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Assentamentos rurais e perspectivas da reforma agrária no Brasil

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Beatriz Heredia (IFCS/UFRJ)
Leonilde Medeiros (CPDA/UFRRJ)
Moacir Palmeira (PPGAS/MN/UFRJ)
Rosângela Cintrão
Sérgio Pereira Leite
(CPDA/UFRRJ)






Assentamentos rurais e perspectivas da reforma agrária no Brasil
Paulo Liebert / AE

Um dos temas candentes, hoje, no Brasil é a pertinência da realização de uma reforma agrária. Neste artigo, sintetizamos os resultados de uma ampla pesquisa cujo objetivo foi analisar os processos de mudança provocados pelos assentamentos de reforma agrária nas regiões onde estão inseridos, buscando constituir indicadores e relações que permitam mensurar e qualificar o significado da existência dos assentamentos, a partir da comparação entre as situações atual e anterior dos assentados (tanto em termos objetivos como subjetivos) e entre as condições socioeconômicas existentes no assentamento e aquelas verificadas no seu entorno.

A pesquisa tomou como foco seis regiões do Brasil que contam com elevada concentração de projetos de assentamento e alta densidade de famílias assentadas por unidade territorial, pressupondo que este procedimento traria maior possibilidade de apreensão dos processos de mudança em curso. As regiões selecionadas refletem a diversidade da realidade brasileira: Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do Ceará, Sudeste do Pará, Oeste Catarinense e Zona Canavieira Nordestina. Dentro de cada uma delas foi montada uma amostra de municípios com as mais elevadas concentrações de projetos de assentamento e mais altas participações de assentados em relação às populações rural e urbana. Foram analisados 39 municípios, com um total de 15.113 famílias assentadas pelo Incra entre 1985 e 1997. Nestes municípios foram aplicados questionários a 1.568 famílias, em 92 projetos de assentamento. Essa amostra é estatisticamente representativa apenas nos municípios selecionados, não representando a totalidade das regiões abrangidas e, muito menos, a realidade nacional. No entanto, os resultados obtidos dão pistas importantes para a reflexão sobre a situação dos assentamentos e dos assentados.

Embora todas as áreas selecionadas apresentem concentrações importantes de assentamentos, destacando-se tanto em nível estadual quanto nacional, a participação dos assentamentos nos municípios e nas manchas estudadas é bastante variada, seja em termos de área ocupada, seja em termos de famílias assentadas. Esse fator, aliado às diferentes dinâmicas regionais nas quais se inserem os assentamentos e à maior ou menor capacidade organizativa dos assentados, faz com que os impactos provocados por eles sejam bastante diferenciados.

Iniciativas dos trabalhadores e formação de áreas de concentração de assentamentos

Analisando-se as regiões selecionadas, verifica-se que há uma forte relação entre as desapropriações e as iniciativas dos trabalhadores rurais e seus movimentos, trazendo elementos para reflexão sobre um tema que recorrentemente volta às primeiras páginas dos jornais: as ocupações e os conflitos de terra.

Tomando o mapa da distribuição dos assentamentos no Brasil pode-se perceber claramente a existência de áreas vazias, onde não há praticamente nenhuma presença de projetos e outras onde há uma concentração deles, indicando uma espécie de territorialização da reforma agrária. Essas áreas não apresentam necessariamente coincidência com nenhum recorte administrativo ou regional preexistente, algumas abrangendo uma pequena parte de um estado, outras envolvendo partes de dois ou três estados da federação. Também não se explicam pela lógica das políticas federais de reforma agrária, que se pautaram até hoje por desapropriações isoladas, seguindo a dinâmica dos conflitos.

Embora o Estatuto da Terra, datado de 1964 e primeira legislação a estabelecer uma sistemática de intervenção fundiária por meio de desapropriação, previsse a indicação de “áreas prioritárias de reforma agrária”, pouquíssimas desapropriações ocorreram ao longo da década de 70. Durante a redemocratização, em 1985, o I Plano Nacional de Reforma Agrária voltou a propor o estabelecimento de zonas prioritárias de reforma agrária, mas a reação das forças anti-reformistas levou ao abandono da idéia. O que houve daí para frente foram desapropriações não sistemáticas e não planejadas, embora bem mais freqüentes do que no regime militar.

