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Momento de mobilização

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Artigos de opinião

Augusto de Franco*

O Senado Federal acabou de aprovar, no último dia 29 de junho de 2004, o Projeto de Lei Nº 7 de 2003, que dispõe sobre o registro, a fiscalização e o controle das organizações não-governamentais e dá outras providências. A matéria já foi enviada para votação na Câmara dos Deputados. O projeto original foi apresentado ao Senado pela CPI das ONGs, presidida pelo senador Mozarildo Cavalcanti (RR), no começo do ano passado. Mas o que foi aprovado pelo Senado, em votação simbólica, foi um substitutivo de autoria do senador César Borges (BA).

O texto original era claramente inconstitucional ao exigir uma espécie de autorização para o funcionamento de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos. O substitutivo aprovado é melhor porque aboliu essa restrição gritante às liberdades coletivas. Mas não é bom, porque manteve outras restrições antidemocráticas, bem como manteve a ingerência de agentes públicos em assuntos privados coletivos dos cidadãos, estabeleceu confusões conceituais graves, criou mais burocracia etc. Em ambas as versões o projeto de lei em questão é, portanto, um instrumento de enfraquecimento da sociedade civil, como pretendo mostrar a seguir.

Ao final deste parecer, reproduzo o projeto de lei original e o substitutivo aprovado pelo Senado no último dia 29 de junho e, logo abaixo, apresento a análise que preparei como uma forma de sensibilizar as pessoas e instituições que porventura estiverem de acordo com a argumentação apresentada a contribuírem para barrar a aprovação de tal diploma conservador e regressivo.

Violando a liberdade coletiva dos cidadãos

No seu primeiro artigo, o substitutivo aprovado pelo Senado já comete uma confusão conceitual grave, que ameaça a liberdade de organização dos cidadãos. Ele diz assim: “São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento de entidades de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos e normas estatutárias visem a fins de interesse público, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”.

Tal artigo apenas repete, piorando, a redação do Artigo 5º da Constituição Federal, que, no seu inciso XVIII, estabelece que a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas, independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.

Qual é a confusão? A confusão é dizer que o direito de organização existe apenas para aquelas organizações cujos objetivos e normas estatutárias visem a fins de interesse público. Isso quer dizer que as associações de cidadãos que não visem a fins de interesse público não são livres? Mas o direito de associação dos cidadãos deve valer para quaisquer fins, livremente decididos por seus associados.

O Estado não pode estabelecer a ditadura da esfera pública sobre a vida coletiva privada. Como ficarão, por exemplo, os grupos de cidadãos que resolvem se associar para observar pássaros ou para jogar bridge? Parece óbvio que associações como essas não visam a fins de interesse público, comuns a toda a sociedade, senão coletivos, sem fins lucrativos e, ainda assim, legitimamente privados. Segundo o substitutivo em questão não há mais liberdade de organização para tais fins?

Ora, se o Estado não garante liberdades coletivas privadas, então não há mais liberdade. Isso é o mesmo que rasgar o Artigo 5º da Constituição Federal.

Além disso, o substitutivo em questão não define o que seriam “fins de interesse público”. Nem faz referência a nenhuma lei que estabeleça tal definição, embora já exista, em nosso arcabouço legal, pelo menos uma lei (a Lei 9.790, de 23 de março de 1999, das Oscips) que lista finalidades que podem ser consideradas como de interesse público).

Isso significa que o funcionário responsável do Ministério da Justiça, a quem caberá registrar uma organização no imaginado “CNO” (Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais) instituído pelo Artigo 3 do Projeto de Lei em exame, deverá determinar arbitrariamente o que é e o que não é “fins de interesse público”? Seria um absurdo.

Pode-se argumentar que tal funcionário deverá seguir a legislação pertinente. Neste caso, se lançar mão da Lei 9.790/99 – o único diploma, ao que eu saiba, que define por extensão o que é finalidade de interesse público e o que não é – estará violando um direito. Pois estará excluindo pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que têm legítimas finalidades coletivas porém privadas. Estará dizendo que não é livre a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento, por exemplo, de associações comerciais e profissionais, instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais ou confessionais e todas as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um circulo restrito de associados ou sócios. (Para conferir o que estou dizendo basta ler os Artigos 2º e 3º da Lei 9.790 de 23 de março de 1999).

