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Círculo vicioso

Autor original: Fausto Rêgo

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Círculo vicioso
Luis Felipe Florez/Rits

No dia 21 de maio, a Câmara dos Deputados remeteu ao Senado Federal a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. Uma vez aprovada, ela consolidará a ratificação do Brasil ao documento, que foi assinado por 118 países e estabelece uma série de compromissos, entre eles o aumento de preços, a realização de campanhas educativas, a proibição total da publicidade de tabaco e do patrocínio da indústria ou seus revendedores e medidas restritivas à venda e à importação de produtos de tabaco.


Antes mesmo de o acordo entrar em vigor, o que só vai ocorrer quando 40 países tiverem ratificado a convenção – até o momento, 16 o fizeram -, o desempenho do Brasil já tem sido considerado positivo. A tal ponto que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decidiu concentrar aqui as comemorações de mais um Dia Mundial sem Tabaco (31 de maio), cujo tema é "Tabaco e pobreza: um ciclo vicioso". Segundo a entidade, houve no país, nos últimos dez anos, uma redução de 30% no consumo. No entanto, o consumo entre os adolescentes ainda é preocupante.


Os números da OMS mostram que o número de fumantes no mundo pode chegar a 1,7 bilhões em 2025. Hoje são 1,3 bilhões, dos quais 84% vivem em países em desenvolvimento. Quarto maior fator de risco para doenças e responsável pela perda de 5 milhões de vidas anualmente, o tabaco gera uma perda líquida de US$ 200 bilhões ao ano, sendo um terço desse valor nos países mais pobres. A OMS e o Banco Mundial afirmam que o consumo de tabaco aumenta a desigualdade social, agravando a pobreza e a desnutrição. Por essa razão, no ano passado, foi elaborada a Convenção para Controle do Tabaco, primeiro tratado internacional dedicado a conter a expansão do consumo.


O órgão da OMS que se dedica ao tema, a Tobacco Free Initiative, é chefiado pela brasileira Vera Luíza da Costa e Silva. De passagem pelo Brasil, com uma agenda que incluía encontros com representantes de organizações não-governamentais e uma audiência com o presidente da República, ela falou à Rets sobre a relação entre pobreza e tabaco: "A indústria faz um lobby enganoso que associa o tabaco à idéia de prosperidade", afirma. "E quando esse tipo de coisa se relaciona com aspectos como menor escolaridade e baixa renda, forma um círculo perverso".


Rets - No encontro deste 31 de maio com o presidente da República a ratificação do Brasil à Convenção do Controle do Tabaco também será discutida? Qual tem sido a receptividade do governo?

Vera Luíza da Costa e Silva - A Convenção para Controle do Tabaco está no Senado, aguardando sua entrada na ordem do dia. Estivemos conversando recentemente com o deputado João Paulo Cunha [presidente da Câmara] e o documento foi aprovado na Câmara. As informações que a gente tem recebido são de que o ministro da Saúde, Humberto Costa, e o presidente Lula têm dado um grande suporte. O Brasil foi um dos primeiros países que assinaram a convenção. A ratificação desse documento significa um compromisso de cada governo dos 118 países signatários. Agora, cada país tem mecanismos diversos para que se faça essa ratificação. No caso do Brasil, o próprio ministro Humberto Costa encaminhou o documento ao Congresso.

Rets - A Tobacco Free Initiative também está entregando um outro documento ao presidente, solicitando prioridade para o Programa de Controle do Tabagismo. Qual o teor desse documento?

Vera Luíza da Costa e Silva - Basicamente, a gente pede que o controle do tabagismo entre na Agenda 21, na agenda do desenvolvimento sustentável, nas ações de combate à fome. O êxito do programa brasileiro de combate ao tabaco foi um dos motivos pelos quais o Brasil foi escolhido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para sediar as comemorações do 31 de maio. O tema do Dia Mundial sem Tabaco deste ano alerta para o ciclo vicioso da associação entre o tabagismo e as doenças crônicas fatais e também para o consumo cada vez maior de tabaco nos países em desenvolvimento.

Rets - A que se atribui esse aumento de consumo?

