Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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A fonte da vida não é inesgotável. A água, cada vez mais, vem sendo objeto de debates, preocupações e interesses. Vislumbra-se um futuro sombrio – fruto de desperdício, crescimento populacional exponencial e desleixo – em que povos se enfrentem pelo domínio de reservas naturais. Em breve, ela poderá ser - e muito provavelmente será - pivô de guerras, dona de um valor econômico estratosférico e de uma importância social ainda maior.
Não é de hoje que se aborda a sua importância. A cada ano, às vésperas do Dia Mundial da Água, celebrado em 22 de março, os debates acerca de temas como "manejo integrado de recursos hídricos", "privatização da água", "cobrança pelo uso", "saneamento" e "soberania sobre reservatórios", entre outros, se acirram. Cenários e temores voltam à tona e apressam a corrida por soluções. No Brasil, este ano, um componente de peso vem se somar a esta equação: a Campanha da Fraternidade 2004, promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que entre seus principais pontos pede mudanças em conceitos usados na legislação referente à água.
Todos estes debates têm na base uma única motivação: o medo de que a água acabe no mundo. E, a respeito disso, faz-se necessária uma explicação: a quantidade de água, desde que os seres humanos começaram a viver no planeta, é e sempre foi a mesma; e vai continuar sendo durante séculos. O que muda - e, então, pode ser visto como problema digno de temor - é a disponibilidade da água, o ritmo em que ela se repõe na natureza. Ou, como explica Demóstenes Romano, coordenador do Projeto Gente Cuidando de Águas, "o que acontece é que ela está cada vez mais longe da gente; os aqüíferos estão mais baixos; a água está indo mais rápido para os mares".
O ciclo hidrológico
As águas normalmente usadas pelos seres humanos são retiradas de rios, lagos, minas etc., as chamadas águas superficiais. Ou seja, água doce retirada dos corpos d'água situados acima da superfície terrestre. No entanto, para estas águas estarem disponíveis, todo um ciclo ocorre, envolvendo evaporação, condensação, chuvas, absorção pelos solos, até chegarem aos aqüíferos, tempo para "reabastecimento" das minas, corrida das águas para o mar etc. Esses processos demoram - alguns mais, outros menos.
Porém o ritmo da natureza não é o mesmo do crescimento populacional humano, que - aliado a desperdício, poluição crescente dos corpos d'água e solos cada vez mais impermeabilizados – é o grande vilão da questão. O aumento no número de habitantes do planeta foi, por exemplo, citado em estudo publicado em março do ano passado pelas Nações Unidas. Segundo o documento, produzido pelo Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos (cuja secretaria está a cargo da Unesco), "na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 países estarão enfrentando falta de água na metade deste século. Na melhor das hipóteses, dois bilhões de pessoas em 48 países estarão nesta situação. Isto vai depender de fatores como o crescimento populacional e o desenvolvimento de políticas".
Outras perspectivas ruins foram apontadas por pesquisa do Programa para Assentamentos Humanos (Habitat), da ONU. Em outubro de 2003, o órgão divulgou relatório sobre água e saneamento ambiental no mundo segundo o qual mais de um bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento estão sem água segura para beber. Quase três bilhões de indivíduos vivem sem acesso a saneamento adequado. E tudo isso tem a ver com o mesmo assunto: acesso das pessoas à água.
Disponível no sítio da Secretaria Nacional dos Recursos Hídricos, ligada ao Ibama, estudo realizado sobre os possíveis cenários da gestão de recursos hídricos no Brasil entre 2000 e 2005 não enxerga possibilidades mais otimistas. No cenário crítico vislumbrado, o agravamento da falta de água nas grandes e médias cidades, "onde se deve concentrar o aumento da urbanização"; "racionamento energético"; "aumento de perdas econômicas devido às enchentes e aos gastos inadequados com a construção de canais urbanos".
Mas como, em um país como o Brasil, que detém 13% do total de recursos hídricos do mundo, a água continua abundante na maioria das cidades, as pessoas não a tratam e utilizam com o cuidado e o respeito que merece. Além de desperdiçarem, poucas percebem que a água é um patrimônio público e que, além de usá-la com consciência, devem prestar atenção à sua gestão, participando dos espaços onde a sociedade civil pode se inserir para influenciar no manejo das águas no país.
