Autor original: Fausto Rêgo
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"Municípios como Lábrea, no sul do Amazonas, estão vendo uma queda acelerada de sua produção de castanha pela expulsão de moradores e destruição das áreas de coleta por madeireiros e grileiros vindos de Rondônia. Essa cena ilustra um processo que se concentra em três estados (Mato Grosso, Pará e Rondônia), mas cujo descontrole se irradia para os estados vizinhos". O alerta é do cientista social José Arnaldo de Oliveira, coordenador de Comunicação e Campanhas da Rede GTA – Grupo de Trabalho Amazônico. Diante dos dados recentes sobre o desmatamento na Amazônia, que mostram que não houve regressão no processo de destruição da floresta, ele faz uma análise das causas e conseqüências dessa situação, que é particularmente delicada no estado de Mato Grosso. "O poder público nos municípios do interior é vulnerável e muitos setores dos governos estaduais das áreas mais críticas estão envolvidos com os atores desse processo, sem considerar os direitos de moradores tradicionais", afirma. "O governo nacional, por outro lado, possui responsabilidade por praticamente a metade do território amazônico, formado por terras públicas, e nunca gerenciou adequadamente esse patrimônio. A ausência do Estado estimula a grilagem de terras, a especulação imobiliária, o trabalho escravo, a violência e a corrupção, que são as molas do desmatamento".
A preocupação com esse ecossistema foi levada ao Fórum de Florestas da Organização das Nações Unidas, encerrado no dia 14 de maio, em Genebra, Suíça. Mas o evento, segundo Arnaldo, não despertou o interesse da sociedade brasileira, talvez por estar ainda em uma fase intermediária – um acordo internacional sobre o tema é uma possibilidade, mas apenas para o próximo ano. "Se os acordos internacionais orientarem os países para a valorização do bom uso dos ecossistemas, inclusive recuperando aqueles já devastados, a luta cotidiana das comunidades que vivem nos locais ainda conservados será mais fácil", observa.
Rets - O governo federal anunciou dados do desmatamento na Amazônia no ano passado e o que se verifica é que a taxa não diminuiu. Que conseqüências já podem ser percebidas?
José Arnaldo de Oliveira - As conseqüências mais graves do desmatamento atingem as comunidades locais, que são atingidas tanto por fatores sociais como a violência como por fatores ambientais como a degradação dos recursos naturais que utilizam. Esse processo é também determinante no contexto econômico, pois municípios como Lábrea, no sul do Amazonas, estão vendo uma queda acelerada de sua produção de castanha pela expulsão de moradores e destruição das áreas de coleta por madeireiros e grileiros vindos de Rondônia. Essa cena ilustra um processo que se concentra em três estados (Mato Grosso, Pará e Rondônia), mas cujo descontrole se irradia para os estados vizinhos. O desmatamento é a imagem mais concreta da perda da diversidade ambiental e cultural da Amazônia, cuja função ambiental para o mundo inteiro é essencial. Ao nível mais profundo, sabemos que um aumento de partículas suspensas no ar pelas queimadas pode mudar até mesmo o tamanho das gotas de chuva e, portanto, todo o ciclo hidrológico da região, com efeitos imprevisíveis sobre o clima do Centro-Oeste e do restante do país. O foco de trabalho da Rede GTA, voltado para as comunidades rurais, mestiças e indígenas dos nove estados amazônicos, coloca em primeiro plano o drama de moradores atingidos em cheio pela injustiça dos crimes fundiários e de atividades predatórias de desenvolvimento.
Rets - Onde o poder público está falhando?
