Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Tim Dirven | ![]() |
A belga Helene de Beir, o holandês Pim Kwint, o norueguês Egil Tynaes e os afegãos Besmillah e Fasil Ahmad tinham em comum o desejo de ajudar a população do Afeganistão, país há muito tempo envolvido em conflitos armados e recentemente palco de uma guerra entre milícias locais e tropas estrangeiras, principalmente norte-americanas. Todos estavam a serviço dos Médicos Sem Fronteiras. No último dia 3, o carro em que viajavam foi atacado com tiros e uma granada em Badghis, localidade no noroeste do país. O Talibã, grupo que governava o país até 2001, assumiu a responsabilidade pelo ataque.
“É uma tragédia”, afirmou o diretor dos Médicos Sem Fronteiras no Reino Unido, Jean Michel Piedgnel. O episódio fez a entidade suspender temporariamente suas atividades no país, mas também levanta a questão de como é feito o trabalho de organizações sociais em áreas de risco. Apesar dos perigos, funcionários e ativistas que já vivenciaram esse tipo de situação não se arrependem de ir e até desejam voltar. Com conversas ou treinamentos específicos, para eles o que importa é ver seu trabalho surtir efeito.
Uma dessas pessoas é o enfermeiro Mauro Nunes, coordenador de saúde dos Médicos Sem Fronteiras no Brasil. Nunes já esteve em conflitos em Angola (durante um ano e meio e depois mais um) e Moçambique (um ano), além de uma temporada na Nigéria, onde não há guerra declarada. Em todos esses lugares passou por diversas cidades e vilarejos para prestar assistência médica à população civil. Foi alvo de bombardeio aéreo em Moçambique, atravessou a nado parte de um rio cheio de crocodilos (“a perna tremeu quando soube que eles estavam lá”) e assistiu a muitos tiroteios. Há quatro anos trabalhando no escritório do Brasil, ele diz não ver a hora de voltar para a ação. “Apesar das dificuldades, sinto falta. É algo que vicia. Mas é preciso pensar na própria família”.
Quanto ao perigo, ele considera parte do trabalho. “É arriscado, mas a organização é conhecida justamente por seu trabalho voluntário”, afirma. Longe de se ver como herói – muito menos maluco –, o brasileiro diz permanecer disposto a viajar e estar sujeito a diversos riscos por causa da motivação de seu emprego. “Não somos heróis nem kamikazes, mas muitas vezes somos os únicos dispostos a permanecer em zonas onde só restam, além da população, exércitos”.
Nunes afirma que o episódio do Afeganistão foi um acidente a que todos estão sujeitos, mas cuja repetição é rara. Ele cita o número de países em que a organização está presente (80) e quantidade de mortes (apenas essas cinco este ano) para justificar a afirmação.
Porém o trabalho humanitário está cada vez mais arriscado. De acordo com a pesquisa “Medidas preventivas: as políticas de desastres”, do Programa de Sanções Não-Violentas e Sobrevivência Cultural da Universidade de Harvard (EUA), de 1997 a 2003, morreram 241 pessoas prestando serviço a ONGs ou missões humanitárias das Nações Unidas. O ano em que mais pessoas morreram neste tipo de atividade foi 2003, quando o estudo contou 76 assassinatos, sendo 30 no Iraque e 13 no Afeganistão. E para este ano as perspectivas não são boas. Até março, quando foi encerrada, a pesquisa contabilizava dez mortes só no Afeganistão. O número, portanto, já é maior do que o apurado nos doze meses do ano anterior.
O estudo afirma que o crescimento se deve a um novo olhar dos envolvidos nos conflitos em relação às ONGs. “Antes o símbolo de uma organização humanitária conferia ‘neutralidade’ e dava alguma proteção em relação a ataques deliberados, agora os beligerantes vêem trabalhadores humanitários como ‘alvos fáceis’”, afirma.
Nunes discorda um pouco dessa visão. Para ele, o problema está na confusão feita entre trabalho humanitário e militar. Como exemplo cita a mudança da pintura de carros de tropas, que, em alguns lugares, como o Afeganistão e o Iraque, são brancos ao invés de camuflados. A intenção seria confundir atiradores, já que a cor branca é típica de veículos de organizações ligadas à saúde. “A questão não é falta de respeito, mas o disfarce das ações militares. É preciso dar um basta à promiscuidade de mensagem. Não é possível um avião jogar comida e depois outro igualzinho jogar bomba”, lembra.
