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Contradições na implementação das ações de participação

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Rudá Ricci*1

1. Uma experiência inacabada

As políticas brasileiras de participação popular à gestão pública tiveram início nos anos 80. Inicialmente, muitas dessas experiências foram acolhidas com alto grau de desconfiança por parte de movimentos sociais e lideranças populares, por perceberem tentativas de cooptação política por parte de governantes. Neste momento a cultura política hegemônica nos mais diversos movimentos sociais que se estruturaram a partir do processo de liberalização ou redemocratização política por que passou o país, era declaradamente antiinstitucionalista. Ocorre que no final da década de 80 e início dos 90, muitas lideranças e assessores desses movimentos sociais começam a se eleger prefeitos. O discurso e a expectativa gerados por esta novidade política sugeriam a criação de “áreas ou zonas de gestão popular”. Nestas localidades, o compromisso tácito dos governantes seria a prioridade em investimentos sociais, em especial em áreas mais carentes, a transparência, a valorização dos mecanismos de apresentação de demandas coletivas e a participação direta da população na definição de ações públicas.

Nessas “zonas de gestão popular”, a profusão de iniciativas de natureza e radicalidade distintas e que eram denominadas pela mesma chancela de “gestão participativa” foi imensa: plenárias ou comunicações de prestação de contas, câmaras temáticas de negociação de políticas setoriais, plenárias de consultas, comissões paritárias, conselhos e orçamento participativo. O que havia em comum era a descentralização das ações governamentais e o alargamento do processo decisório (ao menos, em relação à consulta) de governo, envolvendo amplos segmentos sociais.

Duas décadas depois deste início, é possível sugerir que as duas iniciativas de participação popular mais legitimadas técnica e politicamente foram os conselhos setoriais e o orçamento participativo.

Em relação ao orçamento participativo, os diversos estudos sobre o tema[2] sugerem que o início desta experiência ocorreu durante a primeira gestão petista em Porto Alegre, em 1989. A partir de então, a experiência é acolhida pelo Diretório Nacional do PT e se espraia por diversos municípios. Em 1992, cerca de uma dezena de outros municípios, administrados pelo PT, tentaram iniciar o mesmo processo e, na gestão seguinte, de 1993/1996, em torno de trinta municípios realizaram a experiência. A partir desta última gestão, outros partidos resolvem também enfrentar o desafio e iniciam práticas semelhantes. As práticas que se autodenominaram Orçamento Participativo na gestão 1997/2000, envolveram 140 municípios no Brasil governados por forças políticas que podem ser chamadas de progressistas e se constituíram em espaços de participação de grande diversidade e pluralidade de atores da sociedade civil e de cidadãos.[3].

O levantamento realizado, em 2000, pelo Fórum Nacional de Participação Popular revelou que 50% dos municípios que praticavam o orçamento participativo (OP) eram dirigidos pelo PT, seguidos pelos municípios dirigidos pelo PSDB (13%), PSB (11%) e PMDB (9%).

Ocorre que nem mesmo no Partido dos Trabalhadores o OP é uma unanimidade, nem mesmo é implementado em todos municípios administrados pelo partido.

No caso dos conselhos setoriais, a experiência é mais difundida, em especial, porque é determinada em lei federal (no caso da saúde, educação, assistência social, criança e adolescente e emprego). As estruturas organizativas, grau de autonomia e deliberação, além de sua própria composição, são distintas entre si[4]. Novamente, não existe consenso em relação ao seu papel e estrutura ao longo do país, nem mesmo no interior das administrações cujos partidos majoritários inscreveram essas estruturas de gestão em seus programas. Os conselhos ou ficam subordinados a determinadas secretarias ou agregam-se ao redor de uma única secretaria ou coordenadoria (neste caso, na maioria das vezes, a Secretaria de Governo e/ou Coordenadoria de Participação Popular assumem a função coordenadora). Não há lugar determinado no organograma e fluxograma das gestões municipais e é comum que agendas das instâncias de governo subordinem as agendas dos conselhos. Os conselhos, enquanto estruturas híbridas (são instâncias de Estado e não de governo, e por este motivo são compostos por representação governamental, sociedade civil e, em alguns casos, usuários e concessionárias) sugerem uma estrutura distinta da organização burocrática, segmentada e especializada, para a tomada de decisões. Mas desde sua institucionalização, na Constituição de 1988, não ocorreu nenhum avanço político que caminhasse na direção de uma reforma administrativa desta natureza.

