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Desafios em gênero

Autor original: Fausto Rêgo

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Desafios em gênero
Marcelo Medeiros/Rits

O fórum "Networking for Change and Empowerment", de 1º a 7 de junho, trouxe ao Rio de Janeiro 48 especialistas, ativistas, pesquisadores e pesquisadoras no campo das políticas de gênero e tecnologias de informação e comunicação (TICs) de diversos países. O evento, organizado pela Associação para o Progresso das Comunicações (APC), com apoio da Rits, é uma iniciativa do Programa de Apoio a Redes de Mulheres da APC (Parm). O encontro reuniu também, em uma oficina, os participantes da fase de testes do Projeto GEM. A sigla significa Metodologia de Avaliação sob uma Perspectiva de Gênero. O projeto foi desenvolvido para facilitar a compreensão das questões de gênero em iniciativas que utilizam as TICs para a transformação social. Nesta entrevista exclusiva, Chat Garcia Ramilo, coordenadora do Parm e do Projeto GEM, e Karen Banks, coordenadora global da APC sobre Direitos à Internet, comentam os primeiros resultados desse trabalho e os principais desafios que se apresentam para as mulheres de todo o mundo. Segundo elas, mais do que o uso das tecnologias, o grande desafio é conduzir as mulheres a uma reflexão sobre o papel que representam na família e na sociedade. "É esse relacionamento que vai balizar a forma pela qual as mulheres vão se apropriar da tecnologia", diz Ramilo. Outro tema em pauta foi o processo da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), também em discussão neste fórum, onde começa a se delinear um planejamento estratégico para a segunda fase, na Tunísia, no próximo ano. Para Karen Banks, é necessário investir em ações locais. "Existem vários temas que permanecem abertos para a sociedade civil e sobre os quais devemos liderar processos de discussão, caso os governos e o setor privado não manifestem interesse ou sejam incapazes de se dedicar a eles. É esse o tipo de estratégia que precisamos desenvolver", afirma.

Rets – Aqui no Rio, neste fórum, pela primeira vez os participantes dos diversos projetos-piloto que vinham utilizando a metodologia GEM nos últimos dois anos estão tendo a oportunidade de se encontrar para trocar experiências e conhecimentos. Que resultados começam a aparecer?

Karen Banks – O projeto GEM tem sido uma experiência fantástica para nossa rede, para o Programa de Mulheres, porque nos permitiu conhecer experiências locais e comunitárias de homens e mulheres em atividades de treinamento, relacionamento em rede, telecentros, políticas regionais... e também aprendemos muito sobre que tipo de trabalho precisa ser feito para que homens e mulheres obtenham os mesmos benefícios a partir das tecnologias de informação e comunicação e das oportunidades que elas oferecem em diferentes níveis. O que devemos fazer agora é aplicar isso em outras áreas, como, por exemplo, influenciar nacionalmente em prol de políticas públicas de acesso universal às TICs, pois as recomendações que fazemos são baseadas em experiências concretas.

Chat Garcia Ramilo – As organizações reunidas aqui puderam compartilhar suas experiências e suas formas de trabalhar. Por exemplo, tivemos organizações indígenas do Equador que disseram que, graças à metodologia GEM, conseguiram integrar uma perspectiva de gênero no trabalho de formação de lideranças em suas comunidades. O impacto, portanto, foi muito positivo na identificação de aspectos favoráveis ao fortalecimento das mulheres e da perspectiva de igualdade entre homens e mulheres.


Rets –
Este evento marca o fim de uma primeira etapa do Projeto GEM. O que vem a seguir?

Chat Garcia Ramilo – É o fim do que chamamos de fase de testes. Nós desenvolvemos a metodologia, envolvemos cerca de 30 projetos de todo o mundo nessa fase e 26 completaram essa etapa com sucesso. A primeira coisa a fazer, agora, é uma revisão dessa metodologia, depois formatar e republicar essa versão revisada. Outra tarefa é a formação de uma rede de praticantes da metodologia GEM, reunindo aqueles que participaram desse período de avaliação. Teríamos, então, uma fonte muito rica de pessoas que sabem usar a metodologia, que podem se ajudar mutuamente. Estamos procurando juntar essas pessoas, formando uma comunidade de aprendizagem.


Rets –
Que desafios se percebem comuns a todas as mulheres e quais são específicos e mais destacados para as mulheres nos diferentes continentes?

Karen Banks – Acredito que o desafio comum e mais relevante é a desigualdade geral no acesso às TICs, às instâncias de decisão no desenvolvimento de projetos, à discussão de políticas públicas nacionais e na participação em delegações em eventos como a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. Acho que podemos também nos referir à participação na elaboração de políticas públicas de telecomunicação. Obviamente, há algumas variações de região para região, mas a participação das mulheres é, de forma geral, menor em todas elas.

A Europa é interessante, por exemplo, pois é onde a desigualdade é considerada menor. Em alguns países, de fato, isso é verdade, mas se olharmos para região central e para a Europa oriental, as mulheres vivem algumas dificuldades muito semelhantes às que são enfrentadas pelas mulheres da África, da Ásia ou da América Latina. Acontece que essas dificuldades não são muito conhecidas, são histórias não divulgadas.

Não me sinto em condições de falar sobre experiências em outras regiões. A Ásia é de uma diversidade impressionante. Imagino que a situação no Paquistão seja muito diferente do que ocorre nas Filipinas, na Coréia ou na Malásia.


