Autor original: Fausto Rêgo
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Na conferência que pretendia discutir novas energias renováveis, o Brasil preferiu defender as hidrelétricas. O elogio ao modelo baseado em grandes usinas foi a tônica do discurso da ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, durante a Conferência Mundial sobre Energias Renováveis, realizada em Bonn, Alemanha, de 31 de maio a 4 de junho. Falando como representante da América Latina, a ministra reafirmou o compromisso – estabelecido no encontro preparatório de Brasília, no ano passado – de assegurar que pelo menos 10% do consumo energético da região seja suprido por energias renováveis até 2010. No Brasil, afirmou, isso já é realidade para 41% do suprimento doméstico. Mas observou: a energia hidrelétrica responde por 14% e ainda será a mais importante fonte renovável para o sistema energético brasileiro nas próximas décadas.
Para vários ambientalistas, a posição do governo brasileiro destoou dos propósitos da conferência e deve representar um obstáculo para a concessão de financiamentos internacionais a projetos de incentivo a novas energias renováveis no país – por "novas energias" entenda-se: biomassa, energia eólica, solar etc.
Rubens Harry Born, coordenador executivo do Vitae Civilis Instituto para o Desenvolvimento, Meio Ambiente e Paz, esteve em Bonn e se disse desapontado. Membro do Grupo de Trabalho de Energia do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ele lamenta que o Brasil tenha saído de uma situação de liderança para passar a defender a concessão de financiamentos para grandes hidrelétricas. "O que divide os ambientalistas são as implicações desse modelo, em que, muitas vezes, além dos impactos socioambientais, a energia resultante é resultado de atividades não compatíveis com a sustentabilidade do desenvolvimento. Precisamos fazer uma discriminação positiva para as novas energias renováveis", propõe.
Nesta entrevista, Born fala sobre os resultados e as repercussões da Conferência de Bonn e adianta uma iniciativa que está sendo concebida em conjunto pelo Vitae Civilis, pelo Greeenpeace e pelo Fórum Brasileiro de ONGs: propor ao governo alemão a recompra dos equipamentos da usina nuclear de Angra 3, na condição de que o Brasil passe a direcionar para projetos de novas energias renováveis os recursos que hoje são gastos na sua manutenção.
Rets – Em termos gerais, analisando os resultados da Conferência Mundial sobre Energias Renováveis, houve avanços significativos?
Rubens Born – Essa análise precisa ser feita de duas formas: no âmbito da própria conferência ou dentro de um processo maior que se desenvolve há alguns anos. Se a gente olha pra trás e lembra a Rio+10 [a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, África do Sul, em 2002], quando os países exportadores de petróleo e os Estados Unidos, especialmente, bloquearam compromissos e diretrizes para o fomento de novas energias renováveis, eu diria que a Conferência de Bonn deu um modesto passo adiante. Desta vez nem os países exportadores de petróleo conseguiram bloquear a elaboração de um plano de ação com mais de 150 propostas. Em comparação com Joanesburgo, então, foi um passo adiante. Agora, quando a gente pensa que poderiam ser alcançadas em Bonn algumas metas e compromissos de financiamento de energias renováveis, a conclusão é outra.
Rets – A ministra Dilma Rousseff afirmou na Conferência que o Brasil vai continuar tendo as hidrelétricas como base do seu modelo energético nas próximas décadas, mas lembrou que o país está procurando diversificar sua matriz energética. Que balanço você faz da participação brasileira nesse encontro?
Rubens Born – Eu fiquei muito desapontado com a maneira como a ministra expôs a posição brasileira, e é bom lembrar que ela falou também em nome da América Latina. O Brasil, no primeiro ano do Governo Lula, organizou em outubro, em Brasília, uma conferência preparatória para Bonn em que foi reiterada a proposta latino-americana de que a matriz energética regional fosse composta de pelo menos 10% de novas energias renováveis até 2010, e essa era uma posição de liderança do governo brasileiro.
Conversamos com a ministra antes do seu discurso e pedimos a ela que levasse em conta que a Conferência de Bonn não era o espaço adequado para que se colocasse em pauta a concessão de financiamento para energias tradicionais, pois elas já têm seus financiamentos e seus lobbies constituídos. Em vez disso, seria importante construir linhas de apoio para novas energias renováveis. O termo "novas energias renováveis", aliás, foi criado justamente para diferenciar das energias tradicionais, fazer uma discriminação positiva. As novas energias incluem energia eólica, solar, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas, mas não incluem as grandes hidrelétricas.
A ministra poderia ter dito quase as mesmas coisas, mas com um outro enfoque. Ela afirmou que as hidrelétricas serão as mais importantes fontes de energia renovável para o país e para a América Latina nas próximas décadas. Se eu sou um investidor ou um governante de um outro país, vou entender que não adianta investir em novas energias renováveis no Brasil, pois o próprio governo reconhece que isso não é prioridade. É preciso entender que esse pronunciamento tem um efeito político e também econômico. E a ministra Dilma Rousseff deu um sinal negativo a novos investimentos para novas energias renováveis.