Este preâmbulo indica contradições e movimentos erráticos desses vinte anos de experiências de gestão participativa em nosso país. Explicam, em parte, porque raramente tais experiências ganharam maior abrangência, alimentando iniciativas regionais, estaduais ou nacional. Limitaram-se à iniciativas locais, com base territorial muito precisa. Paradoxalmente, vários países da América Latina, que não apresentam em sua história recente uma gama tão diversificada de iniciativas em gestão participativa de âmbito local, construíram recentemente estruturas de governança social macrorregionais e nacionais. Este é o caso do México. Também estaria neste rol a experiência colombiana da Red de Solidariedad. Os conselhos setoriais e o OP não chegaram a se tornar um substrato potente para expandir seus princípios para entes superiores do Poder Executivo brasileiro.

Nos próximos tópicos, procurarei fundamentar esta constatação a partir de três contradições centrais na implementação das ações públicas de participação popular no Brasil:

a) o baixo impacto das ações participativas sobre a cultura política nacional;

b) a tensão, não superada, entre a concepção dos modelos de participação em gestão pública adotados pelo Banco Mundial e os modelos focados no conceito de governança social ou democracia local;

c) a incapacidade das ações participativas superarem a fase de legitimação, impedindo-as de construírem uma nova institucionalidade pública.


2. Baixo impacto das ações participativas sobre a cultura política nacional

Os estudos mais recentes a respeito do impacto das ações participativas sobre a cultura política nacional denotam um projeto circunscrito a localidades muito específicas ou mesmo ao projeto de agrupamentos políticos ainda mais restritos. Nem mesmo no interior dos governos que implementam tais experiências existe consenso a respeito da sua relevância política. Ao contrário, a lógica clientelista em que as populações menos organizadas ou mais desprovidas de recursos simbólicos e materiais utilizam para negociar suas demandas imediatas parece diminuir a crença de muitos órgãos governamentais nas estratégias de cunho participacionista. A necessidade de resultados imediatos para dar resposta à disputa política crescente em regimes democráticos induz, muitas vezes, os gestores do poder executivo a desconfiarem dos mecanismos de participação direta na tomada de decisões e condução das políticas de governo. Outro fator normalmente ponderado por gestores públicos é o aumento de pressões políticas – e até mesmo o papel organizador – que nascem nos fóruns de participação popular institucionalizados, o que lhes parece desagregador e particularmente grave em situações de crise fiscal crônica. O realismo político que orienta tais observações compete com a crença nos instrumentos de participação popular e fecha um círculo vicioso da cultura política brasileira, envolvendo até mesmo os governos mais à esquerda ou fortemente comprometidos com organizações populares: a crise fiscal aumenta a necessidade de montagem de pautas governamentais muito restritas o que, por seu turno, privilegia demandas mais imediatas, dramáticas ou politicamente mais legitimadas e de maior impacto social, desarticulando e desacreditando os fóruns e estratégias de participação institucionalizada pelos governos. Moto contínuo, as demandas mais imediatas e dramáticas da sociedade ganham relevância em detrimento de mecanismos de participação popular ou de aprofundamento democrático.

Este círculo vicioso foi recentemente confirmado em pesquisa coordenada por Guillermo O’Donnell. Esta pesquisa, financiada pelo PNUD e intitulada “A Democracia na América Latina”, envolveu 18 países latino-americanos e revelou traços fundantes da cultura política de natureza clientelista. Para 56,3% dos entrevistados, o desenvolvimento econômico é mais importante que a democracia e 54,7% disseram que apoiariam um governo autoritário se resolvesse problemas econômicos. Os dados são ainda mais graves para o caso brasileiro quando comparamos as motivações que levam a essas convicções. Quando inquiridos sobre as orientações pessoais a respeito da democracia, o Paraguai apresenta o maior índice daqueles que se dizem “não democratas” (62,8%). Em seguida, seguem outros cinco países com índices que gravitam entre 30% e 38% de “não democratas”: Equador, Colômbia, Argentina, Chile e México.