Restringindo o escopo e as possibilidades de ação da sociedade civil

De qualquer modo, ao não dizer onde está definido o que seja “fins de interesse público”, o substitutivo aprovado pelo Senado restringe o escopo das pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, já reconhecidas pelo Estado em outros diplomas legais (como, por exemplo, na citada Lei 9.790 de 1999 – que instituiu a qualificação das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, as Oscips – a qual reconhece cerca de vinte finalidades diferentes).

Só podem ser “ONGs”, segundo a definição esdrúxula do artigo em tela, as pessoas jurídicas de direito privado que têm “fins de interesse público”? Como saber isso? A que tipo de “interesse público” se refere este primeiro artigo? “Público” stricto sensu ou latu sensu?

Um centro de pesquisa genética não vinculado a instituição acadêmica teria “fins de interesse público”, tal como uma associação de bairro? Uma fundação privada que financia pesquisas de matemática pura, sem qualquer relação com instituições de ensino superior e pesquisa científica e tecnológica (regidas pela Lei 8.958 de 20 de dezembro de 1994) teria “fins de interesse público”, tal como uma Oscip de apoio a um Fórum de Desenvolvimento Local? Ou será que a primeira não cabe nesta lei? E se não cabe, cabe aonde (ou seja, em qual cadastro “único” será registrada, como quer o projeto de lei no seu Artigo 3º, como veremos adiante)? A sociedade civil não pode mais se organizar autonomamente para fomentar estudos e pesquisas? Vamos agora proibir a livre organização dos cidadãos para investigar, inovar, experimentar e criar, em áreas que não são (ou não são pelo menos consideradas) de “interesse público”?

Uma rádio comunitária teria “fins de interesse público”, tal como uma associação de prevenção a AIDS? Se dissermos que sim, tomando a expressão “interesse público” no seu sentido mais amplo, então qual é a intenção e a extensão do conceito, ou seja, o que e quem não teria “fins de interesse público”? E se tudo pode caber em “fins de interesse público”, para quê serve a exigência? Mas se, ao contrário, muita coisa não cabe em “fins de interesse público”, o que fazer com as milhares de associações e fundações que não cabem?

Um clube de jogadores de golfe teria “fins de interesse público”? À primeira vista, parece que não, mas, neste caso, como ficariam aqueles milhares de clubes recreativos, literários e esportivos que são pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos? Passariam a ser, todos, ilegais?

Apenas a análise deste primeiro artigo já revela que tanto quem redigiu o projeto de lei original quanto quem elaborou o substitutivo, não têm muita intimidade com a diversidade da sociedade civil ou do chamado terceiro setor.

Formalizando uma denominação inadequada

O Artigo 2º também é problemático. Ele diz assim: “As organizações não-governamentais (ONGs) prestarão contas anualmente dos recursos recebidos por intermédio de convênios ou subvenções de origem pública ou privada, inclusive doações, ao Ministério Público, independentemente da prestação de contas aos respectivos doadores”.

Há aqui, antes de qualquer coisa, uma falha flagrante de técnica de redação legislativa, que deveria envergonhar o Senado Federal. A denominação “organização não-governamental (ONG)” aparece do nada, é introduzida no segundo artigo do projeto de lei sem qualquer definição e sem qualquer menção à qualquer diploma legal que a conceitue (o que, aliás, por não existir mesmo em nosso acervo legal, deveria obrigar o texto do projeto a estabelecer uma definição).

Mas, para além desse erro primário, o segundo artigo é muito problemático. Pelo menos por três motivos, como veremos a seguir.

Em primeiro lugar porque formaliza a denominação imprecisa ‘organização não-governamental’ (ONG), quando já existem outros diplomas legais (a lei 9.790 de 1999, por exemplo) que empregam expressões mais adequadas, como ‘organização da sociedade civil’. A rigor uma Câmara de Vereadores e uma empresa são organizações não-governamentais. Pode-se retrucar que uma Câmara de Vereadores é uma instituição de direito público e que uma empresa tem fins lucrativos, escapando, ambas, do enquadramento estabelecido indiretamente no primeiro artigo do projeto de lei. Mas se é assim, por que manter a expressão ‘ONG’ ao invés de apenas referir-se a ela?

Confundindo ao invés de esclarecer

Mas o segundo artigo é problemático, em segundo lugar, porque confunde ao invés de esclarecer ao estabelecer uma norma que não é inequívoca. Existe uma variedade imensa de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos que não podem ser consideradas, se quisermos levar em conta a origem da expressão e o seu uso costumeiro, como ‘ONGs’. Por exemplo, as fundações de direito privado. Outro exemplo: as associações de benefício mútuo. Mais um exemplo: as associações profissionais ou comerciais.

