Autor original: Fausto Rêgo
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Se falta água, artigo 6! Se a violência assusta e falta segurança, artigo 6! Se falta moradia adequada, artigo 6!
O que falta mesmo é fazer valer o que diz o artigo da Constituição Federal de 1988 que dispõe sobre os direitos sociais. O texto, curto e objetivo, diz somente: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. O texto original não incluía o item moradia, acrescentado apenas em 14 de fevereiro de 2000, por meio da Emenda Constitucional nº 26.
Assegurados pela carta magna do país como obrigação do poder público, esses direitos deveriam ser garantidos a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros, mas a realidade é bem diferente. Lutar para que o artigo 6 saia do papel é o propósito da campanha “O Brasil tem fome de direitos”, recém-lançada pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).
A campanha deve primar pelo aspecto motivacional e de incentivo à mobilização, divulgando o conteúdo desse artigo – ainda desconhecido por grande parte da população. A intenção é despertar consciências e mostrar que cada pessoa deve reclamar – individualmente, no âmbito das suas comunidades, nas associações de bairro ou através dos diversos canais de manifestação – o respeito a esses direitos.
A primeira etapa consistirá na distribuição de cartazes com frases simples e diretas. Uma cartilha está sendo preparada, assim como um vídeo que deverá ficar pronto até julho e será veiculado nos cinemas e em emissoras de TV comunitária – esforços estão sendo feitos para garantir espaço também nas TVs abertas. “Vamos fazer, inicialmente, uma ação massiva de informação e comunicação”, explica Maria Elena Rodríguez, coordenadora do Projeto DhESC (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais) da Fase. “A seqüência será um grande trabalho com a população, para que se desenvolva um processo de fiscalização e garantia de direitos”. A mensagem da campanha será reforçada em seminários e no trabalho que a entidade já desenvolve em diversas comunidades.
Cunca Bocayuva, diretor da Fase, lembra que já há algum tempo a organização vinha trabalhando a temática dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Com a eleição do presidente Lula e a anunciada prioridade para o combate à fome, ficou decidido que seria interessante aproveitar para dizer que o Brasil também tem fome de direitos. “O processo democrático moderno está ligado ao potencial que a Constituição de 1988 abriu. Mas a Constituição brasileira não é muito conhecida pela população”, observa. “Então destacamos o artigo 6, que é extremamente importante, bastante abrangente e diz que o Estado tem a responsabilidade de cumprir e garantir esses direitos”. Segundo Bocayuva, este é o aspecto político da campanha, uma vez que o governo Lula assumiu sob a expectativa de conseguir modificar o quadro de violação e regressão de direitos no país.
A campanha, no entanto, tem ainda outras motivações. Uma delas tem caráter pegagógico e pretende criar uma cultura de direitos. “Na sociedade norte-americana, e a gente vê isso bastante nos filmes, o cidadão sempre apela ao texto de uma emenda, ao texto da Constituição, para assegurar um direito. E o que a gente quer é justamente trazer essa cultura, fazer valer a lei principal do país”, diz Bocayuva.
A Fase pretende, nessa iniciativa, se articular com expressões artísticas e culturais. O objetivo é que a bandeira do respeito ao artigo 6 seja carregada por diversos movimentos sociais que hoje carecem de uma causa pela qual lutar, gerando motivação para que diferentes atores queiram aprofundar o debate sobre esses direitos e incentivando as organizações a discutirem o tema no exercício das suas atividades cotidianas. “É preciso que a rebeldia se manifeste, não se aniquile”, defende o diretor da Fase. “A luta por direitos não pode ser apenas o enunciado de uma utopia distante. É um elemento curioso, porque as pessoas nem sempre percebem”. Bocayuva recorre à velha parábola do “bode na sala” para explicar essa indiferença. É a velha história segundo a qual uma família reclamava da casa onde morava – velha e mal-conservada. Um dia alguém tem a idéia de arrumar um bode, que passa a morar dentro da casa. Em pouco tempo, o cheiro e as condições de vida tornam-se insuportáveis, até que resolvem mandar o bode embora. O alívio é tão grande que ninguém reclama mais – muito embora as condições da casa sejam exatamente as mesmas de antes. “É exatamente a história do bode. A casa das pessoas pode estar caindo, mas elas preferem tirar o bode da sala para terem apenas a sensação de que alguma coisa melhorou”, lamenta.
Bocayuva entende que o conteúdo do artigo 6 se aplica de maneira ampla e vale até mesmo no contexto do recente conflito entre traficantes na maior favela do Rio de Janeiro, a Rocinha, que teve repercussão em todo o país. “Tem gente que quer criar um Iraque aqui, mas é preciso deter a máquina de guerra. A solução para a violência no morro não é o exército, mas o artigo 6, senão a gente rebaixa a discussão”, afirma Bocayuva. Segundo ele, uma orientação de direitos é o que pode questionar diversos problemas e até mesmo a própria política econômica, responsável por tanta desigualdade.
Com esse viés e a perspectiva de criar uma nova cultura, a campanha “O Brasil tem fome de direitos” pode ser uma luta de longo prazo. Para isso, afirma o diretor da Fase, a campanha vai ter de se qualificar. “A cidadania brasileira tem de ser refundada, e a Constituição de 1988 ajuda muito nisso. A conquista dos direitos sociais faz parte de um processo, mas esse processo tem de começar”.
Que seja, quem sabe, a partir de agora.
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