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Um direito humano em pratos limpos

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Um direito humano em pratos limpos
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Em seu discurso de posse, o presidente Lula afirmou que a grande meta de seu governo seria assegurar que todo brasileiro pudesse fazer três refeições por dia. Não por acaso, o programa Fome Zero tornou-se o carro-chefe do governo na área social.

Ao abrir a 2ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - pouco depois de ter exonerado o ministro do Desenvolvimento Social, José Graziano, substituindo-o por Patrus Ananias -, Lula voltou a apontar o combate à fome como prioridade: “É sagrado, é um direito elementar. É mais do que uma política de governo: é a política da moral, da ética e da dignidade”. No entanto os 1.300 participantes do evento – entre representantes da sociedade civil e do poder público – expressaram sua preocupação em um documento que ficou conhecido como Carta de Olinda: segurança alimentar e nutricional é bem mais do que “combate à fome”. Hoje a alimentação é reconhecida como um direito humano, e assegurá-lo implica um olhar mais atento para uma série de aspectos – entre eles, a própria política econômica.

Dez anos se passaram entre a segunda conferência e a primeira, que resultou em uma série de diretrizes que orientariam a criação de uma política nacional de segurança alimentar. Em 1995, porém, o processo foi subitamente interrompido pela extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), criado dois anos antes. Apenas em 2003 o Consea voltou a ser instalado, reabrindo a perspectiva de uma nova edição do evento, o que ocorreu de 17 a 20 de março, em Olinda, Pernambuco. Desse debate surgiram 48 propostas consideradas prioritárias para o combate à pobreza, o desenvolvimento social e a garantia de alimentação de qualidade a todos os brasileiros.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 20 milhões de pessoas morrem anualmente por causas relacionadas à desnutrição. No Brasil, estima-se que 44 milhões de pessoas não tenham renda suficiente para uma alimentação adequada. A Carta de Olinda lista uma série de focos de insegurança alimentar e nutricional que precisam ser combatidos, entre eles a falta de apoio à agricultura familiar, a degeneração dos hábitos alimentares e a desigualdade de renda, que fragiliza sobremaneira as mulheres. Porém os problemas maiores, diz o documento, residem no modelo econômico vigente e na dívida pública – que gera exclusão social, desemprego, concentração de terra e renda, mercantilização da água e educação de baixa qualidade.

Embora essas proposições pareçam, inicialmente, não ter relação direta com o tema, elas expressam uma contradição. “De parte do governo, temos de um lado o discurso das três refeições por dia e da dignidade humana e, de outro, uma política macroeconômica cujos efeitos vão além do que é possível compensar com os programas de distribuição de renda”, observa o sociólogo Silvio Caccia Bava, coordenador do Instituto Pólis e membro do Consea.

Prato principal – mas não o único

Diretora da Fase e uma das coordenadoras do evento, Maria Emília Pacheco enfatizou recentemente que um dos principais méritos da conferência foi mostrar que o debate sobre segurança alimentar precisa ser ampliado para além do problema da fome – o que, para ela, ainda precisa ser compreendido pelo poder público federal. “O governo ainda vê a segurança alimentar e nutricional apenas como combate à fome”, criticou.

Além da abertura oficial a cargo do presidente da República, a conferência contou com a participação de técnicos do governo e ministros de Estado, mas ministérios como o da Agricultura, o da Fazenda e o do Meio Ambiente não enviaram representantes. Apesar das ausências, Christiane Costa, coordenadora de Segurança Alimentar do Instituto Pólis e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional, acha que a participação do governo foi positiva. “Fiquei surpresa com a participação dos ministros. Havia um conjunto bom de técnicos lá e imagino que seja difícil disponibilizar técnicos num evento desses durante três dias”, pondera.

Ela destaca o caráter participativo e mobilizador do evento, que foi antecedido por conferências locais e regionais. Para Caccia Bava, o processo da conferência teve momentos distintos. Nos níveis estaduais, pouco se avançou em termos de formulação de propostas, ao passo que o evento nacional evidenciou o que os estados não conseguiram traduzir em iniciativas. Christiane Costa, por sua vez, considerou bastante positiva a abrangência dos temas tratados em Olinda. “Se você considerar que a SAN [Segurança Alimentar e Nutricional] não é um tema muito incorporado pela sociedade, o nível das propostas apresentadas foi muito interessante, assim como a diversidade de enfoques regionais. Tanto os discursos quanto as palestras apontaram para uma concepção de SAN além das ações de curto prazo. E é necessário construir uma política de segurança alimentar para combater o problema, que é muito maior do que apenas o combate à fome: tem questões como transgênicos, acesso a alimentos, custo da alimentação, água e muito mais. A fome é, sem dúvida, a questão mais perversa, mas é apenas parte do problema”.

Acompanhamentos

Francisco Menezes, diretor de Políticas e Planejamento do Ibase, membro do Consea e da comissão organizadora do evento, acha que a conferência nacional conseguiu refletir a vitalidade verificada nos estados e municípios e permitiu que governo e sociedade discutissem juntos as diretrizes básicas para a construção de uma política nacional. “Acredito que dentro do governo ainda existem múltiplas compreensões sobre este tema, assim como existe na própria sociedade. Provavelmente a conferência foi importante também para o governo, possibilitando um entendimento muito mais abrangente do que o simples combate à fome”, analisa. “É preciso entender a SAN no sentido que obriga a pensar sua política dentro de uma perspectiva intersetorial e como possibilidade efetiva de uma estratégia de desenvolvimento com eqüidade”.