Rets –
E sobre a América Latina?

Karen Banks – Quase tudo que eu sei veio a partir do Projeto GEM. Há questões muito interessantes, particularmente a experiência em torno dos telecentros. Vemos um grande movimento na América Latina e creio que é muito importante que continuemos a trabalhar nele, pois nos apresenta muitos desafios e requer bastante sensibilidade no trato com as comunidades.

Chat Garcia Ramilo – Acho que um dos principais pontos que se apresentam nesse trabalho é o debate sobre como apresentar conceitos de fortalecimento da participação da mulher e da igualdade de gênero. Estamos falando em transformação, em mudança de papéis. São mudanças tanto para as mulheres quanto para os homens, e isso é difícil para ambos. É preciso refletir sobre a percepção do seu papel na família, na comunidade, no papel que você desempenha. Esse, na verdade, tem sido o maior desafio – e não o uso das tecnologias de informação e comunicação em si. É esse relacionamento que vai balizar a forma pela qual as mulheres vão se apropriar da tecnologia.

Karen Banks – A tecnologia é muito poderosa e tem uma força que pode ser usada para conduzir um processo de mudança em uma comunidade.

Chat Garcia Ramilo – É preciso começar a pensar sobre que estratégia, que conceitos e princípios devemos apresentar no processo de implantação de telecentros. Como parte de um telecentro, temos um política de gênero, de igualdade. Como ver isso? Como conduzir esses conceitos nas oficinas de sensibilização? Na experiência-piloto com os telecentros na América Latina, essa reflexão não se dá necessária e imediatamente pela questão de gênero, mas pela questão da igualdade. Porque existem outros aspectos envolvidos – sociais, econômicos...


Rets –
O fórum é também um momento de início de planejamento para a segunda etapa da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. Que prioridades surgem agora e qual deve ser a estratégia para a continuidade da Cúpula?

Karen Banks – A segunda fase da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação apresenta alguns desafios para as organizações de mulheres, para a sociedade civil, para todos os envolvidos. É um evento que, pela nossa percepção, deveria ser fundamentado nos direitos humanos. E há questões sobre participação, escolha de participantes e níveis de engajamento que precisam ser discutidas para esta segunda fase. Em termos do processo em si, creio que as pessoas gostariam de uma segunda fase focada puramente na implementação de ações e aplicação de princípios de acessibilidade. Acham que não deveríamos gastar muito dinheiro na segunda fase, que deveríamos apenas continuar o trabalho em cima dos acordos obtidos na primeira.

O nosso ponto de vista é de que podemos concordar isso até certo ponto. A sociedade civil não foi envolvida na preparação e na negociação do Plano de Ação tanto quanto na Declaração de Princípios. Nesta nos envolvemos, demos o melhor de nós e, no final, decidimos elaborar nossa própria Declaração, com a nossa visão de um futuro na Sociedade da Informação, na Economia da Informação ou qualquer nome que se dê. Coletivamente, a maior parte das organizações tinha uma idéia muito clara de quais seriam as ações prioritárias em seus países. O desafio, agora, é assegurar que os governos mantenham seus compromissos que assinaram na primeira fase da Cúpula e que nós sejamos capazes de tirar proveito disso para realizar ações prioritárias em níveis nacionais.

A primeira conferência preparatória para esta segunda etapa será bastante interessante, pois teremos a oportunidade de revisar as normas e os procedimentos que nortearam a primeira fase – e, obviamente, estamos particularmente interessados em discutir como isso pode ter afetado a participação da sociedade civil no processo. Ainda não sabemos ao certo que nível de acesso teremos, mas [com ironia] tenho certeza sobre o espaço das questões de gênero. Minha sensação é de que vamos ter alguma coisa próxima do que foi a primeira fase. Mas não acho que a gente deva se dedicar durante outros dois anos à participação em conferências internacionais tão caras quando temos tanto trabalho a fazer em nossos países. Creio que devemos formar núcleos locais e bem coordenados de organizações ou pessoas que estejam monitorando os processos internacionais – o que não inclui apenas a Cúpula Mundial. Temos uma espécie de caminho emergente paralelo aos dois temas sobre os quais os governos foram incapazes de chegar a um acordo: governança e financiamento para os países do Sul. Esses dois processos estão em curso agora e a sociedade civil não foi envolvida ainda. Não há clareza alguma sobre como poderemos participar das deliberações em torno desses dois temas de grande importância.

E teremos também de discutir também quais são os outros temas sobre os quais os governos chegaram a um acordo, mas sem a concordância da sociedade. Não estamos, por exemplo, satisfeitos em relação à maneira como o tema da comunicação comunitária foi tratado no documento final ou à falta de interesse em destacar a importância do software livre e dos seus benefícios.


Rets –
E quanto às questões de gênero?

Karen Banks – Questões de gênero também foram tratadas de forma muito pobre, e não por falta de esforço dos grupos de mulheres que participaram da Cúpula. O que o documento final apresentou está bem distante do que gostaríamos de ter.

Existem, portanto, vários temas que permanecem abertos para a sociedade civil e sobre os quais devemos liderar processos de discussão, caso os governos e o setor privado não manifestem interesse ou sejam incapazes de se dedicar a eles. É esse o tipo de estratégia que precisamos desenvolver.

Fausto Rêgo

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