No entanto, sem intencionalidade prévia, acabaram por se formar algumas concentrações e o que parece ter pesado na sua conformação foram as iniciativas dos trabalhadores e de suas organizações. Na origem da grande maioria dos projetos estiveram situações de conflito: 88 dos 92 assentamentos estudados (96%) nasceram de alguma disputa pela propriedade da terra entre proprietários e “ocupantes”, não necessariamente com uso da violência, embora esta esteja presente em vários casos. Em 82 casos (89%), a iniciativa do pedido de desapropriação partiu dos trabalhadores e seus movimentos. Em apenas 10% dos assentamentos da amostra a iniciativa de desapropriação partiu do Incra e em apenas 3% não houve algum tipo de conflito.

As iniciativas dos trabalhadores assumiram formas múltiplas e variáveis, às vezes combinadas ou modificadas ao longo do tempo num mesmo local. Uma classificação feita com base nas formas predominantes em cada caso aponta que 59 dos 92 assentamentos pesquisados (63%) resultaram de ocupações de terra, ações massivas e públicas, surgidas a partir da ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas que se ampliaram para outros movimentos de luta pela terra e também para o sindicalismo de trabalhadores rurais, inicialmente resistente a essa forma de ação. Diferentes formas de resistência na terra é o segundo tipo de iniciativa identificada, estando na origem de quase um terço (29%) dos assentamentos estudados e abrangendo os casos de luta de trabalhadores rurais (moradores, parceiros, arrendatários, posseiros) por permanecer na terra onde trabalhavam e/ou moravam. Foram também contabilizadas como resistência na terra as ocupações feitas aos poucos, por pequenos grupos de posseiros que entram sem serem notados em terras ociosas e estabelecem benfeitorias visando ter, dentro de um certo tempo, o seu direito de posse reconhecido. Nesses casos, os conflitos eclodem apenas quando os donos (ou supostos donos) tentam retirá-los.

Há uma variação entre as áreas estudadas no que se refere à predominância de um ou outro tipo de luta. No Oeste de Santa Catarina, Entorno do Distrito Federal, Sul da Bahia e Sertão do Ceará, a implantação de assentamentos passou principalmente pela ocupação massiva de terras, apesar destas duas últimas terem também uma presença forte de casos de ocupações paulatinas e resistência na terra. No Sudeste do Pará, quase todos os assentamentos estudados surgiram a partir de ocupações que se fizeram lentamente, ao longo dos anos, nas quais a iniciativa da entrada da terra partiu dos próprios trabalhadores, e o apoio de mediadores (Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Comissão Pastoral da Terra) só se tornou necessário quando surgiam represálias dos proprietários da terra ou de grileiros, na forma de ameaças, pressões ou violência direta de pistoleiros ou da polícia.

Na Zona Canavieira do Nordeste, boa parte das ocupações estiveram combinadas com outras formas, como a resistência de moradores ou foreiros contra a sua expulsão das terras de engenhos e fazendas de cana, e as mais recentes reivindicações de trabalhadores de usinas falidas de terem suas indenizações trabalhistas pagas em terra. A utilização de ocupações como um dos instrumentos dessa luta generalizou-se nos anos 90, com a chegada do MST, ampliando-se para os sindicatos e movimentos e abrindo a possibilidade de incorporar ex-trabalhadores da cana e desempregados vivendo nas pequenas cidades da região.

A análise temporal da criação dos assentamentos e sua comparação com as diferentes ações dos movimentos aponta também para o fato de que as desapropriações do período pós-85 ocorreram na esteira dos conflitos e das mobilizações sociais que, com o arrefecimento da repressão, desenvolveram-se mais rapidamente. Os primeiros assentamentos levaram a uma percepção de sucesso do caminho adotado, estimulando trabalhadores das cercanias a seguirem na mesma linha, com novas desapropriações sendo feitas e, mesmo não atingindo necessariamente áreas contíguas, levando ao adensando de assentamentos em determinadas áreas e municípios e levando os movimentos a tentarem repetir a experiência em outras tantas. Desta forma, pode-se dizer que a própria conformação dessas áreas de maior concentração de assentamentos é, por si, um dos efeitos que eles vêm provocando em algumas regiões.

Assim, as medidas que resultaram na criação dos assentamentos, mesmo sem estarem orientadas para a realização de uma reforma agrária “massiva”, como exigiam os movimentos de trabalhadores, mas adotadas sob pressão desses, foram se concentrando nas áreas em que estes movimentos atuavam, levando ao surgimento quase que de áreas reformadas a posteriori.

