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Esperança equilibrista

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






Esperança equilibrista
Acervo Iconographia

Em uma das muitas tiras produzidas pelo cartunista Henfil durante o regime militar, três dos seus mais conhecidos personagens ­ Graúna, Zeferino e Bode Orelana ­ aparecem olhando para um dos cantos, com expressão de espanto. A Graúna diz: “Tô vendo a esperança!”. Os outros perguntam: “Onde?”. E ela: “Está na nossa frente!”. Eles dizem: “Oba!”. E saem ansiosos, em disparada. No quadro seguinte, encontram réplicas deles mesmos. Graúna diz: “Taí!”. E Orelana, perplexo: “Mas... somos nós!”. A tira termina com os três olhando para o leitor: “Será que entenderam? Sei não, sei não...”.





A consolidação das organizações não-governamentais e dos movimentos sociais é um processo que tem início em um período em que a participação popular – especialmente nos campos político e da livre expressão – era negada. No cerne da resistência ao regime de exceção, formaram-se movimentos, associações e sindicatos. Quarenta anos após o golpe militar de 31 de março de 1964, olhar em direção ao passado traz a lembrança de uma história de construção – ou reconstrução – da cidadania a partir de iniciativas de base. Uma história que, a partir daqui, passa a ser contada por alguns de seus personagens.

Ruptura e contra-poder

Num primeiro momento, a ruptura democrática levou ao desmantelamento de algumas estruturas da sociedade, como as ligas camponesas e os movimentos estudantil e sindical – em particular no período pós-1968. E as poucas remanescentes ainda enfrentaram severas restrições. Ao mesmo tempo, observa a antropóloga e estudiosa do terceiro setor Leilah Landim, desmontava-se o chamado pacto populista – uma forma particular de relação entre governo e sociedade caracterizada “por relações corporativistas, de dependência ou de alianças que compreendiam uma atuação das associações centrada no Estado ou passando pelo interior do aparelho de Estado”.

“A ruptura com esse modelo, ou seja, a implantação de um regime ditatorial onde se cortaram essas relações com a sociedade, criou condições para o nascimento gradual de um terreno organizativo – finalmente – autônomo com relação ao Estado. É a conhecida história do novo sindicalismo, dos movimentos de bairro etc. dos anos 70 e 80, marcada pela atuação da chamada ‘Igreja Popular’ e de tendências renovadas na esquerda caracterizadas por certo antiinstitucionalismo e mais centradas na sociedade civil. As chamadas ONGs que se criam então – ou os Centros de Assessoria aos Movimentos Populares – fazem parte desse processo e contribuem para fortalecê-lo, com sua ação pautada por ideários de organização autônoma das camadas populares e de criação de contra-poderes nas bases da sociedade”, explica Leilah.

Na visão de Jorge Eduardo Saavedra Durão, diretor geral da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) e diretor executivo da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a resistência à ditadura teria propiciado, a longo prazo, uma evolução das organizações da sociedade civil em termos de autenticidade e combatividade. “No meio rural, a ditadura estimulou a constituição e reativação de sindicatos de trabalhadores, muitos dos quais eram ‘pelegos’ no início, mas foram paulatinamente reconquistados através da luta dos trabalhadores rurais”.

Ex-diplomata em Genebra, Suíça, preso sob a acusação de liderar uma campanha internacional de denúncia da tortura praticada pela ditadura, Miguel Darcy de Oliveira acredita que essa resistência tenha sido essencial na emergência de uma sociedade civil no Brasil. “Seu embrião foram os espaços de liberdade e de participação criados pelos cidadãos nos interstícios do Estado autoritário. Novas formas de ação e de organização foram inventadas na base da sociedade e, durante um certo tempo, ‘de costas para o Estado’. Um novo relacionamento se estabeleceu entre os ‘centros de educação popular’ e as comunidades e os movimentos populares. Esse lento e longo processo de reconstrução do sentido e da esperança está na origem da explosão das ONGs nos anos 80”, diz Darcy, que teve de sair clandestinamente do país, viveu nove anos como exilado político na Suíça e hoje é secretário executivo do Instituto de Ação Cultural (Idac).

