Autor original: Fausto Rêgo
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Boa parte da geração que hoje está na faixa dos 35 a 40 anos guarda na memória a imagem de um pássaro grandalhão e desengonçado de nome esquisito que contracenava com uma jovem atriz iniciante em um programa infantil que fez muito sucesso no início dos anos 70. O pássaro atendia pelo nome de Garibaldo e a atriz era uma certa Sônia Braga. O programa chamava-se "Vila Sésamo" e procurava entreter e ensinar utilizando atores, marionetes, animação e música, em um formato inspirado na linguagem publicitária.
A televisão brasileira foi uma das primeiras a se interessar pelo programa, criado pelo Sesame Workshop, instituição não-governamental norte-americana que se propõe a utilizar a mídia para educar crianças em todo o mundo. Programas desenvolvidos pela entidade são veiculados em diversos países, adaptados às diferentes realidades de cada população. Para a África do Sul, em um continente que vive o drama da enorme incidência de pessoas contaminadas pelo vírus HIV, foi criado um personagem soropositivo – iniciativa premiada recentemente pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
De passagem pelo Rio de Janeiro, onde participou da Cúpula Mundial de Mídia para Crianças e Adolescentes, o presidente da organização, Gary Knell, falou à Rets sobre o retorno de "Vila Sésamo" à televisão brasileira – numa parceria com o canal a cabo Futura e ainda sem data de estréia. E expõe também uma série de idéias sobre a TV, o potencial das tecnologias de informação e comunicação, o enfrentamento do hiato digital e o "uso positivo" da mídia – para diminuir preconceitos, reduzir conflitos e educar.
Rets - "Vila Sésamo" foi um grande sucesso nos anos 70, no Brasil. Sua volta à programação certamente não se dará nos mesmos moldes de antigamente. Os tempos mudaram, as crianças mudaram. O que haverá de diferente nessa nova versão do programa?
Gary Knell - Talvez a gente possa aprender um pouco com a própria história. "Vila Sésamo" nasceu há 35 anos, nos Estados Unidos, para ajudar as crianças em idade escolar. Naquela época, foi concebido em um período em que se percebeu que as crianças aprendiam muito com a publicidade – jingles, canções, mensagens curtas na televisão. E a questão não era: "Será que elas estão aprendendo?". A questão era: "O que elas estão aprendendo?". Então acreditamos que seria possível utilizar as técnicas da publicidade para ensinar as letras e os números, transmitir noções de solidariedade, respeito e saúde de forma divertida, com atores e marionetes que viviam todos juntos em uma rua muito especial, com uma variedade de raças e etnias – o que era bastante incomum nos Estados Unidos, naquela época. E logo o programa começou a fazer sucesso. Em seguida, um grande número de países, incluindo o Brasil, manifestou interesse. O Brasil, aliás, foi um dos primeiros países a se aproximar, há mais de 30 anos. Os mexicanos também.
Bem, acho que é uma resposta longa à sua pergunta, mas o que vamos fazer aqui é pegar a magia que "Vila Sésamo" sempre teve e criar um "Vila Sésamo" no século 21. Não pode ser o mesmo de 30 anos atrás porque as crianças, atualmente, são muito mais sofisticadas em termos de mídia e têm muito mais opções. Certamente, em muitas partes do Brasil, assim como na Europa e nos Estados Unidos, as crianças têm hoje a mídia à sua volta durante todo o tempo. São muitas opções de programas à disposição delas, por isso precisamos assegurar que o programa seja realmente divertido e um bom entretenimento, atraindo a atenção delas e de seus pais.
Uma das razões pelas quais acreditamos que "Vila Sésamo" será bem-sucedido é que vocês conhecem o programa e se lembram dele. Muitas pessoas da sua idade já são pais e talvez desejem que seus filhos também tenham a experiência de assistir ao programa que viam na infância. Por isso devemos trabalhar com nossos parceiros brasileiros para preparar um grande programa, com novos personagens. Talvez a gente traga de volta o Garibaldo... Sônia Braga participava do programa original, pode ser que ela volte para fazer um outro personagem [risos]. Mas acho que teremos condições de criar um programa inteiramente novo e que consiga captar a essência do Brasil no ano 2005. Essa é uma das grandes coisas em "Vila Sésamo": não é simplesmente um desenho animado que permanece sempre igual. Ele pode mudar a cada ano, ter novos personagens e um novo formato, mantendo as crianças interessadas.
Rets - Temos atualmente muita violência na televisão, mesmo em desenhos animados voltados para crianças. E há muita polêmica sobre a violência em jogos de computadores e videogames. Diante disso, como o senhor vê a responsabilidade da mídia e das famílias?