A menos que não exista mais o direito privado coletivo para pessoas jurídicas sem fins lucrativos com finalidades privadas, como parece querer o projeto de lei em questão – o que apenas confirma a análise que fizemos acima do seu primeiro artigo. Mesmo neste caso, porém, o artigo é problemático porque obriga que se denominem como ‘ONGs’ instituições com finalidades públicas que, considerada a história e o uso corrente dessa denominação, assim não se reconhecem e nem desejam ser reconhecidas, como as já citadas fundações de direito privado e uma variedade imensa de outras entidades com fins de interesse público.

Estabelecendo um interferência estatal indevida em assuntos privados

O segundo artigo é problemático, em terceiro lugar, ao exigir que as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos – obrigatoriamente enquadradas como “ONGs” pelo substitutivo aprovado pelo Senado – prestem contas anualmente dos recursos recebidos por intermédio de convênios ou subvenções de origem pública ou privada, inclusive doações, ao Ministério Público, independentemente da prestação de contas aos respectivos doadores.

Há aqui uma confusão flagrante entre esfera pública estatal e esfera privada. Recursos de natureza público-estatal devem ser, obrigatoriamente, fiscalizados por órgãos estatais (Poder Executivo, Ministério Público ou Tribunal de Contas). Mas recursos de natureza privada não necessariamente.

Como já assinalou, corretamente, o “Parecer sobre o PLS Nº 7 de 2003” elaborado pela Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais), referindo-se a artigo do projeto de lei original, mantido no substitutivo aqui analisado, “o Ministério Público já é competente para analisar as contas de qualquer associação, mediante denúncia de irregularidades. Contudo, a realização de uma fiscalização “a priori” das associações pelo Ministério Público deve estar prevista no Código Civil e não em legislação esparsa. Além disso, cabe ressaltar que o Ministério Público não têm atualmente estrutura operacional para cumprir ao disposto nesse artigo”.

Por qual motivo deveria o Ministério Público, na ausência de evidências de irregularidades, contravenções ou crimes, fiscalizar a movimentação de recursos privados para fins públicos ou, mesmo, para fins privados, matéria que só interessa aos cidadãos associados? Com quê direito um órgão estatal faria isso? Se um órgão estatal pode se imiscuir na vida de uma associação composta por um pequeno grupo de cidadãos que resolveram se associar para, por exemplo, jogar bocha ou para declamar sonetos de Augusto dos Anjos, por quê não poderia também fazê-lo para fiscalizar os gastos de uma família ou de um indivíduo? É isso que queremos? Fiscalizar a vida privada? Instaurar o império da esfera pública-estatal?

A menos que esteja sendo cassado o direito de associação para fins privados não-lucrativos. Se assim for, então, mais uma vez, se confirma o comentário ao primeiro artigo apresentado acima.

E o que se deve entender por “recursos”? Apenas recursos financeiros? E se os recursos forem não-financeiros, como, por exemplo, o tempo de trabalho voluntariamente doado a uma associação? Deveria igualmente o Ministério Público fiscalizar tais recursos? Como poderia fazê-lo?

O projeto de lei nada diz sobre os efeitos gerados por tal obrigação de prestação de contas ao Ministério Público. Se o Ministério Público não aceitar a prestação de contas de recursos privados recebidos por uma associação privada, fará o quê? Cassará a “licença de funcionamento” da “ONG”? Parece que não, pois a lei não permite (ou será que agora vai permitir?). Moverá então uma ação judicial para cassar o registro da “ONG”? Para quê, se qualquer cidadão é bastante competente para fazê-lo? Ou, o que é pior, ficará tutelando a associação, opinando sobre como ela deve ou não deve funcionar? Com base em quê critérios? Os mesmos critérios adotados para fiscalizar recursos públicos? Mas como, se tais recursos são privados? Onde está a lei que normatiza os padrões aceitáveis de gestão de recursos privados por pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos?

Tudo isso, como é óbvio, instaura uma interferência indevida de agentes públicos em assuntos privados.

