Autor original: Mariana Loiola
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Convocada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, a próxima Conferência Nacional de Direitos Humanos terá, pela primeira vez em nove edições, caráter deliberativo. Na IX Conferência - que será realizada na Câmara dos Deputados, em Brasília, de 29 de junho a 2 de julho - serão estabelecidas as diretrizes do Sistema Nacional de Direitos Humanos (SNDH). "Nas conferências anteriores, muitas decisões eram tomadas, mas não tinham força de comprometimento. Produzia-se apenas uma lista de sugestões que dependiam da boa vontade dos gestores públicos", conta Paulo César Carbonari, coordenador Nacional de Formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Na próxima edição, a idéia é que, sendo aceitas as diretrizes para o SNDH, o seu cumprimento será obrigatório. Será mesmo? Às vésperas do evento, representantes da sociedade civil e do governo questionam as possibilidades de o evento determinar, efetivamente, avanços para a garantia de direitos humanos no país.
Oscar Vilhena, coordenador executivo da Conectas Direitos Humanos, participará da conferência, mas se diz apreensivo com os caminhos tomados pelo evento. Ele questiona, em primeiro lugar, a agenda do encontro, que tem o SNDH como foco exclusivo. "Pela primeira vez, a conferência é fechada num tema, o que prejudica outros debates importantes", diz.
A proposta do SNDH, de acordo com Paulo César Carbonari, surgiu a partir da avaliação do conjunto de iniciativas implementadas no Brasil após a II Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993 - entre eles, a criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (que depois passou a se chamar Secretaria Especial de Direitos Humanos e no governo atual ganhou status de ministério), da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e do Plano Nacional de Direitos Humanos, além dos planos estaduais.
Em 2001, na VI Conferência Nacional, o MNDH apresentou sua avaliação final, que enfatizava a necessidade de uma articulação mais sistemática dessas iniciativas, por meio de um sistema de proteção aos direitos humanos fundamentado nos Princípios de Paris (documento da Comissão de Direitos Humanos da ONU publicado em 1992). Então, na VIII Conferência, constituiu-se o Grupo de Trabalho Nacional, que ficou responsável pela formulação de propostas para a construção do SNDH. Além disso, ficou decidido que a próxima conferência seria, pela primeira vez, deliberativa.
O GT Nacional (formado por integrantes do governo e da sociedade civil) preparou um documento-base com propostas de ações de promoção, proteção e reparação, em um sistema único e descentralizado, com mecanismos de participação popular e espaço para que as organizações da sociedade civil possam atuar de forma normativa, formulando e monitorando as ações. Durante a IX Conferência, o GT deverá trabalhar em cima desse documento, junto com as sugestões das delegações, para determinar diretrizes de legislação, políticas de ação, articulações da sociedade civil etc.
"A conferência vive um novo processo que estamos chamando de transição", diz Sandra Carvalho, diretora de Pesquisa e Comunicação do Centro de Justiça Global. Com o tema "Construindo o Sistema Nacional de Direitos Humanos", a edição deste ano amplia o envolvimento do poder público e da sociedade civil.
Até então, a organização da conferência estava a cargo da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. Este ano, além de ter uma participação maior do Poder Executivo - tendo em vista a convocação feita pela SEDH -, a conferência conta também com uma maior mobilização para as conferências regionais preparatórias, que ocorreram em quase todos os estados do país. De acordo com Sandra Carvalho, as organizações de base estão participando mais do processo da conferência. "Antes, só as organizações mais conhecidas e estruturadas conseguiam ir para as conferências em Brasília. As outras organizações ficavam à margem desse processo", diz.
As várias conferências regionais estabeleceram prioridades e determinaram a composição das delegações locais - formadas por 40% de membros do governo e 60% de pessoas ligadas a movimentos e instituições não-governamentais. No evento nacional serão discutidas as diversas prioridades das regiões para determinar as diretrizes do SNDH: seus princípios, sua estrutura e sua estratégia de implementação.
Divergências
Maria Helena Rodrigues, coordenadora do projeto de Direitos Humanos, Econômicos e Sociais da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), acredita que o espaço amplo de debates e a grande diversidade de propostas possam gerar dificuldades na hora de tomada das decisões. "Existe o risco de discutirmos temas muito diversos e acabarmos não chegando a muitos acordos nacionais", diz. As discordâncias preocupam também outros representantes da sociedade civil. "É um debate que encontra contradições entre governo e a sociedade civil e dentro da própria sociedade civil", diz Sandra Carvalho.
