Autor original: Marcelo Medeiros
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Criado em 1995 pelos Ministérios da Ciência e Tecnologia e das Comunicações com objetivo de coordenar iniciativas relacionadas à Internet no país e garantir a qualidade dos serviços, o Comitê Gestor da Internet (CGI) brasileira pela primeira vez abriu processo eleitoral para escolher seus integrantes – fato inédito no mundo.
Em 5 de julho serão escolhidos por meio de uma votação pela rede de computadores 11 membros titulares e o mesmo número de suplentes. Dos 11 titulares, quatro serão representantes do setor empresarial, três da comunidade cientìfica e outros quatro da sociedade civil. Eles serão acompanhados por oito integrantes do governo federal, um indicado pelas secretarias estaduais de ciência e tecnologia e um especialista de notório saber, a ser indicado por consenso pelo comitê, totalizando 21 pessoas. Até agora o CGI foi administrado por um comitê interino, também composto por representantes do terceiro setor, empresariado e administração pública.
Entre eles estava o diretor de planejamento e estratégia da Rits, Carlos Afonso, que agora se candidata a fazer parte do comitê eleito. Além dele, há outros 15 candidatos (ver lista ao lado) para ocupar as vagas que cabem a organizações da sociedade civil. Todos foram indicados anteriormente também via internet. Afonso é um dos pioneiros da Internet no Brasil e sempre esteve envolvido com sua expansão e democratização. Fazia parte do Ibase na época da Eco-92, conferência das Nações Unidas realizada no Rio de Janeiro em 1992 que marca o início da popularização da rede mundial de computadores no país. Desde então se envolveu com a formulação e análise de políticas públicas de inclusão digital.
Para ele, o fato dos novos membros serem eleitos só aumenta a credibilidade do Comitê, que até o momento tem feito um bom trabalho. Mas lamenta a pequena participação das ONGs no processo. “Agora é garantir e consolidar o já conquistado, e desenvolver a missão para que nos tornemos ainda melhores”, afirma. Os maiores desafios da próxima gestão, segundo Afonso, são a institucionalização do comitê e o desenvolvimento de políticas que aumentem o acesso da população à Internet, garantindo assim seu direito à comunicação e à informação. O número de usuários tem crescido no Brasil, mas ainda está longe de chegar à maioria da população. A exclusão digital é um fato, no país.
Nesta entrevista, Carlos Afonso comenta o trabalho do Comitê Gestor até agora, suas perspectivas e aponta experiências de infoinclusão de sucesso.
Rets - O terceiro setor tem direito a quatro vagas no Comitê Gestor. Esse número é suficiente?
Carlos Afonso - São 21 os membros titulares do novo Conselho Gestor, em que oito representam várias instâncias do governo federal e um é escolhido pelas secretarias estaduais de Ciência e Tecnologia - isso totaliza nove representantes governamentais. O Conselho inclui ainda um especialista de notório saber em assuntos relativos à governança da Internet, escolhido por consenso pelo próprio Conselho. O Comitê Interino escolheu o professor Demi Getschko, um dos cientistas pioneiros das redes de computadores e também da Internet no Brasil, que tem estado presente como referência técnica no Comitê Gestor desde 1995.
Os outros 11 postos (e respectivos suplentes) são escolhidos em um sistema de votação eletrônica com certificação digital pelos respectivos grupos de interesse, assim distribuidos:
- Quatro representantes das sociedades civis sem fins de lucro (o chamado "terceiro setor"); neste caso os eleitores são representantes legais de entidades civis, sejam estas associações de entidades ou entidades individuais.
- Quatro representantes do setor empresarial, todos escolhidos por associações empresariais (empresas individuais não votam) assim distribuidos:
- provedores de acesso e conteúdo da Internet;
- provedores de infra-estrutura de telecomunicações;
- indústria de bens de informática, de bens de telecomunicações e de software;
- setor empresarial usuário.
- Três representantes do setor acadêmico, também escolhidos por associações representantivas correspondentes.
São assim 22 membros (entre titulares e suplentes) eleitos e 18 membros (titulares e suplentes) governamentais, mais o representante de notório saber, totalizando 41 membros.
Creio que, considerando a missão específica do Comitê Gestor, há uma boa distribuição de representantes dos vários setores. A experiência atual, com o novo Comitê Interino já atuando nesse formato, tem sido boa, buscando sempre tomar decisões por consenso.
Rets - Como sua candidatura se relaciona com as demais?
Carlos Afonso - Acho que Rits precisa estar presente nesse processo até porque pode ser considerada como uma espécie de "mãe da criança". Nasceu na Rits a proposta de democratização da representação, hoje adotada pelo governo Lula. Na verdade temos a obrigação de estar presentes, para ajudar a construir o que temos defendido desde pelo menos 2002.
Rets - Essa é a primeira vez que há votação para eleger os representantes da sociedade civil no Comitê Gestor. Isso pode mudar algo no funcionamento do órgão?
