Autor original: Fausto Rêgo
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Estar à frente de um computador pela primeira vez foi como um sonho para Rosane Bentes, da comunidade de Suruacá (PA), às margens do Rio Tapajós. Aos 14 anos, ela já é monitora do telecentro local, instalado pela organização Saúde e Alegria no final do ano passado. A experiência – outro sonho realizado – será ampliada em breve com a inauguração de um novo telecentro, desta vez em Maguari, outra comunidade da região.
Para Kiki Mori, coordenadora do projeto, o mais interessante é que o espaço do telecentro não é feito apenas de computadores. “Lá em Suruacá”, conta, “acontecem milhares de coisas”. Entre elas, circo, dança e até aulas, pois a escola é pequena e o espaço acaba sendo aproveitado como uma sala extra. Ali também funcionam a rádio e o jornal locais.
De passagem pelo Rio de Janeiro, onde vieram apresentar na 4ª Cúpula de Mídia para Crianças e Adolescentes a experiência de Suruacá e o trabalho da Saúde e Alegria, Rosane e Kiki concederam esta entrevista à Rets. Elas falaram sobre a implantação do projeto, as dificuldades, a receptividade da comunidade, o aprendizado mútuo e as perspectivas para o futuro. No horizonte, um sonho ainda maior: construir uma Rede de Inclusão Digital da Amazônia, para reunir o conteúdo produzido pelas populações ribeirinhas.
Rets - Como você começou a se envolver com o telecentro?
Rosane Bentes – Logo que o Saúde e Alegria começou a financiar o telecentro com os computadores, eu fiquei supercuriosa de poder estar lá, com uma vontade muito grande. Quando teve inscrição para quem quisesse aprender, para depois ensinar às outras pessoas, eu dei meu nome. Fui aprendendo e, quando chegou a Internet, o professor ensinou a gente a fazer muita coisa.
Foi praticamente um sonho estar na frente do computador. Foi uma coisa muito importante – e não só pra mim, mas pras outras pessoas que estão lá junto comigo, aprendendo ainda.
Rets - Você já havia tido contato com um computador?
Rosane Bentes – Não.
Rets - Mas já trabalhava antes?
Rosane Bentes – Sim, com os jovens que faziam o jornal e o programa de rádio. Eu comecei a trabalhar com 12 anos, fui me entrosando e hoje faço parte do grupo.
Rets - O telecentro transformou de alguma maneira a vida de vocês?
Rosane Bentes – Transformou, porque agora, com uma facilidade muito grande, a gente trabalha na escola, a gente pesquisa muito na Internet. A Internet mudou completamente a vida da comunidade, a gente tem a possibilidade de conhecer praticamente o mundo.
Rets - O que você acha que ainda falta ao telecentro?
Rosane Bentes – Acho que seria melhor se pudesse ter mais computadores, porque é muita gente querendo aprender. Se tivesse mais, seria melhor.
Rets - Que tipo de conteúdo vocês produzem no telecentro?
Kiki Mori – Desde que o Saúde e Alegria começou a atuar na comunidade – acho que foi em 1988 –, sempre teve produção de jornal impresso, rádio comunitária e, quando a equipe ia lá, também de vídeo. Suruacá foi uma das primeiras comunidades a ter rádio comunitária. Um kit de rádio fica na comunidade, com os alto-falantes, e eles fazem programas todo dia – inclusive a Rosane participa da elaboração desses programas. A gente fazia também um jornal impresso, que ainda era produzido em máquina de escrever, porque eles estavam aprendendo ainda a mexer no computador pra poder começar a fazer esse jornal também online, no editor de texto. Para as outras comunidades a gente ainda tem de mandar impresso o material. O sistema da Rede Mocoronga é: as sucursais mandam os jornais pra gente lá na sede, a gente faz as cópias e envia depois para todas as outras comunidades. As melhores matérias entram no Mocorongo ou as matérias que a gente acha que têm relevância intercomunitária e interna. Eles ainda estão nesse processo de aprender a usar o computador para a produção desse conteúdo, e o próximo passo é aprenderem a produzir conteúdo para páginas web.
Rets - Que balanço você faz dessa experiência em Suruacá?