E os recursos de natureza pública não-estatal? Talvez seria esperar demais dos elaboradores do projeto de lei e do substitutivo aqui analisado que reconhecessem a existência de recursos públicos não-estatais, mas tais recursos existem, a não ser enquanto não sejam provenientes de receita fiscal, de patrimônio público ou de negócios governamentais latu sensu. Seria o caso, por exemplo, dos recursos obtidos por uma campanha de doações em prol de objetivos públicos, do tipo da campanha “Criança Esperança”. Neste caso talvez não fosse insensato cogitar de uma participação de um órgão estatal (como o Ministério Público) na fiscalização de tais recursos, mas, mesmo assim, isso deveria ser feito em parceria com outros órgãos não-estatais considerando-se a natureza não-estatal desses recursos. Tal institucionalidade, entretanto, ainda não está prevista pela nossa arquitetura legal.

Criando mais burocracia

O Artigo 3º do substitutivo aprovado, no seu caput, diz assim: “Fica criado o Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais (CNO), administrado pelo Ministério da Justiça, no qual serão inscritas todas as Organizações Não-Governamentais (ONGs) atuantes, a qualquer título, no país”.

Ora, como avaliou corretamente o já citado parecer da Abong “existem inúmeros cadastros e bancos de dados públicos com informações sobre ‘as associações e as fundações’. O principal deles é a base de dados da Receita Federal originada da Declaração de Informações da Pessoa Jurídica e a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais). A Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça também possui um amplo cadastro de organizações não-governamentais. Por último, o CNAS (Conselho Nacional da Assistência Social) tem registrado mais de 13.000 entidades. A criação desse cadastro, ao invés de atender ao interesse público (maior conhecimento do universo das ONGs), irá novamente criar um duplicidade de obrigações e burocracias desnecessárias, em um contexto com inúmeros cadastros que não se comunicam. O problema não é a falta de informações prestadas pelas associações e fundações, mas sim a falta de interesse do poder público em utilizar e sistematizar os dados disponíveis”.

Pode-se acrescentar que fica evidente que tanto quem redigiu o projeto de lei quanto quem elaborou o texto substitutivo não têm a mínima noção de como funcionam os cadastros no Brasil e nem mesmo de como funciona a estrutura governamental nas suas relações com o chamado terceiro setor.

O departamento responsável por emissão de títulos de Utilidade Pública e de concessão de qualificação de Oscips do Ministério da Justiça não tem a menor condição de efetivar tal determinação, sobretudo se, como dá a entender, embora nebulosamente, o projeto de lei, terá que avaliar substantivamente se a organização postulante tem “fins de interesse público” e, além disso, terá que pelo menos ler os esclarecimentos prestados por ela sobre “suas fontes de recursos, linhas de ação, tipos de atividades... modo de utilização de seus recursos, política de contratação de pessoal, nomes e qualificação de seus dirigentes e representantes e... outras informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos” (como quer o primeiro parágrafo desse terceiro artigo do substitutivo).

Seria necessária uma burocracia imensa, com pessoal bem qualificado, para apreciar o mérito do pedido de cada associação ou fundação postulante à “ONG” e, além disso – imagina-se – fazer as diligências necessárias para apurar se as informações prestadas são verídicas. Por último, seria necessário instituir uma espécie de tribunal para julgar a montanha de recursos administrativos que se avolumarão quando as diligências e os julgamentos de mérito executados por funcionários governamentais forem contestados pelas associações postulantes.

Como a estrutura governamental, sobretudo do Ministério da Justiça, é muito pequena para enfrentar tal desafio, o resultado prático e objetivo da aprovação desse projeto de lei será o aumento do tamanho das filas de espera de associações e fundações para obter sua autorização para funcionar. Sobretudo porquanto o projeto de lei não estabelece um prazo para a outorga do registro (ou inscrição) no tal “CNO”.

Portanto, ao invés de facilitar a vida das chamadas “ONGs” e tentar induzi-las a se engajar em ações com finalidades públicas, alavancando novos recursos para o desenvolvimento do Brasil, vamos, pelo contrário, desestimular a sua criação e colocar mais empecilhos ao seu funcionamento.

Dificultando a formalização do terceiro setor

O § 1º do Artigo 3º do substitutivo aprovado pelo Senado diz assim: “Por ocasião da inscrição de que trata o caput deste artigo, a Organização Não-Governamental (ONG) prestará esclarecimentos sobre suas fontes de recursos, linhas de ação, tipos de atividades, de qualquer natureza, que pretenda realizar no Brasil, o modo de utilização de seus recursos, a política de contratação de pessoal, os nomes e qualificação de seus dirigentes e representantes e quaisquer outras informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos”.