O Brasil figuraria num terceiro bloco, em que quase metade dos entrevistados apresentou uma posição “ambivalente” a respeito da democracia, como é possível perceber na tabela apresentada a seguir:



































































































País

Democratas (%)

Ambivalentes

Não democratas

Argentina

51,1

17,0

31,8

Bolívia

34,9

35,6

29,6

Brasil

30,6

42,4

27,0

Colômbia

16,9

46,4

36,7

Costa Rica

53,8

36,6

9,5

Chile

40,7

27,7

31,6

Equador

23,1

38,6

38,3

El Salvador

35,0

45,1

19,9

Guatemala

42,0

36,0

22,0

Honduras

46,2

37,1

16,7

México

54,4

15,2

30,4

Nicarágua

38,7

45,7

15,6

Panamá

48,2

29,2

22,5

Paraguai

22,0

15,2

62,8

Peru

54,8

23,1

22,1

República Dominicana

48,3

33,7

18,0

Uruguai

71,3

14,1

14,6

Venezuela

54,5

29,5

15,9

Pelos destaques apresentados na tabela acima, é possível perceber que um país (Paraguai) apresenta uma cultura política com traços não democráticos mais declarados e evidentes. Outros, como Argentina e México, apresentam uma sociedade polarizada entre democratas e não democratas, embora com predominância do primeiro bloco (acima de 50%, em contraposição a 30% de não democratas).

O caso brasileiro é típico de uma cultura política ambivalente. Mesmo no caso de El Salvador e Nicarágua, outros dois países que acompanham o Brasil ao apresentarem maior índice de respostas ambivalentes, estes possuem uma prevalência de democratas sobre não democratas. Os brasileiros, contudo, apresentam um equilíbrio entre democratas e não democratas.

Este traço cultural, de natureza difusa, de baixa orientação para consolidação de valores políticos, parece contribuir para que as políticas participacionistas também configurem-se como ambivalentes por diversos governos que as adotam. Em outras palavras, a cultura política ambivalente sustentaria uma ação governamental pragmática, cautelosa, mesmo nos governos engajados na implementação de instrumentos institucionais de participação à sua gestão. Daí poderia surgir uma hipótese explicativa das ausência de definição do lugar dos conselhos setoriais ou mesmo do baixo grau de envolvimento do conjunto das instâncias de governo em várias experiências de OP no Brasil.

Uma outra pesquisa, realizada pelo Ibope no final de 2003, encomendada pelo Observatório da Educação e da Juventude (programa da organização não-governamental Ação Educativa) revela as nuanças desta cultura ambivalente. Embora 44% dos entrevistados acreditem que exercem poder político (contra 30% que não acreditam ter este poder), 56% afirmaram não desejar participar das práticas capazes de influenciar as políticas públicas. Quanto menor o grau de instrução, maior o índice de abstenção em relação à sensação de poder. Apenas 6% acreditam que o seu poder se exerce pela sua participação direta, além do voto. Os principais motivos para a não participação em práticas participacionistas foram: falta de informação sobre as práticas (35%), falta de tempo (26%) e práticas consideradas chatas (21%).

Com efeito, a maioria dos entrevistados demonstrou desconhecimento a respeito dos mecanismos de participação popular ou democracia participativa. Para a minoria informada, as práticas mais citadas foram: conselhos de educação, audiências públicas e orçamento participativo. Entre os mais interessados em participar, destacam-se os jovens entre 16 e 24 anos de idade (54% demonstraram interesse em participar de instrumentos participacionistas).

Outra pesquisa, coordenada por Leonardo Avritzer, em que se analisa o associativismo paulistano (setembro de 2003) revela a predominância de práticas associativas originariamente religiosas na maior metrópole brasileira, com presença marcante de demandas articuladas ao redor da moradia, saúde e defesa dos trabalhadores. Seus membros são, em sua maioria, mulheres de baixa renda e desfiliados sociais. A forma de atuação é predominantemente informal (94% dos participantes são voluntários). Dos paulistanos que participam com grande freqüência de agrupamentos ou instituições, 48% afirmam que não participam das principais decisões das mesmas. Quanto menor a escolaridade do participante, menos ele se sente participante da tomada de decisões. Quando questionados se a participação trouxe alguma mudança nas suas práticas e valores cotidianos, a maioria das respostas indicou a melhora da relação com o outro, a solidariedade e o amor ao próximo, além de benefícios espirituais. O aprendizado político não supera 5% das respostas (sendo mais destacado pelos homens com ensino superior).

A participação enquanto prática política, enfim, não se constitui como valor na cultura nacional. E este parece ser o cerne das contradições e impasses das práticas participacionistas no país. Esta é uma das conclusões a que chega a pesquisa “Projeto Metrópoles, Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana”, coordenada pela PUC-Minas, Ipardes, UFRGS, PUC-SP, Fase e UFRJ e que envolveu 1.540 conselheiros de Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Belém, São Paulo e Rio de Janeiro. A pesquisa revela que as diferenças de grau e forma de incorporação dos atores sociais em arenas de gestão participativa estão diretamente relacionadas às diferenças na proporção de pessoas habilitadas a participar do controle das políticas sociais, bem como pelas diferenças entre as culturas cívicas e a instituição e mobilização das esferas públicas[5].