Segundo Oscar Vilhena, o próprio documento-base apresenta vários problemas para o entendimento da missão e da estrutura do SNDH, entre eles a relação pouco clara entre sociedade civil e Estado. "É claro que pode haver ações conjuntas, mas não se pode esquecer que o papel da sociedade civil não é deliberativo, mas sim de fiscalizar o Estado. Construir um sistema em que o Estado financia as entidades para fiscalizarem as suas ações compromete a autonomia da sociedade civil, a não ser que se crie um fundo público que fique a cargo da sociedade civil", diz.
A autonomia dos órgãos que vão compor o SNDH deverá ser um dos pontos mais discutidos no encontro. "É fundamental que os órgãos - como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), cujo Projeto de Lei está para ser votado no Senado Federal - sejam autônomos e independentes, embora possam contar com apoio do poder público", diz Paulo César Carbonari.
Para Perly Cipriano, subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da SEDH, não há nem haverá discordância durante a conferência. "Já se conhecem as demandas e propostas, que estão no documento-base assinado por governo e sociedade civil. Agora é só construir os mecanismos para tirar essas propostas do papel", diz.
A apresentação das prioridades de atuação da SEDH em uma das mesas da conferência é aguardada com bastante expectativa pelos representantes da sociedade civil. A SEDH vai lançar ainda, durante o evento, o Disque Direitos Humanos (veja o box ao lado).
Um consenso, pelo menos, parece certo: a idéia de que a conferência seja uma boa oportunidade para ampliar o diálogo entre o poder público e as entidades da sociedade civil. "O nosso maior desafio é articular poder público e sociedade civil, de modo que cada um faça a sua parte. Queremos transformar o Brasil em referência na área de direitos humanos. Nos últimos tempos, temos sido referência em violações desses direitos", reconhece o subsecretário da SEDH. Ele diz que entre as maiores preocupações do governo atual estão a erradicação do trabalho escravo, do trabalho infantil e do sub-registro civil, o combate à tortura e ao abuso sexual de crianças e adolescentes e o sistema de proteção às testemunhas.
Paulo César Carbonari cita dois dos passos mais importantes a serem dados pelo governo para o avanço do processo de construção do SNDH: a criação do Conselho Nacional de Direitos Humanos e a implementação efetiva do Plano Nacional e dos planos estaduais. "O Plano Nacional é, por enquanto, apenas uma carta de boas intenções, sem previsão de orçamento, formas de monitoramento, avaliação etc.", analisa.
Para Maria Helena Rodrigues, um dos maiores desafios do governo é desenvolver políticas públicas com o olhar dos direitos humanos. "O Estado dá muita importância a temas como direitos civis e combate ao trabalho infantil e escravo, mas não dá tanta atenção à garantia dos direitos humanos em outras áreas, que envolvem os direitos econômicos, sociais e culturais, como saúde, educação, trabalho, moradia etc.", diz.
Além da conferência
A construção do sistema não se encerra na conferência, ressalta Perly Cipriano. "É preciso criar uma cultura de direitos humanos. E isso é algo demorado, não é simples", afirma. Transformar as diretrizes em ações é uma tarefa que também exige a mobilização da sociedade civil, segundo Paulo César Carbonari. "A conferência vai dar o caminho, mas percorrê-lo vai depender da mobilização da sociedade civil organizada, que deverá fazer pressão política", observa.
Oscar Vilhena enfatiza que, embora a intenção de discutir o SNDH seja válida, outros problemas - que são urgentes e merecem mais atenção da sociedade civil - estão sendo abandonados nesta conferência, como as reformas das polícias e do Judiciário. Na sua opinião, as normas e instituições que formam um sistema de proteção aos direitos das pessoas no Brasil - a Constituição Federal, leis especiais como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso e os tratados internacionais assinados pelo Brasil que regem os direitos humanos - não estão sendo considerados. "Não se fala no sistema já existente, que poderia ser reformulado e melhorado. O Estado brasileiro tem um problema institucional básico de violações de direitos humanos. Nós nos auto-enganamos querendo criar um outro sistema, enquanto abandonamos uma agenda não cumprida. Reformar o sistema existente é o que deveria ser prioridade", diz.
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