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Circo por conta própria

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor





Circo por conta própria


Há pouco mais de três anos, Josivan dos Santos, de 17 anos, ficava na porta de circos que chegavam a Juazeiro do Norte – cidade a 600km de Fortaleza, no Ceará, onde mora –, mas raramente conseguia assistir aos espetáculos. Sem dinheiro para pagar o ingresso, vagava em torno da lona, procurando frestas. De vez em quando, alguém o chamava e lhe pagava o ingresso. Da arquibancada, encantava-se com o espetáculo, principalmente com os palhaços.

Um dia, seu irmão, ex-detento, foi convidado a participar de um curso que uma organização não-governamental estava oferecendo como parte das atividades do regime de liberdade assistida. Josivan escutou a conversa, pela qual ficou sabendo que haveria um curso de reciclagem e sobre Padre Cícero, padroeiro da cidade. Como já catava latas de alumínio para revender, achou que poderia dar novo fim aos objetos de seu trabalho e assim ganhar um pouco mais. Ofereceu-se para participar e foi aceito. Chegando lá, deparou-se com uma escola de circo. Hoje é ele quem está no centro do picadeiro, fazendo as próprias palhaçadas, alegrando outras crianças e ainda ganhando para isso.

Josivan é um dos integrantes do Circo Escola EcoCidadania, projeto do Instituto Juriti, atuante na cidade cearense desde 1998. O circo funciona em um espaço no Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará (Cefet-CE). O circo foi criado para dar a crianças e jovens das áreas próximas à escola a oportunidade de brincar e trabalhar em atividades ligadas à preservação ambiental, mas acabou indo além. Atualmente ele oferece aulas de técnicas circenses para 120 crianças e busca se sustentar fabricando os instrumentos necessários para as atividades e vendendo-os a outros circos.

“Aceitamos um desafio do Unicef [Fundo das Nações Unidas paraa Infância] de atuar naquele local”, conta a socióloga Ana Cristina Diogo, coordenadora do projeto. As condições sociais do público atendido por ela são características de uma área de baixa renda: índice de evasão escolar próximo a 30%, taxas de desemprego altas e renda mensal familiar em muitos casos não inferior a R$ 100. A primeira tarefa era escolher que tipo de atividade seria desenvolvida. O circo foi eleito, segundo Cristina, pela alegria que proporciona aos alunos. “Não queria um trabalho pesado, mas algo que melhorasse o clima e levantasse a auto-estima”, afirma.

O Unicef bancou a idéia e, com os recursos, foi possível alugar um espaço e dar bolsas a alguns alunos, que logo depois se tornariam monitores. Com apoio da Dreams Can Be Foudation, adquiriram aparelhos. Já a Fase [Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional] colaborou com recursos para a montagem de uma oficina para construção de outros equipamentos e assessoria às iniciativas. “Assim deixamos de ser uma tenda com gente dentro para virarmos um circo”, comemora Cristina.

Conseguiram reunir alguns palhaços que trabalhavam na região para dar aula para os jovens e aí o projeto deslanchou. Aprenderam a montar alguns espetáculos simples, mas também foram estimulados a escrever as próprias falas. Como a Juriti originalmente é voltada para a preservação ambiental, o picadeiro foi adaptado para dar lugar a essas idéias. Em todas as apresentações, o tema central é a natureza e o aproveitamento do lixo produzido na cidade. Josivan acha a temática interessante, pois foge das apresentações tradicionais circenses. “O palhaço, hoje, é muito pornográfico, só faz piada sobre mulher e marido”, critica o adolescente.

Além das aulas com os palhaços, meninos e meninas aprendem malabarismo, música, dança, confecção de indumentária, impostação de voz e técnicas de relaxamento e ganham mais noções de saúde e cidadania. “Durante as aulas há muitos debates sobre direitos e deveres”, diz Cristina. “Melhorei bastante minha fala e meu comportamento depois de entrar para o circo”, comemora Robson Sales.