Afirmar que os movimentos sociais foram o motor das desapropriações de forma alguma quer dizer que os movimentos atuaram a partir de algum plano pré estabelecido. Tanto quanto os demais atores das lutas sociais, eles têm atuado sobre algumas configurações históricas das quais eles são também prisioneiros. Estas configurações, embora inseridas num pano de fundo mais geral da questão agrária no país, apresentam características específicas em cada região pesquisada, tais como a falência de grandes empreendimentos patrocinados pelo Estado no sudeste do Pará; as crises das lavouras cacaueira no sul da Bahia, canavieira na Zona da Mata nordestina e algodoeira no sertão cearense (esta última intensificada pela ocorrência de grandes secas); a grande valorização das terras e os fortes fluxos migratórios no chamado Entorno do Distrito Federal; a crise de reprodução da pequena agricultura no sul do país.

A análise das atividades exercidas pela população assentada no momento anterior ao assentamento reflete claramente essa problemática: mais de 80% das famílias de assentados entrevistados vieram do próprio município ou de municípios vizinhos de onde está localizado o assentamento. No Sul da Bahia destacam-se os assalariados rurais permanentes, provavelmente ex empregados das fazendas de cacau. No Sertão do Ceará destacam-se os moradores, relação predominante nas fazendas lá existentes. No Entorno do Distrito Federal e na Zona Canavieira do Nordeste, predominam assalariados rurais temporários ou permanentes, seguidos de posseiros/parceiros/arrendatários, indicando uma população que vivia subordinada às fazendas. No Sudeste do Pará ganham relevo “membros não remunerados da família” e posseiros, indicando possivelmente que os assentados sejam filhos ou parentes de posseiros em áreas de ocupação mais antiga. Já no Oeste de Santa Catarina, predominam parceiros/arrendatários e “membros não remunerados da família” (filhos de agricultores).

Os assentamentos vêm, assim, possibilitando o acesso à propriedade da terra para uma população historicamente excluída, que já vivia na zona rural da própria região e que, embora mantendo anteriormente algum tipo de inserção no mercado de trabalho, o fazia em condições bastante instáveis e precárias.

Assentamentos e alterações fundiárias e demográficas

Embora a criação dos assentamentos tenha implicado em alguma redistribuição fundiária, não chegou a alterar radicalmente o quadro de concentração da terra ao nível nacional, estadual e nem mesmo nas próprias regiões onde é maior a presença dessas unidades. A participação da área total de todos assentamentos rurais implantados pelo Incra na área total dos estabelecimentos dos estados abarcados pela pesquisa oscilava, em 1999, entre 0 e 5%. A única exceção era o Pará, onde os assentamentos representavam 25% da área total do estado. Se tomarmos apenas os municípios incluídos na pesquisa (com maiores concentrações de assentamentos), a relação entre a área dos assentamentos e a área dos estabelecimentos agropecuários é significativamente maior mas, mesmo assim, com variações importantes entre as regiões e entre os municípios, indo de apenas 3% no Sul da Bahia até 40% no Sudeste do Pará.

As alterações na estrutura agrária são portanto mais visíveis somente ao nível local, motivo pelo qual não se pode classificar a política de assentamentos rurais como um profundo processo de reforma da estrutura fundiária.

Da mesma forma, embora a população assentada não tenha grande peso sobre a população total da região, sua participação relativa na população rural dos municípios estudados em vários casos é significativa. Uma inferência possível é que a intensificação dos assentamentos nestas regiões tenha contribuído, senão para ampliar a população rural, pelo menos para estancar seu decréscimo.

Por outro lado, em alguns dos municípios analisados, os assentamentos têm levado a um redesenho da zona rural, modificando a paisagem, o padrão de distribuição da população, o traçado das estradas, provocando a formação de novos aglomerados populacionais, mudando o padrão produtivo, às vezes relacionando-se à autonomização de distritos e mesmo à criação de novos municípios.

