Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Diego tem 13 anos. Filho de um guia turístico e uma doméstica, é criado pela avó, que trabalha na roça e ainda cuida de outros cinco netos. Agitado, não parava quieto na escola, onde gritava e brigava com os colegas. E muitas vezes perdia as aulas para poder tomar conta dos irmãos menores. Quando começou a freqüentar a Associação Grãos de Luz e Griô, Diego era o que normalmente se chama de "criança difícil". Mas era também um menino alegre e inteligente. E adorava capoeira. Quando a educadora teve a idéia de incluir cantigas de capoeira nas rodas que abriam as atividades, ele começou a se integrar. Cantava, ensinava as músicas que conhecia e participava das brincadeiras. Deixou de fazer bagunça e passou a se concentrar.
A realidade de Diego não é muito diferente da de outros meninos e meninas do município baiano de Lençóis. Boa parte dos habitantes tem ascendência indígena ou africana e sobrevive com uma renda modesta. Nesse cenário, gente das próprias comunidades iniciou, em 1993, um trabalho de assistência às crianças, principalmente no que dizia respeito à alimentação. Quatro anos depois, o trabalho ganhou a forma de um projeto pedagógico, com apoio de educadores, transformando-se na associação – cujas atividades procuram valorizar a cultural popular, resgatando e preservando as tradições orais. Por esse trabalho, a Grãos de Luz e Griô conquistou o Prêmio Itaú-Unicef Educação e Participação 2003, superando outros 1.834 programas desenvolvidos por organizações não-governamentais de todo o país.
Uma das figuras mais representativas desse trabalho é a do griô, que dá nome a um dos projetos. Trata-se de um educador gentil e brincalhão inspirado num personagem nômade da cultura africana que vivia circulando entre as comunidades, compartilhando seu conhecimento e sua sabedoria. Um contador de histórias que, como informa a associação, chega de surpresa, reverenciando os velhos, brincando de roda com as crianças, envolvendo mães, pais, educadores.
"Os griôs seriam os cantadores populares, as pessoas da tradição oral", explica Lillian Pacheco, coordenadora de projetos da associação. "A tradição oral de Lençóis foi se perdendo, muitos grupos culturais acabaram morrendo. Hoje existe apenas um grupo cultural aqui", lamenta. Segundo Lillian, o Projeto Griô não criou uma tradição, pois ela já existia, mas estabeleceu um forte vínculo entre jovens e velhos.
A cada início de ano, os educadores escolhem um tema – o deste ano é "Educação Afro-Brasileira" – e depois o estudam em conjunto com as crianças nas oficinas. E assim são criados cordéis, músicas e danças. Com todo esse repertório preparado, começa a ser desenvolvida uma espécie de "aula-espetáculo". Segundo a coordenadora, é como as apresentações do artista popular nordestino Antônio Nóbrega, que se vale da expressão corporal e musical para transmitir mensagens e contar casos. "No nosso caso, a gente chama de aula vivencial, porque expressa situações vividas por eles", diz.
O griô sai, então, para levar essa aula às comunidades. Normalmente vai acompanhado de um cantador popular e aparece de surpresa. As crianças que já o conhecem correm atrás dele quando notam sua presença. Faz-se uma roda, começa a vivência e a expressão artística do que aprenderam – e apreenderam – meninos e meninas. E um dos resultados é que os professores das comunidades também se encantam e resolvem se inscrever para participar das oficinas, que também são levadas às escolas da região.
A Grãos de Luz e Griô mantém ainda um convênio com a Universidade de Feira de Santana (UEFS), para cursos de didática – até o final deste ano, cerca de 200 pessoas deverão ter participado. O objetivo, porém, não é substituir a responsabilidade do poder público. "A gente oferece apenas educação complementar e não trabalha nas áreas de assistência ou de saúde", destaca Lillian. A proposta, segundo informa a associação, é "criar referências para contribuir com a evolução de valores e práticas de ensino e aprendizagem da educação pública da região".
"O nosso logotipo [desenhado por uma criança de dez anos, o menino Valdeci] ilustra bem o que a gente faz: uma rodinha que se expande para outra e mais outra. Todo o nosso trabalho é sistematizado para seguir adiante, numa troca permanente com as outras pessoas", diz a coordenadora, que percebe resultados não apenas nas crianças e nos adolescentes, mas também nos educadores. "Acho que a gente já tem uma mudança no sistema educacional, na prática do professor, na sua auto-estima, na compreensão do seu lugar na comunidade. Os professores, hoje, sabem articular suas práticas pedagógicas. E foi um processo de aprendizagem conjunta, essa é a grande conquista. Porque a gente aprende junto muitas coisas. Estamos dentro da roda, aprendendo com as crianças e a comunidade", analisa.
Lillian acha fundamental que os "doutores", os intelectuais, compreendam a linguagem e o saber populares e dêem o justo valor ao conhecimento que é transmitido de geração para geração. "Aqui em Lençóis uma professora já me disse: 'Eu sou da roça e tenho muito orgulho'. É uma grande mudança", atesta. "E mostra a consciência do nosso valor, da nossa linguagem. A gente não precisa ser igual ao que está na televisão, na mídia".
De fato, basta a compreensão, por exemplo, dos anseios modestos de gente como Diego – aquele menino agitado e alegre citado no início desta reportagem. Aos dez anos, lhe perguntaram: "O que você quer ser quando crescer?". E ele respondeu: "Gente".
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