Novamente, assim como nas pesquisas relatadas anteriormente, a grande maioria da população brasileira parece ainda distante dessas práticas. Com efeito, o perfil dos representantes da sociedade civil que participam dos conselhos municipais pesquisados sugere a predominância de cidadãos com maior grau de instrução e renda:

a) 51% possuem educação universitária e 33% ensino médio (Belo Horizonte apresenta indicadores próximos dos do Nordeste: 43% com ensino universitário, contra 60% no RJ e SP);

b) 65% recebem rendimentos superiores a 5 salários mínimos e 38% acima de 10 salários mínimos (em BH, 58% recebem mais de 5 salários mínimos, contra 86% em SP e 66% no RJ);

c) 56% possuem alto engajamento sociopolítico (associado ou filiado a associação ou organização social), sendo que BH está abaixo da média (47%), somente acima da situação de Recife (42%);

d) 60% participam de reuniões partidárias (BH está acima do índice do Sudeste, com 52%, sendo o segundo maior índice entre as capitais).


As práticas participacionistas em nosso país não conseguiram, até o momento, se espraiar pelo território nacional e nem mesmo enraizar-se na cultura política nacional. Nem mesmo nas localidades onde elas foram implementadas por governos locais parece ocorrer uma mudança significativa na cultura política local. O mesmo pode-se dizer sobre as convicções e práticas de todos órgãos de direção e gerenciamento das políticas públicas nas localidades onde esses mecanismos participacionistas foram implementados.

Fruto desta descontinuidade ou insuficiência no convencimento político, convivemos, no momento, com conceitos e objetivos distintos que estão sob o mesmo teto discursivo das práticas participacionistas. Muitas dessas práticas podem ser consideradas híbridas, porque incorporam concepção que, em alguns casos, são conflitantes. Vejamos duas das principais orientações teóricas e políticas que se disseminaram ao longo do território nacional nos últimos vinte anos.

2. Paradoxos e paradigmas da participação: competitividade urbana, sistemas de parceria ou governança social?

São várias as concepções que embasam as políticas de participação popular institucionalizadas no interior dos governos. No interior do gradiente de concepções, duas proposições polarizam entre si, por onde gravitam as demais. Estas duas concepções de gestão participativa, por sua vez, nem sempre são compreendidas como distintas pelos órgãos promotores e movimentos sociais que sustentam as políticas de cunho participacionista. Assim, esta seção procura distinguir os objetivos e metodologias que constituem a essência dessas duas orientações.

Comecemos pela proposição propagada pelo Banco Mundial ao longo dos anos 90 e que constituiu a cartilha do good governance. O Programa Parcerias para Redução da Pobreza (1996) do Banco Mundial/PNUD/Interamerican Foundation apresenta-se como a mais acabada ilustração deste paradigma e sustenta-se na crítica ao desenvolvimento centrado e promovido pelo Estado, em especial a partir da escalada da crise fiscal que se inicia nos anos 80.

A alternativa preferencial estaria assentada nas parcerias entre setores públicos e privados, em especial no que diz respeito ao plano local, em virtude de os municípios encontrarem maiores limitações financeiras. Daí a proposta de descentralização administrativa das políticas sociais, acompanhada da adoção de parcerias público-privado[6]. Esta proposição (descentralização administrativa, diminuição da burocracia pública e parcerias público-privado) passa a ser incluída como “bom governo” nos textos internacionais. Variantes desta proposição, como a do “modelo Barcelona”, reforçam o caráter empresarial do planejamento e desenvolvimento dos municípios, delimitando ou desconhecendo as relações de poder e os conflitos sociais que estruturam a vida urbana.

Uma segunda proposição, distinta da solução do Banco Mundial, é a que poderíamos denominar de Governança Democrática[7]. Trata-se da tentativa de radicalização dos mecanismos e instrumentos de democracia local. São padrões de interação entre governos locais e atores sociais que diagnosticam, definem diretrizes e coordenam ações públicas, a partir de fóruns híbridos, instalados na estrutura de Estado. São estruturas deliberativas e que superam a velha separação da teoria política moderna entre Estado e sociedade civil, na medida em que à sociedade civil é garantido assento no processo decisório de elaboração e condução de políticas públicas, redefinindo o que até então se definia como espaço de negociação entre governo e representações sociais. Não se trata, portanto, de parcerias, mas de novas estruturas de gestão instaladas no interior do Estado.