O fortalecimento da sociedade civil é resultado de tudo o que aconteceu nos anos 60, argumenta o jornalista Mário Osava, correspondente da agência de notícias Inter Press Service, que inclui aí as revoluções cultural, política e social. “O Brasil, nos anos 60, sofreu uma revolução, mas as pessoas não se deram conta. Foi algo que adquiriu formas diferentes em cada lugar”. Como exemplo, ele destaca o ano de 1968, que marcou o início da derrota americana no Vietnã, o maio francês e o Ato Institucional nº 5 (AI5).

Ex-integrante do movimento conhecido como Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), no qual militou de 1967 a 1973, Osava chegou a ser preso. Foi libertado pouco depois, juntamente com outros companheiros, em troca do cônsul do Japão, Nobuo Okuchi, seqüestrado pela VPR. Exilou-se no México e de lá planejava seguir para Cuba, onde faria treinamento para voltar à luta armada. O desmanche da organização pelos militares inviabilizou o plano.






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A ditadura, ele afirma, foi útil para que os próprios militantes de esquerda percebessem os problemas do poder exagerado do Estado e ampliassem suas idéias de democracia – Osava lembra que todos queriam um Estado socialista, provedor do bem-estar para todos em todas as esferas. "A experiência que muitos tiveram dentro e fora do país mostrou que era preciso buscar outros canais. Voltamos com a idéia de que não se muda a sociedade só pela via política. Alguns se decepcionaram com os partidos e perceberam que importa mais a sociedade do que o partido no poder". Houve quem, ao chegar do exílio, revelasse entusiasmo com as organizações européias. Outros, contudo, mostravam-se assustados com a pobreza africana – caso dele próprio, que morou em Angola durante um período.

Osava não nega a importância dos exilados na criação das ONGs – por seu carisma, sua liderança e sua experiência –, mas registra que elas já existiam antes mesmo da ditadura, apenas com outra denominação. Como exemplo, cita a Ação Comunitária, bancada pelo milionário norte-americano Rockfeller – onde, aliás, Osava atuou, em 1966, como assessor comunitário, com o objetivo de “saber o que os imperialistas estavam tramando”.

Reconstrução

Jean Marc Von Der Weid, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), fundador e presidente da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), lembra que a resistência estudantil foi liquidada. “Em 1979, quando voltei do exílio, houve uma reorganização da UNE, mas ao longo dos anos 80 aconteceu uma desmobilização por vários motivos. Entre eles, a concorrência individualista nas faculdades e o controle de partidos sobre os movimentos estudantis, que ficaram esvaziados de legitimidade e representatividade”, relembra. Weid foi empossado na presidência da UNE em 1969, mesmo ano em que foi preso. A liberdade veio somente em 1971, quando foi incluído no grupo de 70 presos políticos trocado pelo embaixador suíço Giovani Enrico Bücker, também seqüestrado pela VPR.

“Em meados da década de 70”, continua Weid, “as organizações começam a se reconstruir e as pessoas descobrem outras formas isoladas de organização”. Uma alternativa, à época, foi o trabalho em ONGs ligadas à Igreja, geralmente envolvidas com projetos de educação popular. “A Igreja tinha poder de neutralizar, até certo ponto, a repressão”, afirma.

Leilah Landim recorda que havia idéias e projetos comuns às iniciativas de educação popular: “Segundo um estudioso dessa época (anos 70 e início dos 80) no Brasil, se não existisse uma sociedade civil, era necessário inventá-la. Esse era o terreno onde se gestavam forças para o combate a um regime impermeável e autoritário. Interessante observar que conviviam com essa representação de uma ‘sociedade civil contra o Estado’ e esse uso político-estratégico da expressão (correlato a relações de aliança entre setores variados na oposição à ditadura) idéias gramscianas sobre a sociedade civil como campo de forças, espaço de lutas entre interesses diferenciados e de criação de uma contra-hegemonia por segmentos subalternos”.

