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O medo como arma

Autor original: Fausto Rêgo

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O medo como arma
"O Grito", de Edvard Munch
O medo tem servido, ao longo da história, como uma estratégia de dominação das elites, que assim conseguem manter a rígida hierarquia social que afasta pobres e ricos, brancos e negros e impede transformações. Em linhas gerais, é o que defende a socióloga Vera Malaguti Batista no livro “O medo na cidade do Rio de Janeiro – dois tempos de uma história” (Editora Revan). Professora de criminologia da Universidade Cândido Mendes e secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia, ela vai na contramão do discurso predominante - que atribui grande parte dos problemas brasileiros à impunidade. Vera Batista fala numa escravidão moderna determinada pelo neoliberalismo, que trata como cidadãos apenas os que podem consumir, e é respaldada por uma série de mecanismos – entre eles a mídia. Essa “cultura do medo”, teoriza, é usada como pretexto para a violação de direitos. Para Vera Batista, dois acontecimentos recentes acabam sendo exemplares dessa realidade: o assassinato do dentista Flávio Santana, confundido pela polícia com um assaltante, em São Paulo, e o episódio ocorrido com o jovem Luciano Ferreira da Silva - filho de criação do cantor Caetano Veloso -, expulso de um shopping center no Rio de Janeiro por um segurança. “O pobre e o negro são sempre alguma coisa ‘fora do lugar’. O errado, entre aspas, no sentido da naturalização da hierarquia social brasileira, é aquele menino ser um jovem dentista, porque todo negro morto é, também entre aspas, traficante. A polícia, o segurança, eles só encarnam esse desejo coletivo da elite”, afirma.

Rets - O medo que se vive hoje no Rio de Janeiro é diferente do que sentem cidadãos e cidadãs de outros grandes centros urbanos no Brasil e no exterior?

Vera Batista - Acho que tem algumas semelhanças e algumas diferenças. Tem um sociólogo polonês chamado Zygmunt Bauman que mostra como a insegurança coletiva – trabalhista, previdenciária – é difusa, e aí as pessoas acabam tendo uma percepção da segurança pública. Nesse sentido, acho que é um medo global. Agora, o que difere aqui é a nossa história específica. O outro que as pessoas temem é que varia, mas o estereótipo do medo aqui e nas sociedades escravocratas é sempre muito parecido.

Dois acontecimentos recentes têm tudo a ver com o meu trabalho: foram os casos do filho de criação do Caetano, no Rio, e do dentista assassinado em São Paulo. Eu até penso assim: o segurança e os policiais são treinados para isso. O que tem de errado ali é o menino ser filho do Caetano e o outro ser dentista. Eu trabalho muito a “estética do shopping center”. O shopping center é um lugar de brancos bem nascidos. O pobre e o negro são sempre alguma coisa “fora do lugar”. O errado, entre aspas, no sentido da naturalização da hierarquia social brasileira, é aquele menino ser um jovem dentista, porque todo negro morto é, também entre aspas, traficante. A polícia, o segurança, eles só encarnam esse desejo coletivo da elite. A elite brasileira é cruel, exterminadora. E com o neoliberalismo essas coisas se acentuaram. A taxa de letalidade no nosso capitalismo é altíssima, barbárie total, só que de vez em quando pegam alguém “errado”. Aí todo mundo quer cidadania, direitos humanos...

Rets - No livro, você traça um panorama dessa estratégia de dominação através do medo que remonta ao século 19. Como é possível que essa estratégia tenha se mantido por tanto tempo e de forma tão imperceptível?

Vera Batista - O extermínio é a marca inaugural da conquista da América. A civilização é a barbárie. Nossa história é muito violenta seletivamente, violenta contra os índios, os africanos... O interessante no século 19 é que você tem uma ruptura a partir da independência do Brasil, com uma nova Constituição, uma arquitetura jurídico-penal de um país independente. Aí é o momento em que o liberalismo está entrando no Brasil e você tem o eterno paradoxo da cidadania brasileira – que eu chamo de “ciladania” -, que é entre liberalismo e escravidão. O grande dilema brasileiro era ser liberal sem abrir mão da escravidão. A Constituição brasileira era um exemplo, o código penal de 1830 foi copiado até na Espanha, mas, ao mesmo tempo, convivia-se com esse paradoxo de dizer que o direito à propriedade estava acima de todos os direitos. Como o escravo era propriedade... O escravo aparece como coisa perante o ordenamento jurídico das relações privadas, mas ele é pessoa perante o direito penal.