José Arnaldo de Oliveira - Os dados do desmatamento são referentes ao período entre julho de 2002 e julho de 2003, mas nada indica que estejamos ainda reduzindo esse ritmo. Em taxas percentuais, o índice subiu 2%, enquanto no período semelhante de 2001 a 2002 havia sido elevado em 40%. O fato é que o financiamento desse avanço sobre a floresta não está vindo das agências de governo, mas de conexões do crime organizado, por um lado, e pelo comércio internacional, por outro. O poder público nos municípios do interior é vulnerável e muitos setores dos governos estaduais das áreas mais críticas estão envolvidos com os atores desse processo, sem considerar os direitos de moradores tradicionais. O governo nacional, por outro lado, possui responsabilidade por praticamente a metade do território amazônico, formado por terras públicas, e nunca gerenciou adequadamente esse patrimônio. A ausência do Estado estimulando a grilagem de terras, a especulação imobiliária, o trabalho escravo, a violência e a corrupção, que são as molas do desmatamento.
Rets - O levantamento constatou que as áreas mais atingidas estão no estado de Mato Grosso, onde dois terços dos desmatamentos são clandestinos. Este é justamente um dos três estados onde foi firmado entre os governos estadual e federal um pacto para definição de competências de fiscalização. Como se pode explicar esse resultado?
José Arnaldo de Oliveira - As estimativas sobre o Mato Grosso são de um aumento na ordem de 133% e pode ser ainda pior neste ano. A explicação para isso está na esfera política, onde o atual governador é, ao mesmo tempo, o maior produtor de soja do mundo. Tanto a Maggi, que pode ser considerada uma empresa brasileira, como a Cargill, que instalou um terminal irregular na foz do rio Tapajós, estão voltadas para um mercado externo que, sem regras ambientais, representa a verdadeira internacionalização da Amazônia. O sistema de monitoramento da Fundação Estadual de Meio Ambiente, nesse estado, foi bastante isolado do aparelho governamental e os estudos de zoneamento econômico-ecológico foram engavetados. Todo o aparato estatal foi colocado a serviço da monocultura, criando uma dinâmica que autoriza deputados e latifundiários ao extremo de ameaçar com cárcere privado uma diretora federal e um prefeito, como aconteceu no ano passado em Guarantã do Norte, para anular qualquer tentativa de ordenamento territorial – assim como no Pará existem policiais militares aterrorizando assentados de projetos sustentáveis em Anapu, ou em Rondônia os órgãos governamentais cruzando os braços diante da invasão de áreas indígenas por garimpeiros. Existe, em amplos setores, uma cultura reacionária contra as idéias de desenvolvimento sustentável e direitos de comunidades tradicionais e indígenas que precisa ser convencida ou anulada.
Rets - O governo federal anunciou algumas medidas para conter o desmatamento, entre elas o investimento em unidades de conservação e um maior rigor na fiscalização. Acredita que essas medidas serão suficientes e eficazes?
José Arnaldo de Oliveira - Dependem da efetiva integração entre as diversas escalas do governo e também de sua habilidade em envolver amplos setores da sociedade civil e de governos municipais e estaduais comprometidos com um novo modelo de desenvolvimento. O foco no ordenamento territorial e nas medidas integradas de controle, aliados com o fomento de atividades sustentáveis e a recuperação de áreas degradadas (um quarto dos 653 mil quilômetros quadrados desmatados até agora está abandonado) está correto no plano do grupo interministerial permanente contra o problema. A questão é a implementação, pois a capacidade governamental de um país que deve quase um trilhão de reais é muito limitada. Nesse sentido, o apoio das Forças Armadas é uma medida necessária. Outro aspecto fundamental é o envolvimento da sociedade e de seus movimentos socioambientais. A rodovia entre Cuiabá e Santarém (BR 163), que deve ser pavimentada por um consórcio privado de produtores, gerou um fórum social com propostas concretas a serem tomadas antes da obra, para garantir direitos comunitários. Entre outros casos, temos também a nova lei de concessões de florestas públicas, debatida com centenas de entidades, que acabaram retirando do texto as medidas que beneficiavam grileiros de terras. Boa parte das medidas vai enfrentar a resistência de setores conservadores ou predatórios, que devem ser ouvidos também, mas com a firmeza do propósito de eliminar ou controlar o desmatamento da Amazônia.