Gary Knell - Acreditamos que existe uma responsabilidade da mídia no sentido de se dedicar a produzir programas que incentivem um comportamento mais positivo. Não gostaria de fazer críticas a programas específicos, não é nosso papel, mas em vários países mundo afora, até mesmo nos Estados Unidos, temos procurado atuar na solução de conflitos, incentivando as crianças a resolver conflitos de forma pacífica, em vez de recorrer à violência freqüentemente propagada na TV.
Estamos trabalhando agora, por exemplo, no Oriente Médio; estamos também em Kosovo, na região dos Bálcãs; e estaremos em breve na Irlanda do Norte. E sempre com um modelo focado em três coisas, quando lidamos com situações de conflito: a primeira é a auto-estima. As crianças precisam se sentir bem com elas mesmas para que possam se sentir bem com os outros. Do contrário, certamente vão querer culpar terceiros por seus problemas.
A segunda coisa é o conceito de empatia, ou seja, a capacidade de se colocar na situação do outro. Assim uma pessoa rica passa a não olhar mais para uma pessoa pobre como se ela não merecesse respeito algum; consegue se imaginar no lugar dela.
E o terceiro ponto é compreender o impacto que o que você faz pode causar nos outros, entender que existe uma conseqüência e pensar nisso antes de fazer. Dessa forma, é possível lidar com problemas como 'bullying'[basicamente, humilhações na escola] e falar francamente sobre situações de conflito. Estamos trabalhando com esse propósito em lugares como Palestina, Israel e Bálcãs, tentando reduzir as distâncias entre os grupos étnicos por meio de uma mudança de comportamento – não à maneira dos contos de fadas, mas procurando humanizar o outro lado, pois é muito mais difícil odiar o outro quando você passa a conhecê-lo. É o que estamos tentando fazer usando a televisão, e sabemos que tanto crianças quanto adultos assistem à TV e aprendem com ela. Portanto, se vêem um comportamento agressivo, apreendem esse comportamento; se vêem crianças ou adultos trabalhando de forma construtiva na solução de um problema, acreditamos que isso também será um estímulo. É uma influência bastante positiva e nós achamos que a televisão pode ser muito útil nesse sentido.
Rets - Seria esse um conceito, digamos, universal do que poderia ser boa mídia, a despeito da diversidade mundial de valores e culturas?
Gary Knell - Exatamente. E fizemos um episódio sobre isso nos Estados Unidos, em que o Big Bird [em português: Pássaro Grande, um dos personagens criados pelo Sesame Workshop] – uma espécie de Garibaldo norte-americano, um pássaro gigante – chama um amigo, uma gaivota, para brincar. Mas a gaivota olha e percebe que existem monstros e outros animais ali e decide que não vai brincar com eles porque não são pássaros. Então Big Bird diz: "Eles são meus amigos. Se você não gosta deles, pode ir embora". Naturalmente, a gaivota resolve tentar, mas acaba não sendo divertido. A verdadeira mensagem dessa história é sobre passar por cima dos estereótipos, estimulando nas crianças um pensamento mais aberto sua experiências cotidianas. É possível utilizar essa abordagem no Brasil, em algumas questões sociais, e vamos trabalhar com nossos consultores, aqui, para fazer isso acontecer.
Rets - Gostaria que falasse um pouco sobre o projeto que vocês vêm desenvolvendo na África.
Gary Knell - A África do Sul está comemorando dez anos do fim do regime do apartheid. O Workshop está lá desde o começo, para tentar construir um novo conceito de mídia para crianças, em parceria com a rede de televisão sul-africana SABC. Criamos uma versão local do "Vila Sésamo", chamada "Takalani Sesame" – a palavra "takalani" significa "seja feliz" em tshivenda, que é uma das 12 línguas oficiais do país. E o programa foi focado, num primeiro momento, em temas como diversidade, cidadania, essas questões que começavam a emergir na África do Sul naquele momento.
Na segunda temporada, nosso parceiros e o Ministério da Educação acharam que seria muito interessante mobilizar a população em torno do HIV e da Aids. Criamos um novo personagem, soropositivo, com uma participação ativa na comunidade – ela vai à escola, tem senso de humor... mas é órfã, perdeu sua mãe em decorrência da Aids. Ela usa uma corrente no pescoço com a foto da mãe e fala abertamente sobre a doença. E as crianças do programa dizem: não tratem Kami – este é o nome dela – de forma diferente de como vocês tratariam outro amigo. Eles conversam sobre o fato de ela ser soropositiva e nós temos a oportunidade de apresentar histórias sobre isso, da mesma forma que faríamos sobre uma criança fisicamente desabilitada. Afinal, uma pessoa pode estar numa cadeira de rodas e ainda assim ter uma participação ativa na comunidade. É esse o conceito: é sobre como lidar com o estigma, humanizar o outro e acabar com uma certa mitologia que existe em torno do HIV e de como ele é transmitido. Você não vai se contaminar abraçando alguém, por exemplo.