Isso foi na entrada do liberalismo. Depois teve a história da ditadura militar e tal... Mas o que eu mais quis trabalhar no livro foi essa naturalização, essa estética da hierarquia brasileira. Na verdade, a escravidão continua. Normalmente, tirar um menino negro do shopping é uma coisa natural, o segurança é treinado pra isso. E o neoliberalismo tem uma coisa muito parecida com o período do liberalismo: proliferam os discursos dos direitos humanos, da cidadania, mas, ao mesmo tempo, é um período – em termos de extermínio e tortura – muito mais grave do que nos tempos da ditadura. Porque é um discurso vazio. O neoliberalismo exclui, demoniza. É a criminalização da pobreza. O cidadão é aquele que consome. Quem não tem emprego, não tem capacidade de consumir, é criminalizado. E tudo que é estratégia de sobrevivência da pobreza vira o mal – é camelô, é flanelinha... então acho que essa ordem é uma permanência do século 19 pra cá.


Rets - E torna-se imperceptível.

Vera Batista - Você naturaliza, conheço várias histórias. Tem uma amiga minha, por exemplo, que foi a uma piscina de um clube, viu um negro sentado e falou: “Você pode me dar uma toalha e um guarda-sol?”. E ele era um freqüentador do clube como qualquer outro. É muito rígida essa hierarquia brasileira.


Rets - E qual o papel dos meios de comunicação nesse processo?

Vera Batista - É fundamental. Os meios de comunicação não são ingênuos, no sentido de que eles representam interesses. Isso não é errado, só que não é claro. Aquilo é uma interpretação dos fenômenos. Você poderia ler, por exemplo, o fenômeno dos arrastões dizendo: “Pôxa, nós não estamos com projeto nenhum para esses garotos”. O arrastão poderia ter "detonado" a melhoria dos ônibus, do acesso às praias, mas a onda do medo branco também favorece políticas conservadoras. Em 94, no Rio de Janeiro, foi uma das primeiras vezes em que a direita ganhou de cima a baixo. E de lá pra cá, nada mudou. Por exemplo, a questão da segurança pública: ela vai numa escalada de mortes, mas as pessoas passaram a se sentir mais seguras porque tinha um general dizendo: “Eu mato”. E aí tem todo um discurso de que você não pode enfrentar essa coisa sem vigor. Então eu acho que a imprensa cumpre um papel fundamental na criminalização da política e na politização das relações pessoais, privadas, públicas e sociais, de uma forma geral. Hoje as pessoas querem mais pena, mais prisão, que Fernandinho Beira-Mar fique dez anos numa solitária. Isso as faz se sentirem seguras.

A mídia, de uma certa forma, tem responsabilidade ao trabalhar uma agenda punitiva e policialesca. Estamos vivendo um período de vigilância eletrônica, todas as pessoas estão sendo filmadas, o que é um fenômeno do mundo neoliberal, da indústria da segurança pública. Estamos vivendo um Estado muito mais policialesco do que no momento da ditadura, embora o discurso seja a favor dos direitos humanos. Eu até escrevi um artigo, nessa campanha eleitoral de 2002, dizendo que tinha me impressionado muito que todos os candidatos tinham o mesmo discurso penal. Ninguém tem coragem de enfrentar isso porque as pessoas com medo se paralisam, ficam conservadoras. A minha tese principal é que o medo é uma estratégia de disciplinamento, tanto dos que provocam o medo como dos que têm medo. A partir do momento que você tem medo, você quer que no shopping tenha segurança que não deixe o menino da Rocinha [maior favela do Rio de Janeiro] se encontrar com o seu filho. As pessoas não se vêem como iguais – e não são mesmo, nem há nenhum projeto pra isso.


Rets - Não há possibilidade de que esse medo, como estratégia de dominação da elite, saia do controle, já que as tensões sociais aumentam e a violência também?

Vera Batista - Acho que sim, mas aí ela [a elite] neutraliza. Por exemplo, em 94, o Brizola era o símbolo da desordem e do caos, e era o vice do Lula. O Lula perdeu, entrou o novo governo e o medo continuou. Mas existem vários estudos sobre a questão da sensação de segurança. Se você vê o Jornal Nacional e tem um monte de notícias positivas, acaba se sentindo mais tranqüilo. Agora, se você tem dez minutos por dia, em todos os jornais, falando da escalada da violência, arrastão e tudo o mais... eu lembro que teve um episódio em que os moradores do morro do Catumbi tinham descido para fazer uma manifestação. Todas as pessoas que passavam largavam os carros e saíam correndo, com medo.

