Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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A sociedade reagiu com espanto quando, em 1987, a foto de uma menina de 12 anos exibindo nas mãos uma pistola, no Morro Dona Marta, foi publicada em jornais cariocas. Hoje a imagem de uma criança portando uma arma ainda é perturbadora, mas há muito deixou de ser incomum. A entrada cada vez mais precoce de jovens no crime é um fato – e sintoma de um certo fracasso de políticas públicas sociais, em particular aquelas direcionadas para crianças e adolescentes.
É difícil falar em números precisos, mas o projeto Coav (sigla em inglês para Crianças em Violência Armada Organizada) vem preparando uma pesquisa internacional sobre o envolvimento de crianças e adolescentes em violência armada em regiões que não estão em guerra. A previsão é de que esse estudo esteja concluído até agosto, segundo informa a pesquisadora Anna Flora Werneck, que adianta uma estimativa: aproximadamente 6 mil crianças estariam envolvidas em violência armada somente no município do Rio de Janeiro. Mas há quem conteste, como o professor Jaílson de Souza, coordenador geral do Observatório de Favelas e diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. "Não dá pra fazer esse diagnóstico, porque o grau de envolvimento das pessoas no tráfico é muito diferenciado. Nem os traficantes e gerentes têm esses dados", argumenta. Ele classifica o tráfico como "uma rede social com diferentes níveis de envolvimento" e afirma que a participação das pessoas das comunidades nessa atividade não passa de 1%, talvez com outros 2% em envolvimento indireto (famílias, namoradas etc). "Se você pensar em uma população de um milhão de pessoas nas favelas, 1% vai dar 10 mil pessoas. É muito, o tráfico não tem condição de empregar tudo isso", assegura.
Jaílson diz desconhecer qualquer pesquisa séria que aponte números, mas enfatiza que mais grave do que a quantidade de pessoas envolvidas é a "qualidade do problema e o seu impacto, que é fortíssimo".
Visibilidade
Em 2001, como parte de uma análise sobre as piores formas de trabalho infantil no mundo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou um levantamento – realizado em parceria com o Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets) –sobre crianças e adolescentes no tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa destacava o aumento progressivo do número de jovens na faixa de 13 a 17 anos em atividades ligadas ao tráfico.
Essa tendência poderá ou não ser confirmada em uma nova pesquisa iniciada neste mês pelo Observatório de Favelas, em conjunto com o Fórum Estadual para Erradicação do Trabalho Infantil e o Viva Rio. O trabalho está sendo desenvolvido em parceria com o Departamento de Ações Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) e o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) e terá financiamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), da organização holandesa Icco e da própria OIT. O estudo envolve 200 crianças e adolescentes empregados no tráfico e o projeto também deverá render um livro com histórias de pessoas que saíram da atividade criminosa.
Para o historiador Marcelo Freixo, do Centro de Justiça Global, a participação cada vez mais intensa dos jovens na violência armada pode ser percebida em depoimentos de internos do sistema penitenciário. Aos 13 ou 14 anos eles já começam a trabalhar no tráfico. "São garotos que não têm nenhuma referência de cidadania, de escola... a única coisa que recebem do Estado é a violência contra a comunidade. E eu falo de comunidades porque são os guetos onde se reprime o tráfico", diz Marcelo.
Neste momento, analisa, a perspectiva para esses jovens não é das mais favoráveis. "Se você olhar o sistema Degase [Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro, que reúne os centros de acolhimento], vai ver um mapa cruel. Todas as unidades são separadas por facções criminosas, em função dos lugares onde eles moram. Ou seja, desde muito cedo eles são rotulados, mesmo que jamais tenham pertencido a essas facções", indigna-se. Marcelo observa que a maioria dos crimes cometidos por jovens que ainda não atingiram a maioridade penal enquadra-se em categorias mais leves, como furto ou roubo. "Muitas vezes eles não têm qualquer vínculo com o tráfico. Passam a ter quando cumprem as medidas socioeducativas. Isso significa que o próprio Estado instrumentaliza o sistema de facções".
Jaílson de Souza chama atenção para o que classifica como um "confronto anacrônico" nos becos das favelas. "A lógica do fuzil implica uma lógica de guerra, de tratar o outro como inimigo. As comunidades são tratadas como se todos os moradores fossem criminosos. Essa lógica do faroeste é absolutamente insana". Ele lembra que, conforme estatísticas recentes, de cada oito homicídios ocorridos no município do Rio de Janeiro, um é cometido pela polícia, sem que isso produza resultados efetivos. "Morre cada vez mais gente e a situação só piora. Não se trata de defender bandido, mas de preservar a vida humana. O garoto que vende droga não tem que morrer, assim como quem consome também não tem", desabafa.
Motivações
A idéia de que a pobreza é o fator que leva crianças e adolescentes a ingressarem no crime tem sido progressivamente desmistificada. Dados levantados pelos pesquisadores do Coav – entre eles o antropólogo Luke Dowdney, que lançou no ano passado o livro "Crianças no tráfico", pela editora Sette Letras – mostram que há outras influências e que a auto-estima é uma das principais. "Não é só a questão econômica, do dinheiro que o tráfico proporciona. Há outras motivações, como a falta de oportunidades de emprego e o status que o crime representa. O jovem tem a possibilidade de fazer parte de um grupo de referência e o poder da arma é um atrativo para as mulheres. Além disso, a realidade do tráfico já é mais aceita, hoje, na comunidade. É como se fosse mais um emprego, um auxílio financeiro com o qual as pessoas contam para sobreviver", explica Anna Werneck.
Marcelo Freixo admite que a questão é complexa, com raízes diversas, e concorda que existe de fato algo muito sedutor nessa relação de poder. Ele responsabiliza o Estado por ignorar uma parcela tão significativa da população. "Devido a essa ausência do poder público, o jovem não tem identificação com a escola, não tem acesso a um posto de saúde, não tem uma política de emprego, e isso fortalece o crime organizado".
Basicamente, as mesmas razões que conduzem ao tráfico são identificadas como motivação para que crianças e jovens se apresentem voluntariamente para atuar em guerras, grupos paramilitares ou milícias armadas. É o que constata preliminarmente o estudo do Coav, confirmando um diagnóstico traçado em dezembro pelo Unicef e pela Coalizão contra o Uso de Crianças como Soldados, no "Guia para o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados"*.
"No momento", diz Anna Werneck, "a gente está vendo mais as semelhanças no mundo todo. São três situações que estamos analisando: uma é a do Rio de Janeiro, outra é a questão da pré-violência armada, como no caso das gangues do Equador, e a terceira é a questão do pós-conflito, em locais onde a guerra já não existe, mas os jovens continuam envolvidos com armas, como é o caso da Colômbia".
A realidade carioca – e brasileira – é, portanto, ainda bem diferente – em que pese a presença das Forças Armadas nas ruas do Rio ou os lugares-comuns das "guerras do tráfico" e dos "soldados do morro".
* O protocolo data de 2000 e foi ratificado em maio do ano passado pelo governo brasileiro, por meio do decreto legislativo nº 230. O documento pretende estabelecer um compromisso global contra a participação de crianças e adolescentes em conflitos armados.
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