Kiki Mori – A gente tinha certeza de que lá em Suruacá a comunidade ia abraçar muito a proposta dos telecentros. Agora, a gente também respeita muito o que a comunidade quer dessa proposta. A gente não chegou lá com um modelinho pronto, dizendo: “Engulam, aprendam desse jeito!”. Nós tentamos ouvir quais são as demandas deles, o que eles precisam usar. A gente tentou colocar o número de computadores que podia, porque não havia oferta de energia e teve que ser implantado um sistema solar, que custa caro. Mas a gente acredita que vai dá pra colocar mais computador e, aos poucos, ir treinando o pessoal – os monitores vão aprendendo a mexer nos computadores e já estão começando a ensinar os outros, mas isso tudo é um processo longo. É um ritmo que, às vezes, para o pessoal da cidade, está indo muito devagar, mas a gente respeita o ritmo de vida deles e do que a gente pode fazer também, porque não podemos estar lá o tempo todo. A comunidade fica a seis horas de barco de Santarém. Então a gente faz algumas visitas. Todo mês a gente vai lá, passa uma semana. Vai o instrutor de informática e eu vou – às vezes – para fazer alguma atividade com outros grupos da comunidade, pra todo mundo se sentir incluído no telecentro.
Rets - Quantos computadores vocês têm lá?
Kiki Mori – São três, sendo que dois estão rodando em Linux e um em Lindows. Inauguramos em 13 de dezembro.
Rets - E existe, agora, a expectativa de inaugurar outro telecentro em Maguari.
Kiki Mori – Até junho. A gente já está com dois computadores funcionando na secretaria da escola, já tem um monitor aprendendo a mexer e já começando a ensinar os outros na comunidade. Agora, com certeza, quando tiver um espaço próprio, vai dar um salto de qualidade muito grande.
O interessante é que o espaço do telecentro não tem só computador. Lá em Suruacá, principalmente, acontecem milhares de coisas: é apresentação de circo, de dança... tem aula também, porque a escola tem só duas salas, então eles aproveitam pra fazer sala de aula durante a semana. E a idéia é que em Maguari também seja muito vivo o telecentro, e não só por causa dos computadores.
Rets - O modelo do telecentro de Maguari vai ser o mesmo que vocês utilizam em Suruacá? O que é que vocês vão levar de uma experiência para a outra?
Kiki Mori – A gente vai ter de fazer um prédio menor em Maguari, por conta do orçamento. Porque lá em Suruacá a gente teve algumas facilidades que em Maguari não tem. Suruacá fica dentro de uma reserva extrativista, então a comunidade tem autonomia pra gerenciar e manejar os recursos naturais. Já Maguari fica na Flona (Floresta Nacional do Tapajós), e eles não têm essa autonomia. Então a gente teve de esperar uma liberação de madeira apreendida do Ibama, serrar essa madeira, levar pra lá, e agora é que a comunidade está colocando a mão na massa pra colocar o prédio em pé. Eles estão superansiosos, já queriam ter feito isso desde o ano passado e estão querendo muito que isso fique pronto. O sistema [de energia] solar já está implantado lá, só está faltando mesmo o prédio, e aí a gente vai colocar o terceiro computador que está faltando.
Agora, cada comunidade tem suas características. O telecentro fica localizado em Maguari, mas vai atender também as comunidades de Jamaraquá e São Domingos. E isso, principalmente, porque a escola da região fica em Maguari, então quem tem que estudar, das outras duas comunidades, tem de ir todo dia a Maguari. Portanto gerenciar um telecentro com gente de três comunidades usando esse espaço vai ser uma coisa diferente do que é em Suruacá.
Maguari tem outras características também: tem acesso por terra, vai mais turista... por isso a gente acha que vai ter uma carinha própria. E a gente está tentando não repetir em Maguari alguns erros que a gente cometeu em Suruacá. E o inverso também: por ter esse acesso mais facilitado, a gente acha que algumas coisas vão crescer mais rápido lá na Flona e aí vamos poder levar a experiência para Suruacá e ver como ela acontece lá.
Rets - E que coisas foram essas que vocês aprenderam em Suruacá e não querem repetir em Maguari?
Kiki Mori – A gente achava, primeiro, que eles iam aprender o offline e depois iriam pro online. Só que a instalação da Internet veio, e a gente não podia dizer para não instalar, senão ia acabar perdendo o direito, pois é [um serviço prestado pelo] Gesac [Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão]. Então mudamos a estratégia: vamos aprender a escrever e-mail, a falar pelo Messenger [programa de comunicação], pra ir facilitando a troca de informação, pra eles poderem ter um apoio à distância da equipe. Porque na comunidade deles [aponta para Rosane] ainda tem gente que tem celular, e às vezes pega. Na outra, só tem radioamador. Por isso a gente resolveu priorizar os meios de comunicação da Internet, pra facilitar não só o trabalho dos telecentros, mas os outros trabalhos que o Saúde e Alegria desenvolve na comunidade. Às vezes, também, eles precisam de alguma coisa da cidade e aí a gente tem a ponte deles.