Os assentados: trabalho, renda e condições de vida

A análise do perfil da população estudada reforça o argumento anterior de que os assentamentos vêm possibilitando o acesso à propriedade da terra para uma população historicamente excluída. Grande parte da população assentada vivia na zona rural da própria região: mais de 80% das famílias entrevistadas vieram do próprio município ou de municípios vizinhos de onde está localizado o assentamento e 94% deles já tiveram alguma experiência de trabalho na agricultura ao longo da vida. Os responsáveis pelos lotes têm baixa escolaridade (87% dos entrevistados cursaram, quando muito, até a 4ª série do ensino fundamental, sendo que 32% nunca foram à escola).

No momento imediatamente anterior ao assentamento, 75% dos assentados estavam ocupados em atividades agrícolas, como assalariados rurais permanentes ou temporários, posseiros, parceiros, arrendatários ou trabalhavam com os pais ou outros parentes na agricultura.

Em cenários de elevados índices de desemprego e relativo fechamento do mercado de trabalho para os segmentos menos escolarizados da população, associado à crise de importantes setores da grande agricultura e de dificuldades para os filhos dos agricultores familiares se estabelecerem como produtores, os assentamentos representaram nas regiões estudadas uma importante alternativa de trabalho e inserção social.

A criação dos assentamentos tornou possível a essa população centrar suas estratégias de reprodução familiar e de sustento econômico no próprio lote, complementarmente lançando mão de outras fontes de trabalho e de renda fora dele, muitas delas também relacionadas com a existência do assentamento. Do total da população maior de 14 anos nos projetos pesquisados, 79% trabalhavam somente no lote, 11% no lote e também fora dele, 1% somente fora e 9% declararam não trabalhar. Ou seja, 90% dos assentados maiores de 14 anos trabalhavam ou ajudavam no lote, numa média de três pessoas por lote. O trabalho fora do lote nas áreas estudadas aparece como complementar: daqueles 12% do total da população que faziam algum trabalho fora do lote (somando os que trabalham somente fora ou também no lote), 44% o faziam em caráter eventual, 24% em caráter temporário e apenas 31% de modo permanente.

A presença dos assentamentos acaba atuando também como fator gerador de postos de trabalho não agrícolas: mais da metade dos que trabalhavam fora do lote exerciam atividades dentro do próprio assentamento, incluindo trabalhos não agrícolas gerados pela nova situação (construção de casas, estradas, escolas, obras de infra-estrutura, professores, merendeiros, agentes de saúde, trabalhos coletivos, beneficiamento de produtos, transporte alternativo etc.).

Embora os recursos oriundos do lote, por meio da comercialização da produção, não sejam a única fonte de rendimentos familiares, eles representam 69% desses rendimentos, enquanto as atividades de trabalho externo representam 14%, e os benefícios previdenciários, 17%, sempre com algumas diferenças regionais.

Além do número de empregos gerados, as famílias assentadas acabam servindo como amparo social a outros parentes, atuando também, em alguns casos, como mecanismo de recomposição de famílias. Em 24% dos lotes vivem, além da família nuclear (pai, mãe e filhos), outros parentes, como pais/sogros, genros/noras, irmãos/cunhados, netos, etc., muitos dos quais não viviam anteriormente com a família assentada.

O acesso à terra permitiu, pois, às famílias entrevistadas uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar que resultaram, de modo geral, em uma melhoria dos rendimentos e das condições de vida, especialmente quando se considera a situação de pobreza e exclusão social que caracterizava muitas destas famílias antes do seu ingresso nos projetos de assentamento. Houve um aumento na sua capacidade de consumo, não só de gêneros alimentícios, mas também de bens de eletrodomésticos, insumos e implementos agrícolas. Isso se revela no fato de que 66% dos entrevistados apontaram uma melhora na alimentação e 62% consideram que seu poder de compra aumentou. Cresceu o número de famílias que possuem fogões a gás, geladeiras, televisão, antenas parabólicas, máquinas de lavar e transporte próprio (especialmente bicicletas e animais). As melhorias no padrão de consumo, de habitação e na posse de bens duráveis fazem com que os assentamentos acabem atuando como dinamizadores do comércio local, fato que se acentua nos casos de elevada concentração de assentados.

Produção

É grande a diversidade de produtos originários dos assentamentos, com variações que, de alguma forma, acompanham o perfil tradicional da agricultura nas regiões mas, em alguns casos, também introduzem mudanças. O mais recorrente é a presença de produtos ao mesmo tempo facilmente comercializáveis mas cruciais na alimentação da família, como milho, mandioca e feijão e, em menor escala, inhame, banana, arroz. Aparecem ainda culturas eminentemente comerciais como algodão, cana-de-açúcar, cacau, abacaxi e fumo, entre outras.

