Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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No final da década de 70, pequenos produtores do semi-árido baiano seguiram até a capital, onde fizeram uma grande manifestação contra os impostos que eram obrigados a pagar. Eles queriam vender em feiras livres a produção excedente, mas o valor das taxas tornava inviável a comercialização. O protesto deu resultado: o governo do estado atendeu as reivindicações, os agricultores perceberam sua própria força e decidiram se organizar. Criaram, em 1980, a Associação dos Pequenos Agricultores do Município de Valente (Apaeb), que hoje congrega diversas associações independentes. O projeto cresceu de forma impressionante. Atualmente reúne 760 famílias da região sisaleira e emprega 814 funcionários diretos. Algumas dessas famílias recebem por mês mais de mil reais. Só no ano passado, o orçamento da Apaeb foi de R$ 18 milhões, com uma movimentação de R$ 4 milhões em salários e outros R$ 4 em matéria-prima. De uma atuação inicialmente restrita ao escoamento da produção excedente de pequenos agricultores, expandiu-se para uma diversidade de atividades que inclui artesanato, produção de laticínios, confecção de tapetes, educação, comunicação, informática, energias alternativas, curtume e reflorestamento.
“Nossa primeira ação foi uma bodega [uma venda] comunitária, em 1981, onde eles podiam vender seus produtos e comprar o que não conseguiam obter, a preços e condições melhores. Depois passamos a discutir a produção do sisal, que é o principal produto da região”, lembra o diretor executivo da Apaeb, Ismael Fereira. Três anos depois foi inaugurada a batedeira, onde se faz a prensagem da fibra do sisal. Na época, desde o fim dos anos 70, o sisal enfrentava a concorrência das fibras sintéticas, o que fez os preços caírem muito. Sem um bom conhecimento do mercado, o começo foi difícil e era preciso vender para um intermediário em Salvador. Somente dois anos mais tarde conseguiram vender diretamente para a indústria. “Aí percebemos que o principal foco era a exportação e ficamos imaginando como a Apaeb poderia comercializar a produção para o exterior. Em 1990, finalmente, entramos no mercado internacional”, conta Ismael.
Com o confisco da poupança, em pleno Governo Collor de Mello, a associação passou por dificuldades. Obter recursos era uma missão espinhosa e a saída encontrada foi apelar para uma poupança informal a partir de contribuições dos próprios associados. Em meio a várias resistências, sob acusações de que o dinheiro não seria devolvido, a Apaeb reuniu cerca de 150 mil dólares em três anos. Ismael reconhece que a prática contornava a lei, mas se justifica: “Era ilegal, e a gente sabia disso, mas não tinha outro jeito de captar recursos”. Somente em 1993 seria viabilizada a criação de uma cooperativa de crédito. A partir daí, teve início a industrialização e a diversificação da produção, o que permitiu o aumento da renda familiar dos pequenos produtores. “Antes de construirmos a fábrica”, revela Ismael, “o produtor recebia mais ou menos 120 a 130 dólares por tonelada. Hoje ele consegue 300 a 350 dólares por tonelada”.
O episódio é exemplar do potencial da associação e da sua capacidade de articular iniciativas e superar dificuldades. Segundo Ismael, a Apaeb permitiu manter na região o dinheiro que antes ficava na mão de atravessadores e intermediários. Os passos seguintes foram a indústria de tapetes e carpetes, depois a fábrica de laticínios, o curtume e mais de uma dezena de atividades que geram renda e cidadania. A produção de laticínios, iniciada no final de 1999, começou com 30 litros por dia. Hoje o volume é de mil litros por dia, com expectativa de dobrar em breve.
Conhecimento e informação
A Apaeb mantém ainda a Escola Família Agrícola, voltada para filhos de agricultores que oferece ensino de 5ª a 8ª série sob uma perspectiva que pretende ir além do currículo habitual. Os alunos passam uma semana na escola e outra em casa, onde repassam os conhecimentos adquiridos às suas famílias. O ideal da associação é permitir que os jovens compreendam sua própria realidade. “É educação não apenas no sentido de aprender a ler e escrever, mas também de respeitar a natureza, os animais, saber administrar a propriedade, aumentar a renda da família e conviver com o semi-árido”, explica Ismael. Ele aposta na formação de lideranças e na conscientização da população quanto à necessidade de não apenas conhecer os próprios direitos, mas procurar se informar sobre os deveres do poder público.
Passo importante para essa conquista se dá com o apoio das tecnologias de informação e comunicação. A Apaeb mantém desde 2001 uma emissora de televisão comunitária, a TV Valente, e apóia a rádio comunitária Valente FM, que no ano passado finalmente recebeu autorização do Ministério das Comunicações. Em seguida, a associação começou a desenvolver um projeto de informatização e cidadania, abriu um provedor de acesso à Internet, o Sertão Net, e abriu, no ano passado, uma Netsala – sala pública equipada com computadores e conexão em banda larga ao custo de um real por hora. A própria escola, atualmente, já oferece acesso à rede aos seus alunos. “É um conhecimento a mais, uma perspectiva a mais de obtenção de conhecimento e informação. Atualmente, qualquer atividade exige noções de informática. Ela abre novos horizontes, dá uma formação mais completa. Além disso, permite mudanças, transformações, torna o cidadão mais politizado, estimula a discussão entre eles e ajuda a criar uma mentalidade de participação”, defende Ismael. Para ele, a Internet é um instrumento importante para que a sociedade fiscalize a atuação do poder público.
“Estaca zero”
A Apaeb trabalha com a perspectiva de se autofinanciar. A meta não está tão distante – segundo Ismael, a associação já alcançou em torno de 95% desse objetivo –, mas a associação não pára de expandir suas atividades. Em maio deve ficar pronto o Centro de Formação Comunitária, na mesma área onde funciona a escola. A idéia é que, além de oferecer formação para a agricultura, ele seja utilizado em uma experiência de turismo ecológico, servindo de hospedagem alternativa. Outra iniciativa em desenvolvimento é a Casa da Cultura, que vai apoiar atividades artísticas e culturais na região. A obra contou com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e sua inauguração está prevista para julho.
Ismael Ferreira comemora os bons resultados, mas entende que ainda há muito a conquistar. “Andamos alguns degraus, mas temos ainda outros pela frente e uma série de desafios por vencer”, afirma. Entre eles, a modernização das máquinas e, principalmente, a obtenção de capital de giro. “É uma coisa que nunca tivemos”, admite. “Só de salários, pagamos mais de 300 mil por mês. De impostos, mais 100 mil. Não conseguimos ainda sensibilizar agentes financeiros, mas continuamos conversando com algumas instituições e com o próprio BNDES. Por enquanto ainda estamos na estaca zero”.
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