O programa teve uma grande repercussão e Carol Bellamy[diretora executiva], do Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], deu a Kami, recentemente, o título de "Campeã das Crianças" de todo o mundo. O Unicef levará Kami à Conferência Mundial sobre Aids, em Bancoc, Tailândia, em julho, pois ela é um ícone para as crianças que têm Aids.
Não é possível dizer, neste momento, se ela estará na versão brasileira do programa. É algo que precisamos conversar com nossos consultores e parceiros.
Rets - O que o senhor conhece a respeito da mídia brasileira, em particular a televisão?
Gary Knell - Alguma coisa. Não posso dizer que seja capaz de escrever uma tese de mestrado sobre o assunto, mas claro que conhecemos o caráter comercial da mídia brasileira e o poder da Rede Globo como grande exportadora mundial de produtos, telenovelas e tudo o mais. Assim como em outros países, o panorama da mídia brasileira está se transformando com as novas tecnologias, o maior número de canais... e isso é importante para nós. Vamos trabalhar com o canal Futura e também tentar alcançar redes de televisão abertas, para chegar a um número cada vez maior de crianças.
Rets - O senhor falou em novas tecnologias e existe um grande hiato tecnológico, no que diz respeito às tecnologias de informação e comunicação, entre os países do norte e os do sul. Como o senhor acha possível reduzir essa distância?
Gary Knell - O que nós procuramos fazer é tentar usar a tecnologia apropriada, conforme as circunstâncias. Na África do Sul, em muitos lugares, as pessoas não têm acesso à televisão, não têm acesso a eletricidade – o que talvez seja o caso, aqui no Brasil, em certas localidades. Então fizemos muitas coisas usando rádio, cujo acesso é um pouco mais fácil e barato. Trabalhamos junto com uma entidade inglesa chamada Freeplay Foundation, que desenvolveu rádios a manivela, que não precisavam de pilhas ou energia elétrica. E distribuímos esses rádios em centros comunitários nas áreas mais remotas da África do Sul, de modo que elas pudessem sintonizar as transmissões do Takalani Sesame, que também tinha Kami e os demais personagens falando sobre saúde, HIV, letras e números. O rádio, portanto, é um elemento importante desse trabalho.
Também estamos distribuindo material para diferentes programas assistenciais do governo, e esse material é distribuído para a população. Enfim, o que tentamos fazer é trabalhar em conjunto com os nossos parceiros para decidir que áreas vamos focar aqui no Brasil. Uma criança que mora em Copacabana e tem acesso à Internet em banda larga tem necessidades muito diferentes de outra que mora numa tribo indígena no Nordeste, portanto precisamos descobrir qual a maneira mais apropriada de chegar até elas e devemos ser um pouco flexíveis nessa aproximação. Mas somos uma organização de mídia e entretenimento, por isso vamos usá-la. A questão é: qual o modo mais apropriado de fazer uso dessa mídia?
Rets - O senhor tem filhos?
Gary Knell - Sim.
Rets - Quantos?
Gary Knell - Quatro. Por isso eu tenho estes cabelos brancos [risos]. O mais novo tem 9 anos e o mais velho, 18.
Rets - E o que ele assiste na TV?
Gary Knell - Ele é um grande fã de esportes e adora basquete. A maior parte do tempo que ele passa em frente à televisão é para ver a NBA [liga norte-americana de basquete] ou beisebol. Ocasionalmente assiste também à CNN [emissora exclusivamente jornalística] e alguns programas populares.
Rets - E qual a sua preocupação com a juventude que está sendo formada atualmente?
Gary Knell - Primeiramente, vamos falar da tecnologia e do hiato digital. Existe um grupo de crianças, de um lado, que é bombardeado pela mídia em toda a parte, que tem acesso à Internet em banda larga, comunicação por satélite, celulares... e, ao mesmo tempo, há milhões de crianças sem acesso a nada disso. Para muitas crianças do mundo industrializado, a mídia está em toda a parte. Em lugares como o Japão, por exemplo, hoje as pessoas aprendem letras, números e o idioma inglês em seus celulares. E esse "trem" continua se movendo, não perde velocidade.
A mídia está cada vez mais rápida, menor e mais barata – seja no Japão, no Rio, em Nova York, em Londres, onde quer que seja. E é muito importante que exista um grupo de produtores e executivos que se empenhem em prol de uma boa mídia, com propósitos positivos. Não há razão, por exemplo, para que videogames sejam usados exclusivamente para jogos violentos ou que mostrem mulheres em situação desfavorável. Eles também podem ser usados para educar.
Em 1969, utilizamos a televisão para educar – um veículo que não era, até então, considerado apropriado para a educação. Nós mudamos isso e fizemos história, e é o que queremos fazer com as outras mídias também.
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