Teve, portanto, essa inversão, já foi umas coisas que a gente não esperava acontecer. E dicas que vão na Internet, o que é lógico, né? Se você tem lá a possibilidade de ter acesso para pesquisa, o interessante é ficar buscando coisas. Por isso eu acho que essa parte de produção de conteúdo vai acabar vindo mais cedo, justamente porque eles já estão vendo que podem mostrar pro mundo o que eles produzem lá. Então acho que eles vão acabar aprendendo a fazer página web antes de fazer jornalzinho.
Rets - Quais são as perspectivas de integração com outros telecentros e outras experiências semelhantes?
Kiki Mori – Ainda não, chegou na ponte, ou seja, neles. A gente está em contato com a Rits, que é parceira desde o começo, e com a rede Somos@Telecentros, mas a gente tem uma idéia que ainda está embrionária, mas também deve andar rápido: é criar uma Rede de Inclusão Digital da Amazônia. Porque eles têm uma realidade própria que ainda não está expressa na Internet de uma maneira muito vigorosa – e às vezes está expressa por outras pessoas. O Saúde e Alegria tem lá o site do Mocorongo, em que a gente procura dar o máximo de espaço para a voz deles. Tem outros sites que falam da realidade amazônica, mas de uma maneira muito elaborada, às vezes científica. Por mais que fale da realidade deles, às vezes não faz nem sentido pra eles. Eles entendem que aquilo ali está falando do mundo deles, mas o tipo de linguagem que se usa exclui, na verdade, quem poderia aproveitar aquele conteúdo para o dia-a-dia. Daí a gente está tentando montar essa rede de conteúdos produzidos pelos ribeirinhos e para eles, em conjunto com outras instituições. Vamos começar a fazer essa rede de contatos, a ver onde mais estão acontecendo experiências de inclusão digital. Hoje não está acontecendo com a população, mas tem organizações e movimentos sociais que já produzem conteúdo e que a gente pode traduzir numa linguagem mais acessível. Esse é o nosso projeto, a partir de agora.
Rets - Depois de Maguari, já existe o projeto de um novo telecentro?
Kiki Mori – A gente pretende, no ano que vem, apresentar proposta para [fazer um telecentro] em Cachoeira do Aruã, na região do Rio Arapiuns, que é outra comunidade em que o Saúde e Alegria atua faz tempo. Eles estão com o projeto de uma minicentral hidrelétrica, porque, com a cachoeira, existe essa possibilidade de geração de energia. Por isso, se a gente conseguir fazer uma usina ali que gere energia pra atender a comunidade e pra ter o telecentro – e a gente acredita que vai conseguir isso –, aí já fica mais fácil. Porque um dos grandes problemas de conectar coisas desse tipo em lugares que não têm eletrificação é que a energia sai muito cara.
Rets - Vocês vieram ao Rio de Janeiro para participar da 4ª Cúpula de Mídia para Crianças e Adolescentes. Falem um pouquinho sobre essa participação.
Kiki Mori – Eu estou acompanhando a Rosane, que participa do Fórum de Adolescentes, e vou apresentar a experiência dos telecentros como uma experiência de inclusão digital. Especificamente no contexto da Cúpula, o interessante é que as crianças e os adolescentes ribeirinhos têm um espaço a mais para mostrar a realidade deles. O Projeto Telecentros é uma seqüência da Rede Mocoronga, que já era isso: os adolescentes e os jovens da comunidade fazendo mídia, para trocarem entre si, com um muro se acabando porque tem um elemento poderoso que é a inclusão digital.
Rosane Bentes – Eu venho representar a comunidade de jovens e adolescentes da Amazônia, da comunidade de Suruacá. Vim pra contar como a gente vive, como é meu trabalho e a nossa experiência.
Kiki Mori – O evento junta adolescentes do mundo inteiro que produzem algum tipo de projeto de comunicação – rádio, jornal, TV, Internet – para eles discutirem a qualidade da mídia para crianças e adolescentes no mundo todo e apresentarem cada uma dessas experiências – e a gente traz a de Suruacá.
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