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Exploração sexual infanto-juvenil nas estradas: na contramão da proteção

Autor original: Mariana Loiola

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets

"Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da Lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais." (ECA, Art. 5º)






Exploração sexual infanto-juvenil nas estradas: na contramão da proteção


A cada ano somam-se novos fatos e dados a uma realidade que causa indignação aos brasileiros e brasileiras e motiva cada vez mais setores da sociedade a reunirem esforços no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. Este ano, a poucos dias do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – 18 de maio – um levantamento aponta para a tragédia diária que ocorre nas principais rodovias do país. Os dados do estudo "Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil" indicam que 33,4% de todas as ocorrências registradas pela Polícia Rodoviária Federal envolvendo crianças e adolescentes em rodovias – no período entre janeiro e abril de 2004 – tinham conotação sexual, ou seja, apresentavam indícios que as configuravam como exploração sexual.

A autoria da pesquisa é de Junie Penna, inspetor da Polícia Rodoviária Federal, que, a partir dos dados fornecidos pelo centro de informações operacionais da instituição, fez um mapeamento, em cada região brasileira, das ocorrências policiais envolvendo essas faixas etárias nas principais rodovias. Segundo o policial, seu trabalho é uma forma que ele encontrou de reagir à realidade cruel constatada ao longo de seus dez anos de atividades. A estatística, isoladamente, é, de acordo com ele, menos contundente do que os fatos observados. E foi nestes que ele focou a sua análise. "Esse é um assunto que permeia o dia-a-dia de todos nós, mas sempre me incomodou muito, por observar que só o enfrentamento policial não resolvia o problema. A gente vê fatos muito tristes de crianças de dez anos sendo seviciadas em troca de um par de sandálias ou de um brinquedo. É uma crueldade absurda", diz.

O estudo demonstra que as rodovias são utilizadas basicamente de duas formas pelos criminosos: em pontos onde meninas e meninos são oferecidos aos viajantes e como rota de tráfico dos mesmos para outras regiões do país e para o exterior com finalidade de exploração sexual. O inspetor cita duas das principais dificuldades no combate à exploração sexual nas rodovias: a necessidade de flagrante e a volatilidade das pessoas envolvidas com o trânsito rodoviário. "Se não houver indícios de maus tratos, não existe crime. Pela lei, os adolescentes podem transitar livremente entre comarcas vizinhas, sem necessidade de autorização judicial. Assim, elas pegam carona numa boléia de caminhão e viajam de um estado para o outro", diz. Há ainda uma forte ligação entre a exploração, o tráfico nas fronteiras e as redes de narcotráfico. "Temos diversos casos de drogas apreendidas na região da Tríplice Fronteira (Brasil/Paraguai/Argentina), com meninas que saíram do Brasil para serem exploradas sexualmente e voltavam como ‘mula’ (transportando drogas)", conta.

Segundo Junie, a pesquisa foi encaminhada para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da exploração sexual. "Espero que dêem seguimento a esse trabalho e que ele possa orientar trabalhos mais específicos sobre o tema e motivar a elaboração de políticas públicas", diz. O trabalho, que aponta várias características que tornam ou não determinada rodovia propícia a essas práticas - tais como aspectos geográfico-econômicos, volume de tráfego, proximidade de fronteiras e rotas de turismo ou migração - pode ser adquirido por meio da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).

Luz sobre um tema antigo

Lauro Monteiro, presidente da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), diz que essa pesquisa chamou atenção para um problema que não é novo, todos sabem, mas para o qual não se vê uma resposta do governo com ações concretas. "A iniciativa desse policial também demonstra a falta de pesquisas oficiais referenciais para definição de políticas públicas", diz. As campanhas oficiais também costumam esquecer as estradas. "As campanhas sobre exploração sexual costumam enfocar apenas o turismo sexual nas capitais. Não falam do interior e das fronteiras", afirma Lauro. Entretanto, uma maior atenção sobre o problema pode mudar essa situação.

Um dos pontos da campanha do 18 de maio, este ano, será justamente a celebração de uma parceria com o setor de transportes por meio da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Na ocasião será entregue ao presidente Lula um manifesto, assinado por 30 mil motoristas, no qual eles assumem o compromisso de auxiliar o governo e a sociedade no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

A exploração sexual infanto-juvenil nas estradas é apenas uma das faces dessa tragédia no país, assim como a exploração sexual comercial em prostíbulos, o turismo sexual, entre outras. "Esse assunto é tão antigo quanto as outras temáticas. A visibilidade do sofrimento e vulnerabilidade dessas crianças é resultado de um esforço bastante antigo dos movimentos sociais", diz Neide Castanha, coordenadora do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

No mapa da violência sexual traçado pelo Cecria em 1997, já havia uma legenda sobre a prostituição nas estradas. Segundo Neide, com a criação da CPMI destinada a investigar as redes de exploração sexual contra crianças e adolescentes, em junho de 2003, houve uma maior sensibilização de diferentes setores da sociedade. O requerimento de criação dessa CPMI teve como base a pesquisa "Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil", realizada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e coordenada no Brasil, em 2002, pelo Cecria. A pesquisa revelou que o crime organizado utiliza no Brasil 241 rotas terrestres, marítimas e aéreas para explorar sexualmente mulheres, jovens e crianças. "A partir daí, a Polícia Federal Rodoviária assumiu o problema e deixou de fiscalizar somente cargas para fiscalizar vidas também", diz. Para Junie, no entanto, ainda é preciso conscientizar os policiais de que o problema é extremamente sério.

Outro fruto da mobilização da sociedade civil organizada é o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, criado em 2000, além do próprio Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, instituído por lei federal em 1999 – ambos coordenados pelo Comitê Nacional. Para Lauro Monteiro, a iniciativa do governo ocorreu em razão da pressão internacional, a partir do 1o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças Estocolmo, realizado em 1996, em Estocolmo, Suécia.

Em 2005, o 18 de Maio deverá ser estendido a toda América Latina e Caribe, com a finalidade de unificar o combate à exploração sexual nesses países. A data foi escolhida devido à história de Araceli Cabrera Sanches, que, em 18 de maio de 1973, quando tinha oito anos de idade, foi seqüestrada, drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família capixaba. Apesar da indignação e revolta que provocou na sociedade, o caso ficou impune.

O combate à impunidade é, até hoje, um dos maiores desafios apontados pelas organizações envolvidas com o tema. Lauro Monteiro destaca a falta de justiça especializada em crimes contra a criança. "Com polícia, varas e delegacias especializadas, os processos são muito mais rápidos". Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as varas criminais especializadas para a proteção de crianças e adolescentes deveriam estar presentes nos 494 municípios com população entre 50 e 500 mil habitantes. Mas em todo o país existem apenas seis. Destas, apenas as de Salvador, Recife e Fortaleza funcionam efetivamente, de acordo com relatório de Juan Miguel Petit, Relator Especial da ONU para a Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil, que visitou o Brasil em novembro de 2003.

"Nós avançamos muito no ponto de vista de dar visibilidade ao problema e de pressionar o governo para combatê-lo. Hoje, ninguém, nem sociedade nem governo, é indiferente à violência sexual, que é uma das mais graves violações dos direitos das crianças e dos adolescentes. Daí a termos medidas concretas existe uma grande distância, mas não podemos ser tomados pelo pessimismo", enfatiza Neide.

Mariana Loiola

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