A insegurança também é apontada como grande problema pelo cientista político suíço Felipe Donozo, chefe da missão do Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Haiti. O país enfrenta uma guerra civil desde setembro de 2003, mas os conflitos se radicalizaram em dezembro. Agora a situação está mais tranqüila, mas ainda há enfrentamentos de rebeldes. O Brasil acaba de enviar tropas para integrar a missão de paz das Nações Unidas.
Há um ano no América Central, Donozo reclama do desrespeito em relação às missões humanitárias, que não escapam dos ataques de gangues. Recentemente, uma equipe de cirurgiões a serviço da entidade estava em um hospital que foi saqueado por um grupo armado. “O prédio foi alvejado algumas vezes e alguns funcionários ficaram traumatizados. Aqui não poupam nem os hospitais”, afirma. Ele lembra que toda missão da Cruz Vermelha é arriscada, pois a especialidade da entidade é a ação em áreas de guerras. “Por isso nosso pessoal é sempre muito bem preparado para lidar com essas situações”, afirma.
Segurança e Treinamento
Por causa dos riscos, a segurança é peça fundamental para qualquer ação em zonas de conflito. Os Médicos Sem Fronteiras, por exemplo, possuem uma escala de níveis de segurança bastante rígida, que orienta os procedimentos das equipes. A decisão de permanecer ou não em uma determinada situação cabe ao chefe da missão, mas ele precisa acatar ordens do escritório de onde vem. A hierarquia é necessária para evitar julgamentos errados do perigo, pois o envolvimento com a violência pode passar a ser visto como normal por alguns funcionários, há muito tempo inseridos em contextos violentos. “Às vezes, de tanto ver casos extremos, achamos a situação menos perigosa do que realmente é”, conta Nunes. “A sede mantém a distância emocional, que é muito importante”.
Por causa dos riscos, as entidades cada vez mais oferecem treinamento a seus funcionários enviados para o exterior. Os principais conteúdos são relativos a formas de tratamento com as populações locais e aumento da sensibilidade a diferentes culturas. E, sobretudo, a manter a neutralidade nessas zonas para evitar problemas.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha possui regras rígidas para escolher seus enviados. “O recrutamento é muito técnico”, afirma Donozo. A organização, em primeiro lugar, tenta selecionar pessoas com real motivação de ajudar. “Alguém que queira simplesmente sair do país de origem para se ver livre de problemas pessoais não integrará nenhuma missão”, diz. Além de oferecer treinamento para que os escolhidos conheçam bem a região onde irão atuar, a entidade também os submete a testes físicos e psicológicos.
Se alguns precisam passar por provas e cursos, outros partem para o exterior só com o conhecimento adquirido em anos de trabalho. É o caso do jornalista Marcelo Carvalho, que visitou o Timor Leste em 2001 como parte da delegação do Ibase, que fazia um intercâmbio com ONGs daquele país. Permaneceu lá durante seis meses. Na época, os conflitos armados já haviam cessado, mas o clima ainda estava tenso, lembra Carvalho. Ainda assim, antes de embarcar, o máximo que precisou fazer foi passar por reuniões com outros integrantes da equipe para definir o que fariam. Além disso, recebia boletins informativos sobre precauções a serem tomadas e com notícias do país asiático.
O jornalista conta que não passou por nenhuma situação de perigo, mas que o clima de insegurança era forte. “Não podíamos ficar sem celular e nos recomendavam não nos afastarmos muito do centro de Dili, a capital”. O momento mais inóspito, segundo ele, foi quando estavam em uma cidade do interior e um timorense passou a agredí-lo verbalmente devido aos assuntos que tratava em uma oficina. “Eles são muito reticentes em relação a intervenções, pois sempre foram colonizados. Mas tudo foi resolvido com conversa”. O Timor é uma ex-colônia portuguesa. Quando a metrópole européia deixou o país, nos anos 70, a Indonésia ocupou a região.