A gente tem um monopólio televisivo, um monopólio da opinião pública. O que sai no Jornal Nacional é a verdade. Há uns 15 anos os jornais eram mais independentes, mas hoje em dia todo mundo copia aquele padrão. Na hora do “vamos ver”, não tem ninguém. E às vezes grande parte da oposição incorpora, como está acontecendo agora, esse discurso.


Rets - No prefácio do livro “Cultura do Medo”, de Barry Glassner, o ex-secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, afirma que “a incapacidade brasileira de enfrentar a violência urbana tem o mesmo fundamento da americana: qualquer mudança em sociedades tão desiguais é vista e sentida com pavor. E continuamos a investir nossos medos em alvos mais improváveis, a dissimular o que efetivamente nos inquieta”. Como você vê essa afirmação? Estamos, de fato, mascarando o nosso medo de mudar o quadro de desigualdade quando supervalorizamos a violência e elegemos seus atores mais prováveis – em outras palavras: negros e pobres?

Vera Batista - Com certeza, e é o que eu trabalho no livro. Eu trabalho a ambiência em torno da Revolta dos Malês [veja box ao lado]. Olhando hoje, você pensa: que lindos, que heróicos! Mas naquele momento aquilo era lido como uma coisa criminosa pela ordem escravocrata. Os advogados dos malês quase eram linchados. Uma vez eu disse num seminário: será que essa luta cotidiana, essa violência cotidiana, não é uma luta pela cidadania dos garotos que também querem consumir o que os meus filhos consomem? É uma luta pós-moderna, neoliberal, despolitizada. A despolitização, a criminalização da política, são coisas fundamentais para isso acontecer. Esses meninos despolitizados também estão trabalhando numa lógica do capital – eles também querem ter.

Agora, ninguém questionava também, naquela época, no século 19, a escravidão. Nós fomos o penúltimo país do mundo a abolir a escravidão – o último foi o Marrocos. Então, desde o fim do tráfico, passamos 50 anos mantendo a escravidão e tentando fazer segurança pública contra a escravidão, contra uma rebelião que está sempre prestes a explodir – como agora. É lógico que um dia a favela vai descer. Tem que descer. Porque não há projeto a longo prazo, reforma agrária, uma escola pública de alto nível, em tempo integral. Eu estudei em escola pública e ali você se enxerga, você se vê na outra pessoa. Mas essas pontes foram todas quebradas.

A gente tem que recuperar o fio da história. Essa década do século 19 que eu trabalhei é uma década linda, em que o Brasil, de sul a norte, é sacudido. Dos Farroupilhas [revolta acontecida no Rio Grande do Sul] até a Cabanagem, no Pará. Quer dizer, o povo brasileiro todo dizia: somos uma nação. E a gente lida com esse fantasma, que na psicanálise é o “retorno do recalcado” – porque a gente não resolve essa questão. Mais uma vez a gente continua com aquela fórmula colonizada, o povo brasileiro não é soberano, você tem a nova escravidão. As pessoas acham que você vai combater a prostituição infantil, a escravidão, com leis mais duras. Prostituição é uma atividade da miséria. Lógico que tem meninas que não são miseráveis e fazem programa. Mas de uma certa forma elas são empurradas pra isso. E o que é prostituição infantil? É trabalho infantil.

O sistema penal se fortaleceu. Quando você pega as taxas de encarceramento, é uma coisa absurda. Quando a gente olhar historicamente esse período, as estatísticas vão nos apavorar. Os Estados Unidos, por exemplo, estão com uma população carcerária de dois milhões de pessoas. Se você for olhar quem está preso, ou é afro-americano ou são hispânicos e, agora, uma leva de árabes, de supostos terroristas. E, por exemplo, São Paulo, que está com 120 mil presos - quer dizer, é uma cidade. Isso é uma maneira neoliberal de encarar o social. E a maioria das pessoas fala: “o problema do Brasil é a impunidade, precisa ter uma pena maior”. E os presídios estão virando um horror, as pessoas não têm direito a conversar, a receber correspondência. Toda aquela pauta pela qual nós lutávamos durante a ditadura não vale mais. Pra nós, sim, mas pra eles não. Enquanto houver essa cisão, enquanto se falar em “nós” e “eles”, enquanto você não se enxergar no outro, nada disso vai mudar.

Fausto Rêgo
Colaborou Graciela Selaimen

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