A antropóloga não acha possível falar em fortalecimento das organizações da sociedade civil brasileiras sem que se levem em consideração outras dinâmicas econômicas e sociais ocorridas após 1964, como a urbanização e a diversificação social, o desenvolvimento dos meios de comunicação e o crescimento de uma classe média escolarizada. “Essas são condições, se não suficientes, necessárias para a criação de uma sociedade civil mais estruturada”, afirma. “E não se esqueça ainda, no caso das ONGs nos anos 70, das agências de solidariedade internacional européias e canadenses, permeadas pelos ideários democráticos e terceiro-mundistas que criaram as condições materiais para a existência dessas organizações”.

Outro foco

Com a anistia aos presos políticos, em 1979, um grande número de exilados retorna ao país, embora ainda em plena vigência do regime militar. Nesse contexto, o medo de represálias explica que alguns tenham sentido dificuldades para retomar o curso normal de suas vidas. Apenas para citar um dos mais célebres, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, só conseguiu voltar a trabalhar quando fundou sua própria organização, o Ibase [veja mais no artigo “Idas e voltas”, de Carlos Afonso, na seção Ponto de Vista desta semana]. Jean-Marc von der Weid passou por situação parecida: “Fiquei um tempo desempregado. Eu queria trabalhar em universidade, mas as universidades do Rio não queriam me contratar. Acabei convidado para fazer assessoria com uma comunidade agrícola alternativa. Interessei-me pelo assunto e fiz um projeto de assessoria a comunidades rurais com agricultura ecológica. Apresentei o projeto à Fase e em 1983 ele começou a funcionar. Depois montamos a AS-PTA”.

O jornalista e cartunista Claudius Ceccon, coordenador do Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), classifica a anistia como um dos marcos do processo de falência do regime militar, que só viria a ocorrer de fato em 1985. “Durante esse período o país não parou e muitas formas de organização da sociedade civil foram surgindo”, conta. “A luta política e a resistência à ditadura foram permanentes e diversificadas”. Para ele, organizações populares como associações de moradores, Comunidades Eclesiais de Base, pastorais operárias e entidades profissionais como a Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Brasileira de Imprensa desempenharam um papel importante nessa fase, que conduziu à retomada do processo democrático.

A ditadura, então, já desmantelara quase totalmente os movimentos armados revolucionários. E o foco da resistência passou para a esfera da luta política, no âmbito dos partidos e da sociedade civil. Ao historiar brevemente o fenômeno das organizações não-governamentais nos anos 70 e 80, Leilah Landim destaca: a mudança de foco não foi planejada, mas compulsória. “Pode-se dizer que os ideários de ruptura com a sociedade capitalista eram correntes, mas a luta armada não se colocava como objetivo nas práticas das ONGs e congêneres, desde sua progressiva criação. Eram espaços exatamente alternativos, ou até contrapostos, aos anteriores ‘partidos revolucionários’. Aliás, essa ‘mudança do foco’ deu-se antes de mais nada porque o regime militar simplesmente exterminou essa resistência armada e suas possibilidades de retomada. Não há como pensar em algo como uma mudança planejada de projeto, nesse caso. Foi uma derrota, e não dá para pensar como seria a história caso a opção armada tivesse condições de continuidade”, diz ela. “Se estamos falando das ONGs – ou do que se chamava de ‘centros’, na época –, essas nascem exatamente como organizações de ‘outras formas’ de fazer política, mesmo quando abrigavam entre seus funcionários gente que continuava em um ou outro partido clandestino sobrevivente”.

Na mesma linha, o diretor geral da Abong identifica uma ruptura. “Não houve continuidade entre as organizações armadas, que foram todas elas extintas, e o processo posterior de reconstrução do tecido organizativo da sociedade civil. Houve, isto sim, inúmeras trajetórias individuais de militantes da luta armada que tomaram parte ativa no processo de reorganização da sociedade civil através de métodos legais de luta política”, analisa Durão.

De volta ao país no rastro da anistia política, depois de viver 11 anos na clandestinidade, Amparo Araújo também passou a “combater” em outras frentes. Fundadora e presidente da grupo Tortura Nunca Mais de Pernambuco, ela afirma que “o que a gente fez na época da resistência é o que nos move até hoje”. O que mudou, afirma, foi a forma de caminhar rumo aos ideais. “Não usamos mais armas para fazer reivindicações ao Estado, mas sim organização e informação”.

