Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Artigos de opinião
Paulo Haus Martins*
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Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão,
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...
Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
Olavo Bilac – Maldição
Escrevo esse texto naquele momento impreciso entre o ontem e o amanhã, entre 31 de março e 1º de abril, o Dia da Mentira. Pode não ser exatamente “uma” data para a maior parte dos países do mundo, mas é “uma” data para o Brasil, uma data de tristes lembranças.
Sob falsas alegações de iminente tomada do poder pelos comunistas suportados pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade (!), recém-ocorrida em São Paulo, as forças ocultas prenunciadas por Jânio vomitaram-se pelas bordas da montanha de Minas Gerais para invadir a cidade do Rio de Janeiro, depois Brasília, expulsando os ocupantes legitimamente eleitos para os cargos da República. As miras de suas armas ameaçavam desde o presidente da República a líderes camponeses de Pernambuco.
A junta militar empossada em março de 1964 graças à insofismável persuasão das baionetas, sob a comprazida outorga de parte do Congresso Nacional, estabeleceu-se “oficialmente” para manter a democracia, garantir as eleições marcadas para 1965, expulsar os subversivos do poder, acabar com a corrupção e combater a inflação.
Foi o início de vinte anos de ditadura.
Sob o pretexto de defender as eleições constitucionais, os militares de então utilizaram-se das armas que o povo lhes confiou para a defesa das instituições democráticas e rasgaram a Constituição democrática de 1946, iniciando um período de torturas, assassinatos, censuras e perseguições.
Vinte anos depois, contabilizamos muito mais corrupção do que antes, as eleições de 1965 não ocorreram, sindicatos sofreram intervenção e organizações estudantis foram invadidas e fechadas. Após um rápido momento de euforia também conhecido como milagre econômico, mergulhamos na maior crise econômica já vivida em nosso país e em uma hiperinflação que causa quase tantos calafrios quanto a menção à perseguição e à tortura que viraram prática diária dos porões da ditadura.
Ocupante zeloso do poder, o regime militar interveio em vários pontos da vida social, chegando a alterar até o currículo escolar com a introdução de uma matéria denominada Educação Moral e Cívica (EMC) nos colégios e faculdades. Num evidente caso de esquizofrenia coletiva ou deboche, aqueles que rasgaram a Constituição, os ilegítimos ocupantes do poder por via das armas e da tortura, tiveram a pachorra de se arrogarem professores de “educação”, de “moral” e de “civismo”. Já ao final do período militar, em plena transição, um desses “professores”, da UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro], identificado como envolvido em tortura pela viúva de um famoso desaparecido político, teve a audácia de declarar a uma revista que a tortura era legítima defesa putativa do Estado. O reconhecimento da viúva e a declaração foram o estopim de um movimento entre os alunos e professores que culminou com a eliminação antecipada curricular da EMC na UERJ e o virtual desaparecimento desse professor dos corredores da faculdade. Para mim foi apenas mais uma demonstração de que as mudanças vieram para ficar, e essas mudanças foram consolidadas pela Constituição Cidadã, a de 1988.
Inicia-se o texto da Constituição com uma sutil, embora profunda, alteração da redação elaborada pela ditadura em 1967.
Dizia a Constituição de 1967:
“Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido” [1]
Diz a Constituição de 1988:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce" [2]
A sutil diferença na frase utilizada evidencia o abismo entre a pretensão democrática e o autoritarismo. Vinte anos depois de vinte anos de ditadura, ainda choramos as vítimas torturadas e mortas, mas olhamos para o futuro de forma diferente. Não queremos a repetição do passado e confiamos que não mais viveremos momentos tão pesarosos.
Os defensores do autoritarismo dizem, com razão, que o Brasil de antes era outro, incomparavelmente menos aparelhado do que o atual, muito menos desenvolvido economicamente. É verdade, mas nem isso justifica as ditaduras, e muito menos a que tivemos. Nos desenvolvemos economicamente e industrialmente, mas continuamos subdesenvolvidos.
Junto com o desenvolvimento econômico do regime militar herdamos recordes em desigualdade social e pobreza. Hoje nosso povo passa fome sem se saciar com os campos de soja. O desenvolvimento econômico foi concentrado geograficamente. O “bolo” cresceu e não foi dividido. Mais uma promessa descumprida. Essa herança de vinte anos de ditadura nem vinte anos de democracia conseguiram superar. Democracia é um caminho, mas exige destinos certos. Não há democracia para quem passa fome, para quem teve de sair da escola para viver nas ruas, para quem não tem moradia, para quem não tem aposentadoria. Não há democracia plena se as crianças e os idosos forem os mais pobres de nosso país.
Isso tudo nos serve para lembrar a letra da Constituição. Na qualidade de cidadãos, de povo, devemos exercer o poder, devemos exigir exercer o poder. Participar da democracia não é apenas votar, mas permanecer participando. Toda eleição nos aliena do poder pelo período do mandato. Por isso as organizações do terceiro setor são tão importantes, porque elas são o veículo que permite a participação democrática do indivíduo, do cidadão, no dia-a-dia. O governo militar também se relacionou com a sociedade civil, mas, assim como Getúlio, a encarava de forma utilitarista, por isso concedia certificados de Utilidade Pública. Na democracia da nova Constituição, contudo, há um grande papel para o cidadão. E sem sociedade civil organizada com um outro papel, não utilitarista, não há como construir essa democracia.
Vinte anos depois dos vinte de ditadura, continuamos aprendendo e reconstruindo a democracia – e o papel de cada um, de cada ONG, é fundamental, porque o nosso subdesenvolvimento não é econômico: é político.
*Paulo Haus Martins é advogado.
[1] CF - 1967 - Art. 1º, § 1º - Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.
[2] CF - 1988 - Art. 1º - Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
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