Ele começou a participar das atividades ao mesmo tempo em que Josivan e desde então são amigos. Mas, ao contrário do colega, Sales conheceu a Juriti na escola. Também gostava de palhaços e se interessou em participar. Começou com aulas de malabarismo, passou para a de clown [com os palhaços] e hoje é um dos sete monitores do projeto. Pelo trabalho, ganhava R$ 120 por mês – que, segundo ele, eram suficientes para ajudar a família. Pode parecer pouco, mas era o triplo do que recebia como garçom em um restaurante em Juazeiro. Robson começou a trabalhar aos 12 anos e, com os R$ 10 semanais que recebia para servir os clientes, conseguia ajudar a família.

Foi Cristina quem o convenceu a largar o trabalho, mesmo não tendo certeza de haver uma bolsa para ele. Como era um dos mais necessitados, quando surgiram recursos, foi logo escolhido. “Ela falava que ser garçom não era coisa pra mim. Com o dinheiro, deu para manter minha família e mudar a casa”, comemora. Robson conta que há até pouco tempo as paredes de seu lar eram de taipa, mas agora já são de tijolo.

Estudando à noite, pôde pegar duas monitorias: uma à tarde, outra de manhã. “É muita coisa pra fazer, mas acho que dou conta”, alegra-se. Sua única reclamação é em relação às apresentações feitas em escolas da cidade. “A criançada faz muita bagunça, mas depois se acalma”. A mesma opinião tem seu companheiro de picadeiro, Josivan, que chega a ficar com medo quando há muito agito na platéia. “Eles correm atrás da gente, querem tirar nossa roupa. Quando isso acontece, começo a ficar nervoso, assustado”.

Monociclo

Uma das maiores atrações dos espetáculos que ambos protagonizam é o monociclo. Segundo os adolescentes, as crianças adoram ver os palhaços se equilibrando em uma roda, mas não sabem de um detalhe importante: ele é construído pelos próprios artistas. Não há uma fábrica de monociclos no Brasil, por isso é preciso importá-los da Europa, onde custam cerca de 600 euros, segundo a Juriti. O alto preço se justifica pela pequena produção e pelas especificidades do produto. Ao contrário do que pode parecer, não é possível aproveitar eixos de bicicleta, pois eles são frágeis demais para agüentar o peso dos artistas.

A solução encontrada foi fabricar os próprios monociclos com ajuda de um torneiro mecânico. Com o molde pronto e canos adquiridos em ferros-velhos, eles fizeram a primeira unidade e aprenderam a construir as demais. O eixo ainda é feito pelo torneiro, que cobra R$ 50 por cada um, mas o restante (soldas e montagens) é construído pelos meninos. A exceção é o estofado do selim, que demanda uma maquina cara demais para ser comprada pelo projeto. Cada monociclo é vendido pelo Circo Escola EcoCidadania por R$ 300 a clientes como o Circo Escola Pequeno Tigre, de São Gonçalo (RJ). Outros acessórios, como o minitrampolim, o trapézio e as cortinas, também já começaram a ser fabricados depois de aulas com um técnico da Escola Nacional de Circo.

“É nosso único elemento de sustentabilidade”, diz Cristina. As bolsas foram cortadas devido ao término do contrato com o Unicef. A organização, agora, pede como “cachê” a doação de cestas básicas quando há apresentações em escolas particulares da região.

Apesar das dificuldades financeiras, os alunos estão conseguindo ir adiante. Quatro já participaram do Programa de Formação de Instrutor de Circo Social do Cirque du Soleil, escola canadense considerada a melhor do mundo. Alguns alunos de educação física do Cefet são orientados pelos monitores do projeto para conhecerem melhor as técnicas circenses. Outros mantêm o intercâmbio com outras escolas brasileiras. Josivan, por exemplo, vai ao Rio em novembro para participar do encontro Anjos do Picadeiro, que reúne artistas de todo o país. O cearense vai repassar as técnicas de reciclagem aprendidas no circo EcoCidadania a quem se interessar. Os contatos foram feitos por meio da rede Circo do Mundo Brasil, que incentivou os jovens a utilizar a Internet. Eles ainda estão aprendendo a utilizar a única máquina existente na organização, mas a comunicação está funcionando.

Em busca de recursos, a Juriti está disposta a estabelecer parcerias, para, segundo Cristina, “conseguir mais sorrisos”. Mais detalhes sobre a entidade estão disponíveis na página dela [ver link acima, à direita].


Marcelo Medeiros

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