Contradições

Nas décadas de 80 e 90, o Brasil assistiu ao crescimento de organizações de gênero, etnias, cultura, meio ambiente, crianças e adolescentes e pessoas com deficiência. Entidades que, nas palavras de Leilah Landim, “não se colocam necessariamente no campo popular, embora essa questão esteja fortemente presente”.

“Essas lutas mobilizam muitas forças”, diz ela, “e têm contribuído para a construção do espaço público e de novas concepções e práticas democráticas. Ao contrário dos que pensam esses processos como uma fragmentação negativa dos movimentos de transformação social, eu creio que há aí dinâmicas interessantes que talvez estejam contribuindo para a construção de novas utopias e novas convergências. Isso, evidentemente, é conversa – e processo – para muito tempo".

Sobre as transformações que motivaram mudanças bruscas de postura e possíveis contradições – uma crítica que tem sido recorrente ao Governo Lula –, a antropóloga ressalta que cada geração encontra seus ideais e suas lideranças. “Nos anos 80, houve no Brasil lutas importantíssimas e vitoriosas pela democracia e pelos direitos que a Constituição de 1988 consagrou. Nos anos 90, travamos uma luta de resistência contra o neoliberalismo e a tentativa de desconstrução dos direitos econômicos, sociais e culturais reconhecidos na Constituição. Essa tentativa de desconstrução e essa resistência continuam na ordem do dia. Finalmente, não podemos subestimar a importância das grandes mobilizações internacionais contra os rumos da globalização, contra o império e pela paz mundial".

Jorge Durão recorda ainda que o mundo passou por transformações profundas e que não se poderia esperar outra coisa que não uma revisão de conceitos. “Mesmo que as ONGs dos anos 70 e 80 fossem fortemente marcadas pelo pensamento revolucionário da época, não podemos esquecer que em 1989 houve a queda do Muro de Berlim e, logo em seguida, o colapso do chamado ‘socialismo real’. Portanto todas as correntes de esquerda e organizações por ela influenciadas foram levadas a uma revisão de suas referências políticas e ideológicas”.

Particularmente, Durão acredita que as ONGs que se articulam em torno da Abong continuam a se opor de forma coesa, por exemplo, a negociações com o Fundo Monetário Internacional. “Entretanto não me parece que nenhuma posição revolucionária inteligente seja incompatível com o diálogo e eventuais ‘parcerias’ com outras correntes ideológicas”.

Novamente conforme Leilah, o impulso tomado pelo neoliberalismo nos anos 90 gerou um cenário em tudo favorável ao individualismo e à exclusão, na contramão da ação coletiva. No entanto, pondera, a reação contrária a esse modelo tem sido crescente – embora com mais ênfase no caráter de denúncia do que no de proposições concretas.

“Creio que os tempos estão se tornando mais propícios para a construção de um ambiente de contestação e mesmo crítica anticapitalista, e acho que alguns segmentos da juventude vêm sendo crescentemente sensíveis a isso. Basta ver, por exemplo, a participação da garotada nos fóruns sociais e nos movimentos antiglobalização”. Ela prossegue: “Também no plano cultural e de comportamento, novas gerações – vejam os movimentos de hip-hop, dança etc. no Brasil – tentam uma postura crítica ao ‘sistema’ e criativa. É pouco, é de escassa institucionalização, é ambíguo, tem muita denúncia e rala proposição, mas há coisas se mexendo ainda não bem compreendidas por nossos enfoques habituais. Voltando ao Brasil e às questões iniciais sobre o pós-64: vivendo agora um período crescentemente democrático, continuo acreditando que se deve continuar a buscar na sociedade civil organizada, nos movimentos sociais, no conjunto das ONGs voltadas para a cidadania que vêm construindo redes e ideários desde os anos 70, um terreno fundamental para que se consigam as transformações da sociedade e dos modelos econômicos e políticos que interessam à maioria da população e que parecem difíceis de se efetivar”.


Fausto Rêgo
Colaboraram Maria Eduarda Mattar, Marcelo Medeiros e Mariana Loiola

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