Também a pauta de criação animal é diversificada. Assim como no caso dos produtos agrícolas, os animais são utilizados simultaneamente para consumo e venda, com destaque para gado de corte e principalmente leite, criação de aves (para carne e ovos) e porcos. Aparecem ainda produtos extrativos, em alguns casos com peso comercial, como a piaçava no Sul da Bahia, a erva-mate no Oeste Catarinense e a madeira em estacas no Sudeste do Pará.

Assim, uma das principais mudanças trazidas pelos assentamentos nas regiões refere-se à diversificação da oferta de produtos no mercado local, o que foi verificado através da comparação entre a produção dos assentamentos e dos municípios estudados. Os assentamentos vêm contribuindo para diversificar as pautas de produtos agropecuários, introduzindo novos cultivos e incrementando significativamente a produção de alguns produtos secundários na pauta regional, e chegando a se destacar em relação a alguns produtos tradicionais nos municípios. Em alguns casos, os assentamentos vêm significando uma espécie de reconversão produtiva, provocando uma reorganização do sistema de uso dos solos, especialmente nas áreas monocultoras ou de pecuária extensiva onde a agricultura patronal encontrava-se em crise. A diversificação da pauta de produtos tem efeitos também sobre os próprios assentados, com a coexistência de produtos destinados à subsistência e produtos destinados ao mercado, resguardando as famílias de possíveis problemas na comercialização, além de significarem uma melhoria quantitativa e qualitativa da alimentação.

A condição de assentado possibilitou a essa população, pela primeira vez, o acesso ao crédito para produção, ainda que essa integração ao mercado financeiro esteja marcada por um conjunto significativo de dificuldades: 93% das famílias entrevistadas nunca tinham tido acesso ao crédito antes. Além disso, o volume de crédito que circula em função dos assentamentos impulsiona um conjunto de atividades, trazendo também impactos no comércio local e regional.

Com relação à comercialização da produção, a pesquisa revelou um quadro heterogêneo. A presença dos assentamentos provocou, em vários municípios analisados, o crescimento da oferta local, a diversificação e o rebaixamento dos preços de produtos alimentícios, com repercussões especialmente nas feiras livres. Em geral o peso dos atravessadores é significativo, reproduzindo situações locais preexistentes, mas se constatou casos onde, mesmo mantendo os canais tradicionais, os assentamentos introduzem mudanças, com o surgimento de atravessadores para novos produtos ou mesmo trazendo um aumento na produção local que permite o alcance de novos mercados consumidores. Há também casos em que mudanças nas formas de comercialização são introduzidas, em especial nas áreas onde é mais forte a presença do MST, com inovações no beneficiamento e o surgimento de formas cooperativas e associativas que levam à criação de pontos de venda próprios, implantação de pequenas agroindústrias, constituição de marcas próprias que identificam a origem do produto como sendo “da reforma agrária”. Neste último caso, para além do seu significado econômico, a comercialização se transforma num momento de afirmação social e política da identidade dos assentados e dá visibilidade aos assentamentos.

Precariedade da infra-estrutura

Se a análise de alguns aspectos dos assentamentos revela dimensões promissoras, no que se refere à infra-estrutura, ficou evidente a precariedade da sua situação, indicando, por um lado, uma insuficiente intervenção do Estado no processo de transformação fundiária e, por outro, forte continuidade em relação à precariedade material que marca o meio rural brasileiro. Cerca de 46% dos assentamentos estudados têm parte dos lotes com problemas de abastecimento de água. Apesar de 78% dos projetos terem rede elétrica, somente 27% deles são servidos na sua totalidade por ela. Predominam estradas de terra para acesso ao assentamento e, em metade dos casos, há inacessibilidade na época das chuvas. A distância média dos assentamentos estudados em relação às cidades de maior contato é de 28 km, com um tempo médio de deslocamento em torno de uma hora. Com relação ao transporte coletivo, apesar do quadro geral de precariedade, as observações de campo indicam que a presença dos assentamentos trouxe mudanças, com a ampliação da frota de veículos e máquinas das prefeituras, tais como ônibus para transporte escolar, ambulâncias e tratores. Também houve casos de mudanças em itinerários de ônibus e ampliação dos serviços alternativos como mototáxis e caminhonetes, provavelmente favorecendo também localidades vizinhas.