Em recente entrevista à Rets, a ativista inglesa Jo Wilding contou como chegou ao Iraque e circulou pelo país fazendo apresentações circenses para crianças. Com muita criatividade, conseguiu passar por barreiras militares fazendo malabarismos para guardas e ajudar pacientes de hospitais. Por outro lado, teve que ver pessoas sendo mortas em combates e até mesmo carregar cadáveres. Ela lembra com horror de alguns episódios: “em Fallujah todos os vestígios de humanidade foram apagados”. Como o jornalista brasileiro, ela não passou por nenhum treinamento específico, mas conseguiu lidar bem com as situações.
Dentro do país
Enquanto alguns encaram situações de risco no exterior, outros as enfrentam no próprio Brasil. O coordenador do núcleo de educação do Grupo Cultural Afro Reggae, Hécio Salles, atua em algumas comunidades cariocas. Algumas vezes esteve em meio a tiroteios entre quadrilhas rivais ou entre elas e a polícia. Em outras, foi abordado por traficantes que não o conheciam para saber o que estava fazendo na comunidade. “Temos consciência do risco que corremos, mas ele faz parte do nosso trabalho. Não podemos nos submeter à lógica do medo”, afirma.
Para ele, suas atividades têm surtido efeito. Como exemplo cita a encenação de uma peça de Shakespeare na última semana em uma área conhecida por “Faixa de Gaza”, entre as comunidades de Parada de Lucas e Vigário Geral, ambas na zona norte do Rio de Janeiro e dominadas por facções rivais. “Pode ter havido alguma troca de olhares, alguma tensão, mas nada que estragasse a atividades. No fim das contas, tudo correu bem”, comemora.
Salles afirma que o relacionamento com os bandidos em geral não é difícil, pois eles respeitam o Afroreggae e não se intrometem em seu trabalho. Mas ressalta que o comportamento dessas pessoas é imprevisível e que por diversas vezes já teve de se explicar, principalmente onde o trabalho ainda era recente. “Cada situação é diferente, só não podemos nos acomodar”. Em relação à preparação para lidar com esses casos, ele afirma que não há uma técnica específica, apenas conversas e uso do bom senso.
Já a estudante de artes plásticas Maíra Valente já participou de diversas ações do Greenpeace. Voluntária desde 99, ela classifica a tentativa de escalada da cúpula do Congresso Nacional para pendurar uma faixa contra o término da construção da usina nuclear de Angra 3 como sua atividade mais arriscada. A polícia chegou antes de alcançarem o objetivo, mas o impacto da ação foi suficiente para chamar atenção para sua causa. “Algumas pessoas foram presas, mas não levaram nenhuma mulher, pois todas estavam dando entrevistas a jornalistas”, lembra.
Para ela, o que importa nesse tipo de atividade é reafirmar seus ideais. “Faço isso por acreditar em algo. O medo de acontecer algo comigo é deixado de lado. Sou movida pela adrenalina e pela indignação”, diz. Todos os ativistas da organização ambientalista passam por um treinamento de não violência antes de serem enviados para a rua. Ele consiste em evitar ao máximo reagir a agressões policiais ou de seguranças particulares, além de melhorar o diálogo com a mídia. Valente considera que os policiais oferecem menos riscos que seguranças particulares e até mesmo trabalhadores. Conta que em ações contra madereiros na Amazônia, funcionários de empresas são os primeiros a reagir de forma violenta.
Apesar das dificuldades, aponta algumas vantagens em fazer parte do time de ação do Greenpeace. “Se nos chamam de loucos muitas vezes, noutras nos apóiam. Há situações em que as portas se abrem quando digo que faço parte da organização”.
Perfil
Nenhum dos entrevistados consegue traçar um perfil do profissional ou voluntário envolvido em situações de risco. Alguns afirmam carregar traumas causados por cenas presenciadas nos conflitos e que alguns referenciais mudam. “Ouvir alguém reclamar de comida fria já soou como um insulto para mim, pois vi muita gente sem nada para comer. Mas é preciso relativizar”, diz Mauro Nunes.
Apesar das diferenças, há algo em comum em todos os depoimentos: a crença no que estão fazendo. Alguns chegam até mesmo a tentar convencer amigos a se envolverem, como Mauro Nunes. “A mãe de um colega, aliás, está brava comigo por causa disso”, brinca. Já Felipe Donozo afirma que “há um lado missionário, mas não exatamente idealista. Acreditamos no homem e respeitamos seus princípios”.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer