Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
Debora Diniz*
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Da medicina ao direito, fala-se em bioética. Os temas de bioética estão na pauta diária da mídia internacional: aborto, clonagem, eutanásia, Projeto Genoma Humano e transplante de órgãos são algumas das questões bioéticas mais conhecidas. A bioética faz parte do debate legislativo, político e ético de grande parte dos países desenvolvidos onde as comissões nacionais consultivas de bioética foram instituídas desde os anos 1980. No Brasil, temos associações profissionais, cursos de pós-graduação, disciplinas de graduação em diferentes carreiras, peritos em bioética no campo da medicina e do direito, em um claro indicativo do quanto a bioética é uma disciplina acadêmica sólida no país. Recentemente, foi realizado, no Recife, o V Congresso Brasileiro de Bioética, em que cerca de 700 pessoas estiveram presentes. Mas o que seria a bioética?
Formalmente, a bioética surgiu nos Estados Unidos, na década de 1970. Este foi um período marcado por intensas transformações sociais e a bioética é resultado desse processo crítico de mudança. Como um ramo da ética aplicado à saúde, a bioética consolidou-se a partir da certeza de que não bastava o ensino da técnica para a formação de profissionais biomédicos competentes. A história dos crimes de guerra, em especial após o Julgamento de Nurembergue, mostrou que era urgente a reflexão ética em saúde. E esta reflexão deveria ser uma tarefa realizada por diferentes profissionais e não apenas pelos profissionais de saúde. Desde então, a bioética caracteriza-se por ser um campo marcadamente multidisciplinar.
Não há um profissional bioeticista. Não se formam bioeticistas nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. O que há são advogados, antropólogos, assistentes sociais, dentistas, enfermeiros, filósofos, juristas, médicos, sociólogos, teólogos, entre uma ampla gama de profissionais sensíveis às questões bioéticas. Em algum momento da vida, grande parte das pessoas, seja no exercício de suas profissões ou em suas vidas privadas, se deparará com questões bioéticas. Decisões delicadas, tais como se as pessoas podem ou não decidir o momento em que desejam morrer ou se deve ou não ser permitida a comercialização de órgãos humanos, são algumas das questões bioéticas que interessam a todos nós.
Ao mesmo tempo em que a bioética é um instrumento político de intervenção em situações de conflito moral em saúde, é também um campo de ensino e pesquisa em ética social. A bioética é um campo de ensino, pesquisa e intervenção social e política em situações de conflito moral em saúde, uma vez que se debruça sobre temas em que não há um acordo moral sobre como devemos proceder. A clonagem é uma dessas situações e, certamente, uma das mais delicadas para a bioética nos últimos tempos. Se, por um lado, não sabemos como clonar um ser humano com segurança, por outro não dispomos de uma reflexão social responsável sobre se queremos ou não algum dia viver em uma sociedade que autoriza a clonagem humana.
A bioética não se resume, portanto, à técnica biomédica. Por isso a infinidade de profissionais que representa a bioética brasileira. Os desafios morais da clonagem, e de outros temas bioéticos mais antigos, como o aborto ou a eutanásia, devem ser analisados sob diferentes perspectivas profissionais e não meramente a da segurança científica do procedimento ou de códigos morais específicos. Não bastam técnicas seguras ou códigos religiosos para solucionar nossos desafios éticos. A decisão sobre a difusão e autorização de uma tecnologia é, acima de tudo, uma escolha moral sobre padrões sociais de bem viver. E nossas escolhas éticas devem sempre levar em consideração a diversidade de crenças e valores da população brasileira.
Neste momento, encontram-se em tramitação no Congresso Nacional projetos de lei que procuram regulamentar questões importantes para a bioética, como o aborto ou a clonagem humana. Infelizmente, o que motiva e fundamenta grande parte das discussões legislativas não é o espírito bioético da dúvida e da argumentação moral razoável, em que se reconhece a impossibilidade de uma resposta única para os conflitos morais em saúde. Alguns temas bioéticos, como é o caso do aborto, põem em discussão nosso compromisso com a pluralidade e a tolerância, dois princípios éticos fundamentais à democracia e centrais a grande parte das teorias bioéticas vigentes. Um debate legislativo sério sobre o aborto, por exemplo, não pode se resumir à defesa de moralidades religiosas sobre o estatuto do feto, mas deve enfrentar e reconhecer o direito inalienável de autonomia das mulheres. Mas como levar adiante este compromisso bioético se os projetos de lei em tramitação recusam-se a reconhecer os dois princípios fundamentais da bioética: o da autonomia e da pluralidade moral?
Em nome disso, é possível resumir as ambições da bioética a dois pontos. O primeiro, e certamente o mais importante: a bioética assumiu para si a tarefa da educação ética sobre as questões de saúde e doença. É possível ensinar e sensibilizar as pessoas para o pensamento ético e, por isso, há cursos de pós-graduação em bioética nas melhores universidades brasileiras e internacionais. A bioética faz parte de nossas decisões cotidianas em hospitais, tribunais ou parlamentos, não se restringindo ao trabalho acadêmico ou de pesquisa. A segunda ambição da bioética é democratizar o conhecimento ético, não permitindo que este seja um discurso restrito a poucas categorias profissionais ou especialistas. A reflexão bioética faz parte da vida cotidiana de todos nós e seu aprendizado tornará nossas sociedades mais democráticas e plurais.
* Débora Diniz é doutora em Antropologia e diretora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (www.anis.org.br).
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