Em termos práticos, os conselhos setoriais de gestão garantidos na Constituição Federal de 1988 e em leis federais deram visibilidade a esta proposição. A adoção de estruturas de gestão descentralizadas (como é o caso de subprefeituras criadas em diversos centros metropolitanos), também estaria filiada a esta intenção. Na cidade de São Paulo, a proposta de criação das subprefeituras articulou a descentralização administrativa com a criação de instâncias de participação territorial da população. Com efeito, a Lei Orgânica do Município, na seção VIII (artigos 54 e 55), sugere a criação de Conselho de Representantes dos territórios estabelecidos para jurisdição das subprefeituras[8]:


Art. 54 – A cada área administrativa do Município, a ser definida em lei corresponderá um Conselho de Representantes, cujos membros serão eleitos na forma estabelecida na referida legislação.

Art. 55 – Aos Conselhos de Representantes compete, além do estabelecido em lei, as seguintes atribuições:

I – participar, em nível local, do processo de Planejamento Municipal e em especial da elaboração das propostas de diretrizes orçamentárias e do orçamento municipal bem como do Plano Diretor e das respectivas revisões;

II – participar, em nível local, da fiscalização da execução do orçamento e dos demais atos da administração municipal;

III – encaminhar representações ao Executivo e à Câmara Municipal, a respeito de questões relacionadas com o interesse da população local.


Outro tema que aparece como elemento fundante da Governaça Social é a intersetorialidade. Trata-se da adoção de uma estrutura coerente com a descentralização administrativa e valorização da cultura e identidade territoriais. Se a base de elaboração de políticas públicas passa a ser o território, as diversas instâncias de governo necessitam produzir políticas intersetoriais de natureza interdisciplinar ou, na prática, perpetuam o foco na própria estrutura gerencial e nas ações fragmentadas de cada secretaria. No Brasil, algumas iniciativas de reforma administrativa, como as realizadas em Minas Gerais (mais especificamente, em Belo Horizonte e Juiz de Fora), procuraram criar uma estrutura gerencial superior de natureza intersetorial (como no caso da criação de Secretaria de Políticas Sociais). Contudo, nem sempre tais iniciativas foram acompanhadas da criação de estruturas de gestão participativa, também com a mesma natureza intersetorial.

Assim, as inúmeras iniciativas que compõem este paradigma de gestão participacionista criaram mecanismos parciais ou incompletos, até o momento[9].

As experiências de governança social demandam um novo perfil de gestor público, indicando novas competências, tanto para lideranças sociais, quanto para gestores estatais. Esta parece ser uma característica nem sempre observada. Os novos atributos de gestão poderiam ser assim listados:

a) Capacidade de gerir e manipular informações. Sem informação técnica, não se decide, nem se elabora, mas apenas se opina. A capacidade de decidir em ações públicas está diretamente relacionada às informações que instruem a definição de prioridade ou processos seletivos de demandas;

b) Capacidade de elaboração de ações e políticas públicas. A mera apresentação de demandas não garante sua conquista ou a superação de realidades marcadas pela carência (que, por sua vez, restringem a liberdade política e social das populações envolvidas nesta condição). A elaboração de ações públicas exige um conhecimento técnico que perpassa o entendimento da execução da peça orçamentária, os instrumentos e mecanismos de controle de sua execução, a utilização correta dos recursos materiais e simbólicos para sua execução, a compreensão dos escaninhos burocráticos e políticos que objetivam as ações públicas, a metodologia e o cronograma de execução;

c) Capacidade de monitoramento e avaliação de resultados;

d) Capacidade de articulação política. A articulação política no interior das instâncias de governo (incluindo a representação legislativa) é tão significativa para que as políticas públicas definidas sejam realizadas, quanto a capacidade de representação e articulação das lideranças sociais instaladas nas instâncias de governança social com sua base social. É comum a agenda de governo envolver e subordinar a agenda das instâncias híbridas de gestão participativa o que leva, invariavelmente, à perda de representatividade e comunicação entre lideranças sociais e sua base de representação.

Um inventário das práticas participacionistas em nosso país revela movimentos erráticos ou até mesmo contraditórios (ou incompletos). Intenções políticas e estratégias distintas parecem criar um amálgama conceitual, confundindo lideranças sociais e instalando competição entre estruturas de gestão conflitantes.