Carlos Afonso - Infelizmente, devido à complexidade relativa e especificidade de atribuições do Comitê Gestor, não houve grande interesse do terceiro setor em participar. Se lembrarmos que há dezenas de milhares de entidades civis ativas na luta por um desenvolvimento social mais justo no país, é surpreendente que apenas algumas dezenas tenham se cadastrado no Colégio Eleitoral.
Um fator que pesa um pouco também é a necessidade de certificação digital para a votação eletrônica - um assunto que parece esotérico para a maioria das entidades civis. Contribuiu para isso o fato de a estrutura de certificação digital no país ainda estar em construção e de não ter havido tempo para uma campanha de esclarecimento sobre o que é, como funciona e para que serve isso. O CPF eletrônico (ou e-CPF) exigido para a votação serve para várias outras aplicações de assinatura digital, mas que ONG realmente precisa disso agora?
Por outro lado, as entidades certificadoras (temos apenas três no Brasil - uma estatal, o Serpro, e duas privadas, a Certisign/Verisign e a Serasa) não estão presentes fisicamente com a abrangência requerida para atender o universo de entidades civis que poderiam qualificar-se para o Colégio Eleitoral. Afinal, há um passo na certificação que não é digital - a presença física da pessoa detentora do certificado para assinar um documento na presença de testemunhas, tal como se faz há milênios. Para isso teria que haver um local qualificado em cada cidade, o que atualmente ainda não é viável.
A eleição pode trazer uma renovação de quadros, mas sobretudo vai trazer legitimidade bem maior aos representantes não governamentais. Vai ser um experimento democrático interessante, na verdade único no mundo até agora para esse tipo de entidade.
Rets - O que representa a participação da sociedade civil no Comitê Gestor para a governança da internet brasileira?
Carlos Afonso - A sociedade civil precisa ter consciência dos limites da missão do Comitê Gestor. Já vi acadêmicos de países desenvolvidos em encontros internacionais propondo tantas funções para a governança da Internet que acaba incluindo toda a chamada "sociedade da informação" na lista de tarefas.
Há propostas que podem levar a uma descaracterização do que é a governança da Internet (que consiste basicamente na gestão da infra-estrutura de nomes e números, na coordenação do tráfego de dados, na coordenação da segurança operacional da rede e algumas outras atividades diretamente relacionadas, bem como na preservação desses recursos como um patrimônio da sociedade).
Algumas propostas chegam a sugerir até que se pode fazer a inclusão digital no Brasil com os pouquíssimos recursos gerados pela atividade de registro de domínios. Certamente o Comitê Gestor pode apoiar uma estratégia nacional de inclusão digital em alguns pontos-chave, em que o uso desses poucos recursos seria muito mais eficiente.
Por exemplo, o Brasil ainda não tem um perfil dinâmico detalhado da presença e distribuição da rede em seus vários aspectos (social, geográfico, econômico, educacional, de infra-estrutura etc). Precisamos de um sistema de acompanhamento da inclusão digital no Brasil que forneça subsídios cruciais para essa estratégia - sem dados detalhados e confiáveis podemos cometer erros clamorosos e, na escala do Brasil, erros que podem significar bilhões de reais jogados fora. Isso não custa muito e poderia ser um dos projetos apoiados permanentemente com recursos do Comitê Gestor.
Outro exemplo: precisamos de um sistema de certificação de qualidade de serviço. Não há como combater pragas como o spam sem uma promoção de incentivos que acabe levando todos os provedores a garantir o melhor padrão de qualidade possivel na operação de seus serviços, procurando trabalhar com padrões comuns que beneficiem a todos. Sabemos que leis punitivas não têm funcionado, como tem revelado a própria experiência americana nesse campo.
Se em vez do porrete escolhemos a cenoura, criando um selo de qualidade de serviços, por exemplo, que um provedor poderia obter depois de passar por um rigoroso processo de certificação de qualidade, não há dúvida de que o conjunto dos serviços Internet melhoraria muito, incluindo o combate ao spam, à pornografia infantil, à fraude bancária etc etc. O Comitê Gestor (em conjunto, por exemplo, com a RNP) poderia propor um método de certificação de qualidade, um conjunto de recomendações e um selo de qualidade. Este é um projeto que também estaria ao alcance dos recursos gerados pelo CG.
Como estas, há muitas outras idéias, e esperamos justamente dos novos membros uma chuva de boas propostas.
Rets - Em relação à falta de dados sobre o estado de inclusão digital, como você vê o anúncio feito pelo governo federal, na Semana de Inclusão Digital, da criação de um observatório de políticas públicas nessa área?
Carlos Afonso - Eu procuro enfatizar a importância de ter dados confiáveis e sempre atualizados sobre vários aspectos da inclusão digital, em escala nacional. Sem isso fica dificil fazer um monitoramento adequado. O CG poderia trabalhar em parceria com a iniciativa do Observatório nisso.
Rets - O Comitê Gestor vai fazer 10 anos em 2005. Qual sua avaliação do trabalho desse órgão até agora?