Usar com consciência
O desperdício de água tratada no Brasil é de cerca de 40%, segundo o relatório da última reunião do Parlamento Latino-americano, realizada em 2003, no México. Já uma pesquisa da Coordenação de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) indica que o país perde 46% da água coletada, um total de 5,8 bilhões de metros cúbicos por ano (a quantidade seria suficiente para abastecer França, Suíça, Bélgica e norte da Itália juntos por igual período). Variações à parte, a estatística, de qualquer maneira, é alta, principalmente se comparada à média considerada ideal pela ONU: 20%.
Os motivos para índices tão grandes incluem vazamentos, ligações clandestinas e atitude pouco consciente das pessoas. Principalmente no setor agrícola, que usa seis em cada dez litros de água consumidos no país. A irrigação, feita de forma perdulária, é a vilã. Para Roberto Malvezzi, integrante da Comissão Pastoral da Terra e um dos idealizadores da Campanha da Fraternidade 2004, o reaproveitamento da água da chuva deveria ser aplicado nesses casos. "Essa é uma das questões que estamos colocando. Um belo exemplo disso é o Programa 1 milhão de Cisternas, implementado pela Articulação do Semi-Árido, no nordeste brasileiro. Lá a agua é captada por meio de cisternas e aproveitada nas casas. Mas nós acreditamos que também pode ser aproveitada na agricultura", diz. Demóstenes Romano concorda, acrescentando que, mesmo sem captação de águas de chuva na agricultura, existem maneiras de a irrigação ser realizada de forma mais razoável. "Existem tecnologias para isso", afirma.
Malvezzi acredita o reaproveitamento também pode ser feito nas áreas urbanas. A cidade de Curitiba (PR) está sendo uma das pioneiras nisso. No próximo dia 30, entra em vigor uma lei municipal que determina o reaproveitamento da água em novas construções feitas na cidade. A partir dessa data, todos os projetos apresentados na prefeitura para a obtenção de alvará terão de seguir as novas normas, que permitem diminuir o consumo de água no município. A medida vale para edifícios residenciais, comerciais e industriais. Em Belo Horizonte, o projeto Gente Cuidando das Águas está apresentando ao poder municipal uma proposta de captação de água das chuvas nos telhados das casas. "Parece que existe também um programa da Prefeitura de São Paulo que exige que os edifícios tenham seus sistemas de captação de água da chuva, para evitar enchentes e reusarem", lembra o representante da CPT.
E é justamente na cidade de São Paulo que está sediado o Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. A organização é uma das principais a tentarem difundir entre cidadãos e cidadãs idéias e atitudes com as quais o consumo não se torna algo predatório. "É preciso passar para as pessoas que a escassez é um problema grave e que a soma de esforços pode mudar esse quadro. É importante dar sugestões concretas do que pode ser feito na prática", diz Aron Belinky, gerente geral do Akatu. O instituto tem uma cartilha, chamada Sou Mais Nós, acessível na sua página eletrônica, que aponta dicas concretas de como as pessoas podem reduzir o desperdício de água em suas casas e nas práticas diárias.
Participar da gestão
Porém um relacionamento consciente por completo com as águas passa não só pela boa utilização dos recursos, mas também pela participação nos assuntos referentes à sua gestão. E isso pode ter conseqüências mais imediatas do que as pessoas imaginam - como, por exemplo, a definição sobre cobrança ou não pelo uso da água. Participar da gestão significa compreender essa e outras questões.
Além de fazer mobilizações, a sociedade civil organizada pode tomar parte dos comitês de bacias hidrográficas - instâncias criadas pela lei 9344, de 1997, que institui o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Pela norma, a gestão de rios, lagos, nascentes etc. deve ser feita pelo comitê da bacia hidrográfica no qual o corpo d'água está inserido. Os comitês ficam responsáveis por decidir sobre a cobrança pela retirada da água e pela devolução de águas poluídas, além de aprovarem, pelo menos em tese, os pedidos de novas outorgas para exploração de rios, poços etc.