Tendo como referência o paradigma da Governança Social descrito acima, apresentamos na próxima seção deste ensaio uma indicação do que poderia ser compreendido como uma tipologia das fases de sua implantação. Como toda tipologia, a sugestão apresentada não se apresenta como um roteiro a ser seguido em termos práticos, mas apenas um guia de interpretação do encadeamento de ações e objetivos para instalação de sistemas de governança social. Trata-se, enfim, de um roteiro teórico, abstrato, que objetiva situar uma metodologia de desenvolvimento de instâncias participacionistas cuja intenção é construir a institucionalidade pública que efetive o empoderamento social.

3. Em busca da construção de uma nova perspectiva

A tipologia sugerida apoia-se em três etapas de implantação: a) fase de legitimação; b) fase de efetividade; c) fase de institucionalização da nova cultura política de empoderamento social. Vejamos de perto cada uma dessas etapas:

• Fase de Legitimação: trata-se de uma fase inicial que pressupõe a legitimação da dinâmica de gestão participativa como processo decisório de governo e como locus de apresentação de demandas sociais e deliberação participativa das ações públicas. Assim, nessa etapa procura-se a legitimação no interior do governo, o reconhecimento do governo e a incorporação dos processos de participação na dinâmica gerencial das secretarias e instâncias da gestão municipal, assim como se busca a legitimação externa ou social, revelada pela capacidade de mobilização social e representatividade territorial dos delegados e representantes (conselheiros, entre outros).

Em princípio, essa fase exige grande capacidade de convencimento e mobilização do órgão dirigente ou coordenador do instrumento ou mecanismo de gestão participativa, correndo-se o risco de perda de unidade política, em virtude da cristalização de práticas voluntaristas.

• Fase de Efetividade: consolidada a legitimação interna e externa, provocando o início do envolvimento político das instâncias de governo na dinâmica participacionista e o enraizamento desse sistema decisório e participativo na malha territorial, surgem novos objetivos visando à consolidação do processo de descentralização administrativa, aumento da participação das comunidades no processo de gestão e propiciando a discussão do desenvolvimento do território em sua totalidade.

É possível destacar três objetivos que definem essa etapa de efetividade da dinâmica participacionista:

a) Construção de programas e práticas intersetoriais, envolvendo as diversas instâncias de governo na formulação de projetos de desenvolvimento de territórios, cujo foco não é mais a própria lógica da área ou secretaria, mas a demanda e estratégias comunitárias ou territoriais;

b) Criação de um sistema de comunicação social e de planejamento que envolva e integre comunidades de diversos territórios e instâncias governamentais;

c) Criação de práticas de empoderamento social (estruturas estatais participativas, descentralizadas, articuladas em rede, de elaboração e gestão de políticas públicas), que se articulam ao redor de um sistema de governança social.


Os três objetivos criam as bases de uma nova institucionalidade pública e têm como eixo a integração da sociedade civil e governo municipal na construção de negociações e gestão de políticas públicas.

• Fase de Institucionalização da nova cultura política: criadas as bases da nova institucionalidade pública, trata-se de consolidar (ou internalizar) uma nova cultura política que sustente a sua estabilidade. No caso, a dinâmica participacionista sustentaria a superação da estrutura burocrática de organização estatal por um outro sistema de gestão, de natureza híbrida (instâncias estatais em que agentes de governo e sociedade civil estariam assentados para gerenciar as políticas públicas). Essa nova institucionalidade rompe com a separação moderna entre sociedade civil e Estado. Faz parte dessa possibilidade a construção de sistemas de monitoramento participativo, com base territorial e articulados em rede, da execução das políticas públicas decididas anteriormente. É nesse momento que é possível vislumbrar a superação da cultura corporativa/localista (apoiada nas demandas difusas de cada território por construção de equipamentos e obras) para a elaboração estratégica de desenvolvimento do município a partir da identificação das intenções políticas de desenvolvimento de cada território.

É possível, através da tipologia apresentada acima, identificar o estágio em que nos encontramos na implementação das práticas participacionistas. Esboçamos, quando muito, o ingresso na fase de efetividade. É possível perceber, ainda, que as práticas participacionistas em nosso país, mesmo não tendo superado a fase de mera legitimação política, estão circunscritas quase que exclusivamente ao âmbito local e municipal. Não chegaram a causar impacto ou reflexo nas práticas de gestão pública de entes superiores da política nacional. Nem mesmo os partidos que instalaram e gerenciam sistemas de governança social em diversos municípios brasileiros parecem adotá-los como compromissos políticos quando instalados nos governos estaduais e federal. Este é o caso específico do PT e do PSDB.