Carlos Afonso - No balanço geral, é muito positivo, apesar de até agora o CG ter sido um grupo de voluntários nomeados pelo governo. Afinal, em poucos países do mundo garantimos conquistas como: preservar a identidade do Brasil na Internet (através do domínio .br); garantir que a distribuição de domínios seja um recurso público, não um bem privado que pode ser negociado no mercado (o que significa que qualquer domínio .br tem o mesmo preço e rigorosamente o mesmo tratamento legal, não visando o lucro); propor medidas efetivas para a interconexão de redes garantindo que o tráfego nacional de dados fique dentro do país; criar mecanismos de monitoramento de segurança considerados entre os melhores do mundo; criar um sistema eficaz de registro de domínios hoje utilizado em vários outros países. Em resumo, somos uma referência mundial da visão que esses recursos são um patrimônio da sociedade e de uma nação, e assim devem ser mantidos.
Agora, é garantir e consolidar o já conquistado, e desenvolver a missão para que nos tornemos ainda melhores. Um dos problemas urgentes a ser resolvido é a institucionalização do Comitê, para que ele possa gerir de maneira totalmente autônoma seus recursos (hoje ainda nas mãos da Fapesp - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Espero que seja uma das primeiras medidas do novo conselho a formalização imediata de uma sociedade civil sem fins de lucro para abrigar todas as atividades do CG, incluindo sua estrutura administrativa e o gerenciamento autônomo de seus recursos.
Rets - Qual o melhor modelo de institucionalização para o CGI?
Carlos Afonso - Creio que isso está bem encaminhado. Duas das melhores alternativas estão sendo consideradas - uma Organização Social (como é a RNP), ou uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Rets - Uma das funções do CGI é aumentar a participação brasileira na rede. Quais os melhores caminhos para se universalizar o acesso?
Carlos Afonso - A função do CG aqui é de recomendação e de apoio em alguns projetos específicos, como já mencionei. Tenho hoje uma visão que, quaisquer que sejam os caminhos, eles passam pela iniciativa decisiva da comunidade organizada em cada cidade, em cada vila, em cada comunidade rural. Na nossa escala, não podemos imaginar que o governo federal possa resolver a inclusão digital sozinho - nem mesmo os governos estaduais. Ando até com a idéia de viajar pelo interior do Brasil conversando com líderes comunitários, educadores, prefeitos, para mostrar a eles como poderiam, com relativamente poucos recursos, dar um salto de inclusão digital em suas comunidades, mesmo que o Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações) não desembuche ou que o governo federal não possa ajudar em nada.
Rets - Poderia citar um exemplo de como é possível resolver o problema da inclusão digital com poucos recursos?
Carlos Afonso - Há vários, mas cito os três mais em evidência: Porto Alegre, com sua rede própria de fibra óptica e seus telecentros comunitários, São Paulo com seus 107 telecentros comunitários, e Piraí (RJ), com sua rede comunitária baseada em rádios digitais sob a liderança da prefeitura, uma fantástica exceção nesse deserto da inclusão digital chamado estado do Rio de Janeiro.
Rets - Qual o papel do Estado e da sociedade civil nas políticas de democratização da internet?
Carlos Afonso - Para mim é trabalharem juntos - esse é o papel fundamental. Buscarem em conjunto soluções, cada um trazendo seus recursos, para conquistar isso em cada comunidade.
Rets - As atribuições do CGI são suficientes para uma gestão eficiente?
Carlos Afonso - Acho até que há atribuições demais, mas não creio que se vá perder o foco já descrito.
Rets - Quais seriam essas atribuições excessivas e a quem caberia respondê-las?
Carlos Afonso - Uma preocupação que tenho é com a menção de maneira muito genérica da inclusão digital entre as atribuições do CG. É muita, mas muita areia mesmo para o caminhãozinho do CG, e tomada ao pé da letra pode ser um desastre para o que o CG não pode deixar de realizar: a operação segura e confiável do endereçamento de nomes e números e funções diretamente relacionadas. Temos que ter cuidado com isso sem abandonar o tema e as contribuições efetivas que o CG pode e deve dar nessa área, claro, como já mencionei.
Rets - Os recursos do Fust até hoje não foram utilizados. Há planos para a aplicação dessa verba?
Carlos Afonso - Planos há, e muitos, mas passam por duas barreiras graves: a primeira é a própria lei e sua regulamentação, desenhadas para fazer com que o Fust funcione como uma espécie de poupança forçada das operadoras de telefonia. A segunda é que é um fundo público federal que não tem conselho gestor! Não há um conselho com representação dos diversos setores de interesse para gerir os destinos de um fundo que já acumular R$ 3 bilhões. Como se pode ter chegado a tal aberração?
A lei do Fust teria que ser substituida por outra que dissesse simplesmente o seguinte: o conselho (que ainda não existe) do Fust decidirá sobre projetos de inclusão digital nas comunidades, em parceria com os conselhos locais representativos de inclusão digital. E só. O resto decorre... Como dizia meu "compa" Betinho: o povo e seus problemas estão na planície, não no planalto. A inclusão digital pode ocorrer por caminhos tão diversificados que não dá para colocá-la na camisa de força de um projetão centralizado.
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