A inconstitucionalidade, se não é flagrante, está presente. Ao exigir a “prestação de esclarecimentos” sobre todos esses detalhes, o direito de associação passa a estar condicionado por uma avaliação estatal “de seus objetivos” e regime de funcionamento, o que contraria a norma constitucional que veda ao Estado interferir no funcionamento desse tipo de organização. Entende-se que, não violando a Constituição, o Código Civil e o Código Penal e a legislação pertinente derivante ou conexa, é de livre escolha dos cidadãos associados decidir sobre finalidades e regime de funcionamento de suas formas organizativas.

Parece claro que a decisão do funcionário governamental encarregado de registrar as “ONGs” no tal “Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais” será inexoravelmente arbitrária, porquanto não existe uma legislação que estabeleça normas do que seria aceitável, para uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, em todas as áreas assinaladas.

Ou seja, não existem padrões gerais e objetivos para estabelecer: i) quais fontes de recursos seriam admitidas; ii) quais linhas de ação seriam permitidas; iii) quais tipos de atividades seriam autorizadas; iv) qual modo de utilização de recursos deveria ser praticado; e v) qual política de contratação de pessoal deveria ser adotada.

Além disso, o parágrafo em tela exige ainda a prestação de “quaisquer outras informações que sejam consideradas relevantes para a avaliação de seus objetivos”. Ora, quem determinará – e com base em quê – essa lista de informações relevantes? Quem decidirá o que é e o que não é relevante para avaliar os objetivos da associação? Com base em que critérios fará isso? E, finalmente, por que o Estado (leia-se: o funcionário governamental encarregado, na prática, de sancionar o direito de organização, conferindo o tal registro no “CNO”) deverá avaliar os objetivos de uma associação não-estatal?

Pelo texto do projeto de lei depreende-se que tudo isso deverá ser regulamentado posteriormente. Caberá, portanto, ao governo, ditar – por intermédio de um regulamento, seja decreto ou portaria ou qualquer outro instrumento – as finalidades e o regime de funcionamento de uma pessoa jurídica de direito privado? Não parece claro que isso confere ao governo uma dose excessiva de arbítrio?

E se não for tudo regulamentado por alguma norma governamental (porquanto será mesmo impossível fazer isso), então também parece claro que tal dispositivo do projeto de lei confere ao funcionário encarregado de “autorizar” o funcionamento de “ONGs” – pois é isso que ele fará na prática, a despeito de toda aquela declaração de princípios do Artigo 1º, uma vez que poderá não aceitar a inscrição de uma associação ou fundação no “CNO” já que a projeto não estabelece, como deveria, que tal inscrição é automática, sendo a outorga do registro (ou inscrição) considerada ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos pela lei – um poder inaceitável de arbítrio em regime democrático.

Ora, para citar mais uma vez o parecer da Abong, “já existe atualmente uma estrutura de registro e vários procedimentos para a criação de uma associação ou fundação, a saber: 1) Toda associação ou fundação para iniciar suas atividades deve-se registrar no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, que é o órgão público competente para tal registro, segundo a Lei 6015/73 (Lei de registros públicos) e de acordo com as Leis de Organização Administrativa e Judiciária dos Estados e do Distrito Federal; 2) Para ter movimentação financeira deve inscrever-se no CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) junto à Receita Federal; 3) Para se estabelecer em um espaço físico deve inscrever-se no CCM (Cadastro de Registros Mobiliários) junto à Prefeitura onde se encontra sua sede; 4) No caso das Fundações, além de cumprirem todas as obrigações acima citadas, devem obter previamente a autorização do Ministério Público, que deverá aprovar os seus atos constitutivos antes do registro”.

Acrescente-se que, como a legislação que estabelece os procedimentos acima não será abolida pela lei pretendida, estamos criando mais uma dificuldade para a formalização do chamado “terceiro setor informal”.

Estima-se que existam hoje no Brasil cerca de 250 mil organizações da sociedade civil ou do chamado terceiro setor. Desse total uma porcentagem muito pequena está formalizada como pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos. E dentre as formalizadas, registradas em cartório, temos menos de 20% que possuem algum título ou qualificação conferida pelo Estado (seja Utilidade Pública federal, estadual ou municipal, registro no CNAS, Certificado de Associação Beneficente de Assistência Social ou Oscip). O que fazer com duas centenas de milhares de organizações informais? Vão estar agora fora da lei, porque não podem se registrar no tal “Cadastro Nacional de Organizações Não-Governamentais (CNO)” que o projeto de lei quer instituir?