Em outras palavras, as práticas participacionistas são, ainda, marginais na cultura política nacional. Mesmo os partidos políticos mais comprometidos historicamente com tais práticas parecem vacilar na sua ousadia administrativa quando o controle político sobre instrumentos de gerenciamento são mais frágeis e exigem maiores acordos entre forças políticas. A cultura política ambivalente, enfim, parece contribuir para a reorientação programática dos partidos políticos mais inovadores do país, que buscam legitimar-se a partir de um discurso e programas hegemonicamente difusos. A ousadia política, nas instâncias superiores de gestão, cede terreno à capacidade gerencial da crônica crise fiscal que assola o país desde finais da década de 70 do século passado.

4. Impasses e perspectivas

À guisa de uma conclusão, é possível eleger três situações emblemáticas do estágio de desenvolvimento e implementação de ações de natureza participacionista em nosso país. São elas:

• Não superamos a fase de mobilização social, característica dos movimentos sociais que lutaram pela democratização do país ao longo dos anos 80 do século passado e que inscreveram várias instrumentos de governança social na Constituição de 1988 e Leis Orgânicas Municipais. A fase de mobilização parece não evoluir para o que poderíamos denominar de fase de organização social. As instâncias de operacionalização do OP e os conselhos setoriais espalhados pelo país parecem sofrer sobremaneira com esta insuficiência. Uma hipótese explicativa deste fenômeno é a ausência de uma concepção mais acabada de gestão participativa, indicando uma nova engenharia política que induza à reforma administrativa de natureza participacionista, desmontando as estruturas burocráticas de gestão;

• No caso das lideranças sociais e populares, maiores interessados na instalação de sistemas de governança social, parecem persistir ou prevalecer os referenciais teórico-políticos de uma cultura marxista-cristã (comunitarista, antiinstitucionalista, mobilizadora) que cimentou vários movimentos sociais forjados nos anos 80. Esta fusão entre um marxista estigmatizado e escatológico com traços de cristianismo voluntarista contribui para uma forte empatia popular nas campanhas de massa, mas diminui as referências para elaboração de estratégias e estruturas de poder inovadores. O ressentimento político é, assim, alimentado permanentemente e passa a ser acompanhado de perto pelo sentimento de impotência que, por sua vez, realimenta o antiinstitucionalismo e o voluntarismo político. Assim, o círculo vicioso gravita ao redor da mobilização social permanente;

• Contudo é possível iniciar um processo de aprofundamento e sistematização das experiências de gestão participativa existentes, difundidas e implementadas de maneira desarticulada e desconexa ao longo do país. A sistematização desta pauta poderia criar uma cultura política mais complexa e madura deste campo ideológico. A partir daí, um outro passo, mais ousado, poderia ser tomado: a criação de uma rede de Escolas da Cidadania (a exemplo das Casas de Cidadania, dos EUA, nos anos 50, que fundamentaram o movimento anti-racista no sul do país), que procurassem criar espaços de reflexão sobre a nova institucionalidade pública a ser sedimentada no país, aumentando a capacidade de gestão social de lideranças sociais. Finalmente, esta rede de escolas da cidadania poderia desencadear a institucionalização de práticas participacionistas no território nacional através de uma Lei de Responsabilidade Social. Afinal, trata-se de um diálogo com uma cultura política arraigada em nosso país. Uma cultura peculiar, instável, insegura, indecisa, pendular[10]. Toda cultura ambivalente, enfim, não consegue fixar uma convicção. Por se tratar do dilema do copo pela metade, que depende do ponto de referência do observador, este traço cultural brasileiro instrui uma disputa política constante. E é exatamente deste ponto que devemos partir para consolidarmos a democracia em nosso país.

* Rudá Ricci é sociólogo, professor da PUC-MG e da Unincor, coordenador do Instituto Cultiva e membro do Fórum Mineiro de Participação Popular.

[1] Versão da apresentação realizada no seminário Aprofundando os Aspectos da Participação, organizado pelo Fórum Mineiro de Participação Popular e promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte, Projeto Democracia Participativa/UFMG e Instituto Cultiva, realizado na UFMG, em 23 de abril de 2004; e da exposição realizada no Seminário de Abertura da 4ª Semana Social da CNBB, intitulado Mutirão por um Novo Brasil, ocorrido em Brasília, entre 6 e 9 de maio de 2004.