Vera Luíza da Costa e Silva - Isso tem relação com algumas questões. Uma delas é a estratégia agressiva da indústria do tabaco, que perdeu mercado nos países mais desenvolvidos e passou a lançar uma ofensiva contra os países em desenvolvimento. E esses países já lutam contra uma série de dificuldades; lutam, por exemplo, contra doenças erradicadas nos países desenvolvidos. A indústria faz um lobby enganoso que associa o tabaco à idéia de prosperidade. E quando esse tipo de coisa se relaciona com aspectos como menor escolaridade e baixa renda, forma um círculo perverso. A gente sabe que a pessoa que fuma é, na verdade, uma pessoa doente. Se for um pai de família pobre, ele acaba gastando, para sustentar o próprio vício, o que poderia ser gasto em comida. Outro problema é que os fumantes também adoecem mais, o que retira do cenário pessoas em idade produtiva. O indivíduo deixa de trabalhar e a sua doença onera a família, onera o governo e os serviços de saúde, enfim, compromete tudo. Outro aspecto a se considerar é que muitos países em desenvolvimento importam cigarros, o que é outro fator que tem implicações na economia. Essa é, portanto, uma questão vital para os países em desenvolvimento e também para a OMS.

Rets - O consumo de tabaco é livre, legalizado e move uma indústria imensa. Ao mesmo tempo, e cada vez mais, procura-se restringir o consumo. A proibição total do fumo é uma hipótese considerada possível e viável pela OMS?

Vera Luíza da Costa e Silva - A experiência mundial sobre drogas mostra que proibir uma droga legal é uma faca de dois gumes. É preciso criar um mecanismo que permita estabelecer medidas de cooperação entre os países para que se adotem estratégias globais de controle. A colaboração técnica e científica, as campanhas e as demais questões que estão expostas na Convenção para Controle do Tabaco é que vão mostrando o caminho para a sociedade. As conseqüências do tabaco começaram a ser conhecidas de uns 50 anos para cá. Houve um tempo em que médicos faziam propaganda de cigarros. Então esse é um processo social contínuo cujos mecanismos reguladores devem ser implementados pelos governos com a participação da sociedade.

Se o consumo de tabaco no mundo inteiro for reduzido, em média, 1 a 2% ao ano e a população mundial mantiver a renda de hoje, em 2050 o nível de consumo será igual ao atual. Não se prevê, portanto, nenhuma mudança brusca para a indústria nos próximos 50 anos. É um processo muito lento e gradual.

Aqui no sul do Brasil, a indústria vende uma situação de caos para os fumicultores. A Convenção fala em mecanismos de suporte [aos fumicultores], mas não a curto prazo. O que a indústria faz é passar uma mensagem enganosa, pois o que tem impactado realmente não é a redução do consumo, mas sim a pressão do mercado internacional.

Além disso, devemos observar que muitas vezes a fumicultura gera trabalho infantil e que ocorre a absorção de pesticidas e da própria nicotina pela pele. É, portanto, uma questão muito complexa e que vem sendo estudada. Quem vendo sendo o grande beneficiado não é o país, nem o fumicultor, mas a indústria. Pra você ter uma idéia, o lucro das quatro maiores empresas de tabaco é maior que o PIB [Produto Interno Bruto] de 20 países.

Rets - De que forma a indústria do tabaco tem reagido a esse movimento cada vez mais intenso contra o fumo?

Vera Luíza da Costa e Silva - A indústria não quer regulamentação. Ela está sempre buscando acordos voluntários com os governos, para que não haja regulamentação sobre suas atividades. Elas fazem seus códigos próprios e tentam vendê-los como solução. É mais uma estratégia de marketing do que qualquer outra coisa.

Rets - Há algum tipo de iniciativa que tem se mostrado mais eficaz no combate ao fumo?

Vera Luíza da Costa e Silva - O mais efetivo é mesmo o aumento de preço. É o que provoca uma redução de consumo imediata - especialmente entre os mais pobres, as crianças e os adolescentes. É também o que tem sido preconizado pela OMS e pelo Banco Mundial como a melhor medida, pois, além de diminuir o consumo, aumenta a arrecadação para o governo.

Outras medidas que têm produzido bons resultados são a regulamentação e a proibição, direta e indireta, de patrocínio de eventos culturais e esportivos e as campanhas educativas. Depois, as advertências nos maços de cigarro. O Brasil, aliás, foi o primeiro país a proibir o uso de termos como "leve" e "suave".

Rets - A OMS lançou um código de conduta para os profissionais de saúde em que recomenda que parem de fumar.

Vera Luíza da Costa e Silva - Sim e isso vem tendo uma aceitação mundial fantástica. Várias entidades internacionais estão tendo sucesso na implantação do código. Agora, o que a gente precisa compreender é que isso é uma doença, então nem sempre as pessoas conseguem parar, mesmo quando querem. A sociedade precisa dar ao fumante um suporte para que ele possa deixar de fumar. O processo tem de ser contra o fumo, não contra o fumante.

Rets - A senhora fuma?

Vera Luíza da Costa e Silva - Já fumei, mas consegui parar. E acho que todo mundo deve ser sempre estimulado a parar de fumar.

Fausto Rêgo

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