No entanto, segundo Roberto Malvezzi, da Campanha da Fraternidade, os comitês vêm tendo um papel secundário. "Os comitês de bacia, que são a base desse sistema e justamente o espaço onde a sociedade civil pode participar, ainda são poucos. Eles têm o poder de aprovar as outorgas de uso da água - outorgas essas de menor escala. As de grande escala são aprovadas pela ANA - Agência Nacional de Águas. Acaba que os comitês estão tendo um papel secundário".
O secretário Nacional de Recursos Hídricos, João Bosco Senra, rebate, apontando que a formação dos comitês depende da articulação das sociedades locais. "A implementação dos comitês parte da própria sociedade da bacia em que ele vai ser implantado. Portanto é necessário que a sociedade se mobilize". Segundo o secretário, hoje em dia existem mais de 90 comitês no país, entre estaduais e federais. Para que as pessoas, principal parte implicada, tenham maior representatividade nos comitês, a Campanha da Fraternidade 2004 defende também que se aumente a cota para os membros da sociedade civil organizada. "Uma resolução definiu que os comitês devem ter 40% de membros do poder público, 40% de membros vindos da iniciativa privada e 20% de membros oriundos da sociedade civil organizada. Ora, isso tem de ser mudado, pois a sociedade civil é justamente a parte mais interessada e menos representada. Queremos que a composição dos comitês seja paritária", alerta Malvezzi. "Não queremos acabar com o sistema na base. Queremos fortalecê-lo", completa.
Cobrança
Uma vez devidamente instalados, os comitês são os responsáveis por decidir sobre um assunto que, por mexer com o bolso dos cidadãos e com alguns conceitos e princípios, suscita reações fortes e variadas: a cobrança pelo uso da água. É preciso entender que as pessoas com acesso à água encanada, no Brasil, já pagam pelos serviços de abastecimento e esgoto sanitário. A cobrança em questão diz respeito ao pagamento por cada metro cúbico utilizado pelas pessoas, além daquele feito pelo serviço utilizado.
João Bosco Senra comenta que, "para se fazer a cobrança, é preciso elaborar um Plano de Bacia (cada comitê deve fazer o seu) e uma análise econômica sobre a questão. Pode ser que os comitês decidam não cobrar nada. Fica a critério deles cobrar tanto pela retirada quanto pela devolução de águas poluídas. Isso vai depender da bacia hidrográfica em questão. Algumas terão muitas indústrias instaladas, o que provavelmente levará à cobrança, principalmente dos consumidores industriais. Outras, como a bacia amazônica, têm em sua maioria apenas consumo doméstico", explica.
Um dos argumentos que balizam a oposição à cobrança pelo uso da água é o fato de a Constituição brasileira reconhecer aquilo que o senso comum supõe: as águas são de domínio público, propriedade da União e, portanto, do povo brasileiro. "A defesa da cobrança pela água parte de uma visão utilitarista. Toda a estrutura que temos hoje em dia, inclusive com os termos utilizados na legislação, contribui para que ela seja considerada um recurso. E, sendo um recurso, o caminho lógico seria a cobrança", afirma Demóstenes Romano.
No entanto a cobrança poderia contribuir para que as pessoas valorizassem mais a água de que dispõem, funcionando como um "aviso" permanente para evitarem o desperdício. "A cobrança pelo uso pode ser um instrumento de gestão para garantir o bom uso da água. Mas é preciso ser combinada com políticas públicas que garantam efetivamente o acesso à água, que é um direito", acredita Belinky, do Akatu. Para Malvezzi, devem ser feitas mudanças na forma de cobrança pelo volume de água utilizado. "Pela lei de 1997, qualquer um que retire água de um corpo de água deve pagar pelo metro cúbico utilizado. Seja lá quem for, paga o mesmo pelo metro cúbico. Isso não pode se dar. Por exemplo: uma cervejaria, que tem fins de lucro, não pode pagar o mesmo que uma companhia de abastecimento de água, que presta um serviço social e importante para a sociedade".