[2] Ver, entre outros, RIBEIRO, Ana Clara & GRAZIA, Grazia de. Experiências de Orçamento Participativo no Brasil: período de 1997 a 2000. Petrópolis: Vozes, 2003; GENRO, Tarso & SOUZA, Ubiratan. Orçamento Participativo: a experiência de Porto Alegre. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997; SÁNCHEZ, Félix. Orçamento Participativo: teoria e prática. São Paulo: Cortez Editora, 2002; DUTRA, Olívio & BENEVIDES, Maria Victoria. Orçamento Participativo e Socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

[3] RIBEIRO, Ana Clara & GRAZIA, Grazia de. Experiências de Orçamento Participativo no Brasil, op. cit., página 13.

[4] Para uma análise abrangente das experiências de conselhos setoriais e perfil dos conselheiros no país, ver SANTOS Jr., Orlando Alves et all. “Democracia e Gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil”, In SANTOS Jr. , Orlando Alves et all. Governança Democrática e Poder Local. Rio de Janeiro: REVAN/Observatório das Metrópoles, 2004.

[5] Ver SANTOS Jr., Orlando Alves et all. “Democracia e Gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil”, In SANTOS Jr. , Orlando Alves et all. Governança Democrática e Poder Local. Rio de Janeiro: REVAN/Observatório das Metrópoles, 2004

[6] Ver SANTOS Jr., Orlando Alves. Democracia e Governo Local: dilemas da reforma municipal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan/Observatório das Metrópoles, 2001.

[7] O conceito de governança ficou consagrado na literatura especializada como sendo a capacidade gerencial ou capacidade dos governos gerarem respostas às demandas sociais. Esta competência técnica de governar, na proposta de Governança Social ou Governança Democrática incorpora os mecanismos de gestão participativa, envolvendo as populações locais na elaboração, monitoramento e, em alguns casos, execução de políticas públicas. Alguns autores denominam tais iniciativas de democracia participativa. Entretanto, esta última denominação nem sempre expressa uma nova estrutura gerencial das políticas públicas e mais um sistema de controle social sobre instâncias governamentais.

[8] Em termos práticos, a instalação do Conselho de Representantes gerou grandes controvérsias entre as forças políticas paulistanas ao longo da gestão Marta Suplicy. À título de ilustração, a tensão política, atribuições e o lugar dos conselhos setoriais e os conselhos de representantes pareciam uma eterna fonte de indecisões na Câmara Municipal e entre as correntes governistas. Algumas propostas de regulamentação apresentadas no legislativo municipal procuraram instalar certa conciliação: a) garantir a participação dos conselhos setoriais em cada conselho de representantes; b) um representante de cada conselho setorial criado por força de lei federal e um representante dos demais conselhos; c) criação de Fórum Regional Temático, como instância de consulta dos conselhos de representantes. Nenhuma dessas propostas, contudo, superava os conflitos de atribuição e nos processos decisórios entre os conselhos setoriais e de representantes e, destes, com as secretarias de governo.

[9] Recentemente, muitas linhas de pesquisa transnacionais procuraram classificar e analisar as diversas experimentações de governança social. Ver, entre outros, SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002 (onde analisa experiências brasileiras, indianas, sul-africanas, colombianas, portuguesas e moçambicanas) e OAKLEY, Peter & CLAYTON, Andrew. Monitoramento e Avaliação do Empoderamento. São Paulo: Pólis, 2003 (onde são analisadas as experiências de Honduras, Bangladesh, Tanzânia, Nicarágua, Egito, Etiópia e Sudão). Vale ressaltar que em quase a totalidade das experiências, o papel das mulheres na organização e manutenção dos princípios participacionistas aparece como ponto em comum.

[10] Boaventura Santos propõe a criação de um novo contrato social, que procure impedir que a economia de mercado se transforme numa sociedade de mercado, gerando um novo sistema público. Adverte, contudo, que o mundo globalizado assenta-se em sociedades politicamente democráticas, mas socialmente fascistas, porque as pessoas não são cidadãs, porque as diferenças de poder são tão grandes que os que têm mais poder dominam a vida da maioria da sociedade. O Brasil, afirma, possui fortes características de uma sociedade fascista e as organizações populares conseguem alterar pouco esta realidade, porque não conseguem efetivar contratos sociais onde os não organizados estão inscritos. Ver sua entrevista em GOMIDE, Denise (orga.). Governo e sociedade civil: um debate sobre espaços públicos. São Paulo: Peirópolis/Abong, 2003.






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