No que se refere à educação, uma das grandes preocupações das famílias assentadas é com a existência de escolas para seus filhos. Em 86% dos projetos investigados existem escolas, em grande parte criadas depois de instalado o assentamento. Em 71% dos casos houve necessidade de reivindicações dos assentados para a criação dos estabelecimentos escolares. Uma porcentagem alta da população em idade escolar estava matriculada: cerca de 90% da população entre 7 e 14 anos. Apesar das debilidades existentes (salas multisseriadas, oferta apenas do ensino fundamental), 70% dos entrevistados consideram que a situação de escola para os filhos é melhor atualmente do que antes do assentamento. Já a situação dos serviços de saúde é mais precária: somente 21% dos assentamentos têm postos de saúde, embora 78% deles tenham agentes de saúde.

As distâncias dos assentamentos em relação aos centros urbanos, a dificuldade das estradas e/ou a carência de transporte coletivo, a precariedade do atendimento à saúde têm efeitos graves sobre a vida dos assentados e mesmo sobre a comercialização da produção. No entanto, isso não significa que não haja alterações: a precariedade de infra-estrutura, aliada às dificuldades de estabelecimento na terra e àquelas mais gerais de reprodução da agricultura familiar, faz com que a criação dos assentamentos e as expectativas que os cercam dêem origem a uma série de demandas e reivindicações, cuja potencialização relaciona-se com a capacidade organizativa dos assentados e com a conjuntura política local em que se inserem.

Reconhecimento político: em busca da cidadania

A experiência de luta pela terra e a existência do assentamento enquanto espaço de referência para políticas públicas, entre outros fatores, fazem com que os assentamentos tornem-se ponto de partida de demandas, levando à afirmação de novas identidades e interesses, ao surgimento de formas organizativas internas (e também mais amplas) e à busca de lugares onde se façam ouvir. Com isso, os assentamentos acabam trazendo mudanças na cena política local, com a presença dos assentados nos espaços públicos e mesmo nas disputas eleitorais. Eles provocam mudanças nas relações entre os trabalhadores que nele vivem e as autoridades locais, quer impondo a estas novas formas de atuação, quer reforçando mecanismos tradicionais de clientela, quer constituindo novas lideranças que passam a disputar espaços públicos.

Em muitos lugares os assentados ganharam reconhecimento social e político pelos demais setores sociais, superando uma tensão inicial, muitas vezes marcada por uma visão de que os assentados eram “forasteiros” ou “arruaceiros”, em especial nas áreas onde os assentamentos foram resultado de ocupações de terra. Em alguns casos, os assentamentos chegam a ser vislumbrados por parte da população como uma saída para a “crise” da agricultura local.

Para além das questões econômicas, criam-se novos atores sociais e resgata-se a dignidade de uma população historicamente excluída. Foram comuns os depoimentos sobre o sentido do ser assentado, em especial (embora não exclusivamente) nas áreas onde predominaram as monoculturas e as relações de poder que as marcam. Não pagar renda da terra, deixar de ser “escravo”, sentir-se “liberto” e capacitado a controlar sua vida, foram elementos recorrentes na fala dos assentados, quando contrastam seu passado com seu presente.

Por mais que este seja prenhe de dificuldades, o acesso à terra provocou em muitos casos rupturas e uma sensação nítida de melhora em relação ao passado: ao comparar suas condições de vida antes do assentamentos com as atuais, 91% dos assentados entrevistados consideraram que suas vidas melhoraram e 87% acreditam que o futuro será melhor, apontando um quadro de esperança que tem no acesso à terra uma perspectiva de estabilidade a longo prazo.

Este artigo sintetiza algumas conclusões da pesquisa Impactos regionais da reforma agrária: um estudo a partir de áreas selecionadas, realizada entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001, pelo CPDA/UFRRJ (Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e pelo Nuap/PPGAS/MN/UFRJ (Núcleo de Antropologia da Política, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro), com financiamento do Nead/IICA. Os autores foram os coordenadores nacionais da pesquisa, que contou com a participação de equipes de investigadores nas regiões estudadas. Os resultados finais estão publicados no livro Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro, editado em abril de 2004 pela editora da Unesp e pelo Nead.





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