Os participantes se dividiram em 16 grupos de discussão que produziram, cada um, dez propostas. Do total, 48 foram selecionadas como mais relevantes e prioritárias. Uma delas prevê a constituição de um grupo interministerial no âmbito do Consea para elaborar o novo Plano de Safra da Agricultura Familiar e dos Assentamentos de Reforma Agrária. Em função do período da safra, a proposta precisa ser viabilizada rapidamente, por isso o prazo proposto para o encaminhamento dessa iniciativa foi de 60 dias. A idéia é definir mecanismos de incentivo ao plantio e à comercialização, de modo a favorecer os agricultores familiares e as economias locais – tradicionalmente ignoradas pelas políticas de crédito e assistência técnica. “Com isso estará sendo garantida, também, a produção de alimentos necessária para atender a demanda adicional proporcionada pelo Bolsa-Família, a partir da transferência de renda para os grupos sociais mais vulneráveis”, diz Francisco Menezes.

Caccia Bava destaca que o plano de safra foi um dos sucessos do Consea e recorda a participação, durante a conferência, do ex-deputado pelo Partido dos Trabalhadores Plínio de Arruda Sampaio, autor do Plano Nacional de Reforma Agrária: “O Plíinio chegou lá e pôs o dedo na ferida. Ele diz que é preciso garantir a comercialização dessa safra. Sugere que o governo compre a produção e a armazene na Conab [Cooperativa Nacional de Abastecimento]. Como o presidente Lula havia, em seu discurso, feito aquela metáfora de que a nossa guerra era contra a fome, o Plínio argumentou que na guerra temos de usar os recursos disponíveis, por isso a Conab deveria comprar, armazenar e distribuir a produção”.

Outra proposta fundamental foi a da criação de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, nos mesmos moldes da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social). Dessa forma a política de SAN teria uma autonomia maior, independendo de eventuais mudanças de governo. Isso poderia evitar, por exemplo, que o Consea voltasse a ser dissolvido. “É, evidentemente, uma proposta ambiciosa, que demora algum tempo para se efetivar”, observa Menezes, “mas acredito que de fundamental importância para que possamos contar com um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional sólido, imune a mudanças conjunturais que podem colocar a perder tudo o que até aqui acumulamos”. Christiane concorda: “Se a gente concebe a alimentação como um direito humano, faz sentido uma lei orgânica sobre o tema, deixando de lado uma concepção habitualmente caritativa”.

Sobre a mesa

As 48 propostas elaboradas pela conferência nacional devem ser entregues em breve ao presidente da República. E o Consea terá uma importância fundamental para assegurar o comprometimento do governo com essas metas e o seu acompanhamento. “O Consea passa a contar com uma agenda de trabalho muito efetiva e com grande representatividade”, diz Francisco Menezes.

Falta, porém, constituir o novo Consea. O mandato do conselho anterior expirou em fevereiro e há uma certa indefinição sobre quando os novos membros estarão nomeados. O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome informa que os membros anteriores continuam fazendo parte do Consea até que sua nova composição esteja determinada, mas o fato é que, oficialmente, o mandato dos conselheiros encerrou-se no mês passado. Há gestões informais para que a nova composição seja mais heterogênea e reflita a compreensão de uma política de segurança alimentar e nutricional adequada às necessidades das diferentes regiões do país.

Christiane Costa revela otimismo: “Nós, do Fórum, temos bastante esperança em que a mudança no ministério signifique o alargamento da compreensão do que é a SAN. O ministro Patrus, pelo menos, afirmou isso em seu discurso. Temos grande esperança também na construção do novo Consea. Já estão sendo aplicados os mecanismos de consulta nas regiões para que haja uma representação mais igualitária entre as diversas regiões”.

Caccia Bava propõe também uma integração maior entre os Conselhos estaduais e o nacional, alegando que hoje não existe essa ponte e nem eles “conversam entre si”. Para ele é preciso discutir a possibilidade de atribuir aos Conselhos estaduais o processo de capacitação dos agentes de SAN, bem como prover recursos próprios para que eles consigam exercer o controle social dessas atividades. “Teríamos, então, uma fiscalização efetiva e um mecanismo que permitiria reconhecer os entraves ao processo”, observa. “A idéia de criar representações do Consea nas cinco regiões brasileiras seria uma instância intermediária entre os Conselhos estaduais e o nacional”.

Para o sociólogo, a chegada do ministro Patrus Ananias sinalizou a perspectiva de uma maior abertura à participação da sociedade civil. Mas adverte: é preciso que também surjam iniciativas do governo. “Os ministros não precisam comparecer a todas as reuniões do Consea, naturalmente, até porque a agenda deles é cheia. Mas é fundamental que eles se reúnam para receber as resoluções do Consea, o que hoje não acontece”, afirma. “O Consea precisa ter seu papel fortalecido, com uma assessoria e uma pessoa presente em tempo integral. E se vier a assumir o papel de capacitação, será necessário criar câmaras temáticas e ter um orçamento próprio”.

Fausto Rêgo

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