Outra coisa que a ministra não deixou clara é se o Brasil vai assumir uma posição de liderança na América Latina e se empenhar para cumprir a meta acordada. Se usar as hidrelétricas como parte da cota, realmente o Brasil já cumpre. Mas o que divide os ambientalistas são as implicações desse modelo, em que, muitas vezes, além dos impactos socioambientais, a energia resultante é resultado de atividades não compatíveis com a sustentabilidade do desenvolvimento. Precisamos fazer uma discriminação positiva para as novas energias renováveis.
Rets – Incluir as hidrelétricas na meta foi justamente a proposta apresentada pelo Brasil e que acabou ratificada no documento final de Bonn. Quais as implicações disso?
Rubens Born – Uma das implicações é obter financiamento para grandes e médias hidrelétricas. A Conferência de Bonn procurava obter financiamento para novas fontes de energia renováveis. Ao incluir as hidrelétricas, a ministra Dilma Rousseff tenta reabrir canais de financiamento para elas. Em Bonn, durante uma mesa redonda sobre opções de financiamento da qual participou o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique Iglesias, a ministra reclamou que o BID e o Banco Mundial, por interesses políticos, não estavam mais financiando hidrelétricas, preferindo investir em termoelétricas. E ela disse que pleitearia que a Declaração Ministerial de Bonn contemplasse isso. O interessante é que essa atitude é uma contradição em relação ao que o próprio governo está fazendo no Brasil com o Proinfa [Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica]. Então ela perdeu a chance de dizer que o Brasil estava procurando apoiar novas fontes de energia e que o mundo poderia fazer a mesma coisa.
Mas o Enrique Iglesias, em resposta, disse que os bancos poderiam voltar a considerar financiamentos para as hidrelétricas, sob uma condição: os países interessados deveriam conversar com a sociedade civil e os movimentos sociais e apresentar previamente um relatório dos impactos sociais e ambientais desses projetos.
Ela está buscando, portanto, abrir portas para financiamentos para grandes hidrelétricas, e isso não estava na pauta de Bonn, o que deixou todo mundo surpreso, pois o Brasil vinha tendo um papel muito positivo desde Joanesburgo.
Rets – O Banco Mundial dedica 4% dos seus financiamentos a projetos que utilizam novas fontes renováveis e as hidrelétricas poderiam se beneficiar disso. A Declaração Política de Bonn sugere, aliás, que esse volume de recursos seja ampliado.
Rubens Born – Esse é um exemplo prático de como essa questão avançou desde Joanesburgo, onde não houve nada disso. Até acho que a ministra tem razão quando diz que o Banco Mundial tem financiado principalmente projetos privados de termoelétricas, mas ela tentou colocar os ambientalistas como defensores de combustíveis fósseis, o que não é verdade. Nossa posição é de que não adianta querer dissociar a questão energética das preocupações com a sustentabilidade. É preciso levar em conta os impactos socioambientais.
Rets – A crítica de que o Brasil estaria fechando as portas aos investimentos internacionais ao assumir a defesa das hidrelétricas é compartilhada pelo Greenpeace, que também esteve acompanhando a Conferência de Bonn. Mas o governo brasileiro fechou com a Alemanha um acordo de cooperação sobre energias alternativas.
Rubens Born – Esse acordo é quase uma carta de intenções. É um documento bem genérico que agora terá de ser complementado e construído, dizendo quais serão as atribuições de cada parte. De fato, é uma boa sinalização, é interessante, mas não diz claramente o que vai ser feito. Acho que não há como fazer uma análise desse acordo neste momento.
Rets – Falou-se em energia nuclear também? O acordo Brasil-Alemanha que viabilizou Angra está fazendo trinta anos.
Rubens Born – Obviamente, o lobby da indústria nuclear está presente nesses eventos, assim como se faz presente nas discussões em torno do Protocolo de Kyoto. Cheguei a conversar com o deputado federal Fernando Gabeira durante o Fórum Parlamentar [realizado paralelamente] e ele me contou que havia conseguido retirar do documento final o reconhecimento de que a energia nuclear não contribuía para o efeito-estufa. Esse é um pequeno exemplo de que eles estão sempre por perto, tentando vender seu peixe.
Rets – O governo não abriu mão de concluir Angra 3. Ainda há perspectiva para esse tipo de energia?
Rubens Born – Eu espero que não. Nós, da Vitae Civilis, juntamente com o Greenpeace e o Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais, estamos amadurecendo a idéia de propor ao governo alemão que compre de volta os equipamentos de Angra 3, já que o Brasil está pagando a manutenção desses equipamentos. Nós perguntamos à ministra o que ela achava dessa proposta, mas ela disse que, como ministra, não poderia responder essa pergunta. Nós apresentamos a idéia a algumas ONGs alemãs e elas receberam muito bem. O governo alemão está querendo interromper o uso de energia nuclear e essa iniciativa teria, em tese, tudo a ver com a proposta desta conferência que eles mesmos convocaram. Poderia ser estabelecida como condição para a recompra a obrigação de aplicar em projetos de novas energias renováveis os recursos que seriam usados na manutenção de Angra 3. Seria uma maneira de a Alemanha nos ajudar.
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