentação de dados agregados que impedem a identificação da destinação efetiva dos gastos anunciados. Mesmo em cidades como São Paulo, onde existe via Internet um sistema informatizado de acompanhamento do gasto público – o que é um avanço em relação às demais cidades –, a utilização destas informações pelo cidadão comum é impossível. Mesmo economistas e administradores públicos têm de se capacitar para acessá-lo", escreve ele no artigo "Informação é poder", publicado em janeiro na página do Pólis. "A informação é e sempre será um grande trunfo", resume Sucupira.

Sorteios

Um esforço de conhecer melhor as práticas e os procedimentos de variados municípios do Brasil vem sendo realizado pela Controladoria-Geral da União (CGU). Desde o ano passado, o órgão, vinculado à Presidência da República, faz sorteios periódicos de 50 municípios de até 300 mil habitantes. Conhecidas as cidades, técnicos e fiscais da CGU se debruçam sobre todos os recursos federais repassados para aqueles municípios.

“São cerca de dez fiscais daqui de Brasília que ficam, em média, por uma semana nos municípios, auditando, conhecendo os dados das prefeituras, conversando com professores públicos, moradores etc.", informa Gayre Patriota, da área de Comunicação da CGU. Em 2003, foram realizados sete sorteios e fiscalizados exatos 281 municípios (os três primeiros sorteios foram experimentais e não chegaram a eleger 50 municípios).

Além de analisar notas fiscais e outros documentos, os fiscais inspecionam obras e conversam com a comunidade para saber como os recursos estão sendo aplicados. As irregularidades mais freqüentemente encontradas são: licitações direcionadas ou fraudadas; uso de notas fiscais frias; superfaturamento de obras; pagamento integral por obras não concluídas e abandonadas; falta de efetividade no funcionamento dos conselhos municipais de controle social; e pagamento de benefícios sociais a pessoas que não se enquadram nas regras dos programas. Entre as irregularidades descobertas pelos fiscais da CGU está o financiamento de R$ 17,7 milhões liberados pela Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste) para uma empresa que nunca funcionou, em Horizonte, Ceará.

"Fiscalizamos o destino de R$ 2 bilhões de recursos da União e provavelmente algumas centenas de milhões foram desviados. É uma margem de irregularidade alta, que me surpreendeu", disse, em entrevista ao jornal Valor Econômico, o ministro Waldir Pires. O oitavo sorteio – e primeiro deste ano – será realizado em março. Todos os dados fiscalizados, divididos por sorteio e por município, podem ser consultados na página da Controladoria (o link se encontra ao lado). Além da fiscalização nos municípios sorteados, a CGU também atua apurando denúncias, que podem ser feitas tanto pela Internet quanto por telefone e fax. "É importante somente que as pessoas tenham indícios concretos, provas", diz Gayre, revelando também que todo tipo de pessoas faz denúncias à CGU, desde ex-prefeitos até professores escolares.

O trabalho recebe elogios de Abramo, mas o diretor da Transparência Brasil alerta que são necessárias mudanças mais estruturais. "A CGU tem a função de fazer a corregedoria de todo o orçamento federal. O trabalho que tem sido feito – com os sorteios – é bom, pois mostra que a vigilância aumentou. Mas tem defeitos: é muito pontual. Depois que as forças-tarefa saem dos municípios, o que acontece?", indaga. Segundo Abramo, a CGU pode fiscalizar, mas seu trabalho não promove o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle dos órgãos públicos. "E nem é atribuição da CGU fazer isso. Seria da competência de tribunais de contas etc.", completa.

Além dos sorteios periódicos da CGU, outro instrumento relativamente recente do esforço de se promover a transparência nas contas públicas é a Lei de Responsabilidade Fiscal, criada em 2000. A norma prevê, entre outras coisas, que os governos municipais não podem deixar dívidas para as administrações seguintes. Além disso, obriga que todos as prefeituras tornem público um balanço mensal e uma consolidação mais detalhada de seus gastos a cada três meses. Abramo classifica a lei como "um bom exemplo de aperfeiçoamento nos mecanismos de controle do Estado".

Elenice Carille, da OAB, acha que a lei teve um papel preponderante ao dar limites aos poderes do gestor público, coibir excessos e aumentar a transparência dos gastos. Para ela, a sociedade tem procurado fiscalizar as contas, mas lhe faltam instrumentos adequados. “Há disposição para fiscalizar, o que não existe é aparelhamento. Descobrir corrupção não é coisa fácil, é preciso levantar bens, patrimônios. E, no Brasil, não há pudor. Eles [os corruptos] saem do país por dois, três anos, depois voltam e fica tudo como estava. Eu já estive profundamente envolvida na apuração de várias denúncias e sei o quanto é difícil; o resultado foi pífio”, lamenta.

Já Sucupira lança luz sobre uma outra faceta: para ele, a lei tem seus méritos, como o de obrigar os governantes a executarem uma gestão comprometida com o futuro da sociedade e do município, estabelecendo parâmetros para os gastos públicos. "No entanto há um demérito: o de ser uma lei intransigente. Ela considera a dívida financeira e não a dívida social, privilegiando a primeira ao impor a rigidez no pagamento do que as prefeituras devem. Esse é o lado ruim da lei, pois os recursos que poderiam ser destinados a ações importantes e até emergenciais na área social terão que, na verdade, ser empregados para pagamento de dívidas".

Uma questão de postura

Independentemente de ações e forças-tarefas governamentais ou de esforços pontuais, o que parece ser consenso é que o combate eficaz – ou a prevenção – à corrupção no país está intimamente ligado à mudança de postura: de administrações públicas, dos cidadãos, da sociedade civil organizada, dos órgãos de imprensa. Por parte de governantes, é preciso uma transparência maior com a coisa pública, cientes de que o compromisso que têm é com a população que os elegeu. Como diz Sucupira, "a extinção da corrupção passa por uma postura do poder executivo, de querer dar transparência às suas práticas". Para ele, esse posicionamento deve perpassar também os membros do Judiciário. "O seu controle externo deve ser exercido. Não se trata de as pessoas terem ingerência nas sentenças, não é isso. Mas os cidadãos poderem conhecer e 'controlar' melhor os processos administrativos, sem interferência na finalidade do Judiciário. Nada mais razoável do que isso", diz o coordenador do Ibase.

O que Sucupira demanda pode ser traduzido em uma palavra: transparência. E essa só será difundida e cada vez mais adotada na medida em que os cidadãos pararem de considerar o roubo de dinheiro público algo institucionalizado, natural, e começarem a acompanhar de perto e de forma consciente as possíveis falhas, a aplicação de verbas e os mecanismos existentes de controle de todo este quadro. "Os brasileiros têm uma cultura de preocupação com o mundo empírico. Há mais preocupação com o discurso do que com a prática", aponta Abramo. Ou, como resume Sucupira, "qualquer cidadão sempre pode fazer algo: desde pagar devidamente os tributos, sabendo que aquilo irá favorecer a si próprio de forma indireta, até cobrar dos governos a aplicação correta dos recursos. Mas, muitas vezes, isso não ocorre porque as pessoas vêem a corrupção como algo comum. A impunidade leva à descrença. E não podemos ser assim. A gente precisa recuperar a capacidade de se indignar".

Fausto Rêgo e Maria Eduarda Mattar

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