E o que acontecerá se, por exemplo, uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos não obter o registro no imaginado “CNO” e continuar funcionando? Será o próprio Ministério da Justiça que moverá uma ação contra tal associação ou fundação visando fechá-la judicialmente? Se for este o caso, prevê-se que o governo terá que contratar alguns milhares de funcionários para executar a tarefa. E, mesmo assim, de nada adiantará. Pois será muito improvável que juízes ou tribunais resolvam afrontar o Artigo 5º da Constituição Federal, que garante o livre direito de associação.

Se um projeto de lei absurdo como esse for aprovado, parece evidente que a nova lei será desmoralizada por um amplo movimento, não de desobediência, mas de obediência civil à Constituição.

Tentando evitar o desastre

Este parecer é uma denúncia e um chamamento à mobilização de todos para fazer o que for possível para barrar, na Câmara dos Deputados, a aprovação de um diploma tão regressivo no que tange aos padrões de relação entre o Estado e a sociedade.

É a hora do terceiro setor ou de as organizações da sociedade civil – quer as que se denominam ou são denominadas como “ONGs”, quer as demais associações e fundações – se mobilizarem para impedir que seja cometido tamanho retrocesso em nosso país.

Do projeto de lei em questão, sobretudo na sua versão original, exala um odor punitivo, restritivo, que passa uma impressão de desejo de vingança de alguém ou de algum grupo que foi prejudicado pela ação das chamadas ONGs. Fala-se que por trás do projeto original existiram intenções ocultas de pessoas envolvidas com interesses do garimpo e de madeireiras. Interesses que estariam sendo contrariados, sobretudo na região amazônica, pelas denúncias de ONGs ambientalistas e indigenistas. Nada sei sobre isso. Prefiro assinalar a mentalidade estatista de alguns parlamentares e, talvez, de alguns governantes, como a principal responsável por tamanho retrocesso, além, é claro, da sua grande ignorância sobre o que é o terceiro setor hoje no Brasil e no mundo.

O projeto de lei original ignorava completamente todos os esforços que foram feitos nos últimos anos, pelo Governo Federal em parceria com o Congresso Nacional, com o Ministério Público, com os Tribunais de Contas e com centenas de organizações da sociedade civil, em prol da mudança do marco legal do terceiro setor. Sobretudo ignorava a questão central e primeira de qualquer reforma legal do ponto de vista do Estado, que é criar critérios para caracterizar organizações originalmente privadas com finalidades e regime de funcionamento públicos, com o intuito de orientar os governos no tocante à celebração prioritária de convênios e parcerias com agentes coletivos que, embora não sendo estatais, podem contribuir com o desenvolvimento do País ao assumirem novas responsabilidades, introduzirem novas competências e habilidades, agregarem novos pontos de vista e alavancarem novos recursos, somando esforços e extraindo sinergias de diferentes tipos de agenciamento para o enfrentamento dos grandes impasses estratégicos do Brasil na área social e em outras áreas.

O substitutivo aprovado pelo Senado corrigiu em parte tais deficiências. Mas continuou, tal como o texto original, a ignorar os direitos fundamentais das organizações privadas e os seus interesses legitimamente privados sem fins lucrativos, abrindo um perigoso precedente ao restringir as liberdades coletivas e, enfim, a democracia.

Por isso, não podemos ficar parados neste momento. É preciso enviar cartas aos parlamentares, conceder entrevistas, publicar artigos e descobrir outras formas de manifestação e pressão para evitar o desastre que seria a aprovação de uma lei como essa pela Câmara dos Deputados. É preciso ver também por que o governo federal está deixando um assunto dessa gravidade correr solto e cobrar do presidente da República, do seu partido e da base aliada uma posição.

Se nada disso der certo, cabe-nos iniciar um movimento de obediência civil à Constituição, conclamando as pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos a não se submeterem a tamanho desatino, mesmo que a lei venha a ser aprovada.

* Augusto de Franco é coordenador geral da Agência de Educação para o Desenvolvimento (AED).



Anexos (ver nesta página, à direita)

O Projeto de Lei nº 7 de 2003 foi proposto pela Comissão Parlamentar de Inquérito "ONGs". Essa CPI foi instalada em 19/02/2001 no Senado Federal com o objetivo de apurar denúncias veiculadas na imprensa a respeito da atuação irregular de organizações não governamentais, sobretudo aquelas que atuam com questões ambientais e indígenas na região amazônica, e encerrou seus trabalhos em 19/12/2002.






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