Outro assunto comumente levantado é a não cobrança dos serviços de água. A reivindicação se baseia, entre outras coisas, no fato de que o acesso à água é um direito humano, reconhecido pelas Nações Unidas em fins de 2002. A água deveria chegar à casa das pessoas por meio de empresas públicas, que não cobrassem pelo serviço. No entanto a reivindicação não encontra muito eco, a não ser em condições especiais: quando os "consumidores" são cidadãos de baixa renda, que não têm como pagar pelo serviço. Nesses casos, a idéia encontra a adesão de instituições de defesa do consumidor e daquelas que trabalham junto a comunidades carentes. A maior preocupação é a saúde das pessoas.
Afinal, aproximadamente 70% das internações hospitalares no Brasil são provocadas por doenças transmitidas por água contaminada. É justamente esse tipo de água que cidadãos carentes utilizam quando não têm o devido acesso a água tratada. Assim, Sezifredo Paz, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), defende a distinção. "A cobrança para a população em geral deve haver. O que defendemos é que, para as pessoas de baixa renda, o governo ofereça subsídios e, para aquelas abaixo da linha de pobreza, o acesso à água seja gratuito", diz o coordenador executivo da ONG.
Ultimamente, o Idec vem jogando luz sobre um assunto correlato: o sistema pré-pago de cobrança pelos serviços, que vem sendo instalado experimentalmente em alguns municípios, como Palmas, capital de Tocantins. Segundo Paz, o grande problema desse tipo de sistema - feito através da compra de cartões pré-pagos, que dão direito a uma determinada cota de uso - é que pode aumentar a exclusão de pessoas carentes dos serviços de saneamento. "Além de a pessoa pagar antes por algo que ainda não consumiu, o sistema facilita o desligamento dos usuários. Para colocar o tema em debate, o Instituto promove no dia 15 de março, Dia Internacional do Consumidor, o seminário "Direito à Água: Sistema Pré-Pago e Impactos aos Consumidores", em São Paulo (SP).
Mudança de conceito
O mais novo fator somado ao debate atual sobre as questões relacionadas à água foi trazido pela Campanha da Fraternidade 2004. Uma das principais reivindicações da iniciativa é que mude a maneira como a legislação se refere à água. A proposta da CNBB é que deixe de ser usado o termo "recurso" e passe a ser usada a palavra "patrimônio". Malvezzi explica a motivação: "Mudando essa concepção, pretende-se estimular uma mudança cultural, o que, naturalmente, só pode se dar aos poucos. Pretendemos provocar a reflexão. E queremos, para isso, ver a mudança consolidada em lei".
Senra acredita que a mudança pode ajudar a explicitar certas questões, mas considera que a legislação, como está, já dá a noção que a CNBB quer. "Na medida em que a Constituição Federal diz que a gestão da água é de competência da União e dos estados, já está implícito que é um patrimônio, que é da população. Caso contrário, poderia ser gerida pela iniciativa privada. A diferença é semântica, na verdade", diz o secretário Nacional de Recursos Hídricos. "Está correto quererem explicitar a função social e ecológica da água", reconhece.
Belinky também acredita ser válida a questão trazida à tona pela Campanha da Fraternidade. "A reivindicação da campanha faz muito sentido", diz. No entanto, para Demóstenes Romano, a mudança na nomenclatura poderia ser mais eficaz se fosse mais radical. “Não sei se 'patrimônio' é a melhor palavra. A Campanha da Fraternidade está no meio do caminho, não avança. Ela é correta, mas conservadora", diz o mineiro, que acredita que a água deve ser vista como um outro ser vivo, como algo muito mais importante e com que se deve ter muito mais cuidado do que se teria com um bem ou um patrimônio.
Patrimônio, bem, recurso ou ser vivo, o fato é que, analisando os debates atuais sobre água, a conclusão necessária é de que o modo como as pessoas se relacionam com ela precisa mudar. Deve-se deixar de encarar sua abundância em mares, rios e lençóis freáticos como garantia de oferta constante; deve-se deixar de poluir e calcular melhor as conseqüências da urbanização e do aumento populacional; deve-se encará-la como algo ao mesmo tempo de todos e de ninguém e que, por isso mesmo, deve ser bem cuidado; e, não menos importante, deve-se ter a preocupação com o seu gerenciamento, tendo em mente a ameaça da escassez - antes que a fonte de vida no planeta desça pelo ralo.
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