Rets - Que preocupações em relação à Amazônia foram levadas ao Fórum de Florestas das Nações Unidas, em Genebra?
José Arnaldo de Oliveira - O evento das Nações Unidas não despertou grande interesse na sociedade brasileira, certamente por estar ainda em processo de debates que não geram ainda um acordo internacional sobre o tema. Surgido em 1992 e passando por fases como painel e depois como fórum, tem seu último ano a partir desse encontro, para em 2005 deliberar sobre o surgimento ou não de um novo acordo internacional. Em todos os grandes temas ambientais a Amazônia de nosso continente ocupa um papel destacado por seus números colossais: praticamente a metade das espécies vivas do planeta, um terço da água doce, uma função climática cada vez mais comprovada. Os padrões de produção e consumo na maior parte do mundo, principalmente nas cidades, esgotam os recursos naturais em uma velocidade insustentável. Se os acordos internacionais orientarem os países para a valorização do bom uso dos ecossistemas, inclusive recuperando aqueles já devastados, a luta cotidiana das comunidades que vivem nos locais ainda conservados será mais fácil. A Amazônia, atualmente, não tem apenas comunidades ameaçadas, mas exemplos de gestão responsável dos recursos naturais e casos de êxito, inclusive na produção e até mesmo exportação de produtos originários de organizações com justiça social e conservação ambiental.
Rets - Quanto à situação brasileira, que análise faria da política ambiental que vem sendo praticada e dos seus resultados?
José Arnaldo de Oliveira - A proposta de transversalidade adotada pelo governo Lula e defendida pela ministra Marina Silva apresenta alguns resultados interessantes, como a revisão dos créditos de agências públicas de financiamento, a criação de um novo modelo de reforma agrária na Amazônia, o plano elaborado pelo grupo interministerial e os debates sobre propriedade intelectual envolvendo o aspecto dos conhecimentos populares e tradicionais. Os avanços, entretanto, somente poderão ser avaliados depois dos dados de desmatamento de 2003-2004, que devem surgir no final deste ano ou no início de 2005. Cabe ressaltar que ainda há um conflito entre a âncora comercial da economia brasileira, que hoje está baseada na exportação de recursos naturais a qualquer custo, e as preocupações com a sustentabilidade ambiental, social e econômica. Por outro lado, as políticas ambientais sofrem o mesmo mal que atinge todas as outras políticas, ou seja, a vulnerabilidade econômica criada pelo esgotamento da capacidade de investimento do Estado. Essa situação estimula o discurso sobre os entraves ambientais, que nada mais são do que as leis existentes, e alimenta o descaso com terras públicas, áreas indígenas e unidades de conservação que formam os pontos de resistência contra a devastação da floresta basta ver os mapas produzidos pelo Ministério do Meio Ambiente. A aprovação de leis como a de acesso aos recursos genéticos, de concessões florestais, de estímulo a fontes sustentáveis de energia e para certificação da origem social e ambiental de produtos, sempre com forte participação social, é uma necessidade importante para o futuro do país. Também é preciso lembrar que é a produção familiar que mais gera empregos e alimentos para a população, investindo em crédito, pesquisa e assistência para esse setor no contexto da sustentabilidade. A política ambiental precisa aumentar sua integração endógena no governo central e entre os diversos níveis federativos. O caso oposto é mostrado pela rotulagem dos alimentos transgênicos, em que os laboratórios públicos não são suficientes para garantir a segurança e a escolha dos produtos comprados pelos cidadãos. Em última análise, a política ambiental deve garantir não apenas os direitos de outras espécies vivas e de comunidades com modos de vida importantes para a conservação da natureza. Ela cuida do patrimônio do meio ambiente e da diversidade cultural associada ao meio, evitando que poucos se apropriem do que é parte da própria cidadania brasileira.
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