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Expressão que liberta

Autor original: Mariana Abreu

Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor





Expressão que liberta


O Projeto é antigo, data de 1956. A idéia, no entanto, continua inovadora. Na Casa das Palmeiras, clínica de reabilitação psiquiátrica fundada pela Dra. Nise da Silveira, as atividades expressivas, como teatro e pintura, não são apenas um passatempo, mas a própria terapia. Na década de 50, Nise se preocupava com o alto índice de reinternações dos pacientes do hospital em que trabalhava - cerca de 70%. Era um indício de que algo estava errado no tratamento usado na época - cujos métodos, como lobotomia e choque elétrico, a lembravam da tortura vista nas prisões da ditadura. Segundo a psiquiatra, "um destes possíveis erros estaria na saída do hospital, sem nenhum preparo adequado do indivíduo, quando apenas cessavam os sintomas mais impressionantes do surto psicótico".



Foi então que Nise teve a idéia de criar um tratamento intermediário entre a internação e a alta completa, para egressos de estabelecimentos psiquiátricos, em regime de externato. Uma espécie de adaptação até que pudessem retomar suas vidas normalmente. Assim surgiu a Casa das Palmeiras, que hoje funciona em Botafogo, zona sul da capital fluminense.


A principal característica da instituição, segundo Walter Melo, coordenador técnico da Casa, é a liberdade total. "Aqui as portas ficam abertas diariamente das 13h às 17h e os clientes podem entrar e sair quando bem entenderem", diz ele. A liberdade é considerada peça fundamental para o êxito da terapia. "A própria Nise sempre dizia que as atividades têm que dar prazer. Se for por obrigação, a pessoa não faz, ou faz sem vontade, o que também não adianta", afirma Walter.


Regras existem, criadas em conjunto pela equipe técnica e pelos clientes. "Queremos que eles participem ativamente do tratamento. Por isso mesmo não os chamamos de pacientes, o que lembra uma postura passiva. Queremos que eles também sejam responsáveis pela recuperação". O incentivo funciona, e o próprio Walter se impressionou quando reivindicaram a saída de um monitor de teatro. "Eles disseram que o monitor era muito autoritário, atitude contrária a toda a concepção de terapia adotada aqui", lembra o coordenador.


Não parece difícil ter vontade de freqüentar a Casa. Quando chegam, os clientes têm à sua disposição seis ateliês permanentes: pintura, colagem, xilogravura, tecelagem, papel machê e modelagem. Há as atividades de grupo, como teatro e música, que são as únicas com dia e hora marcados, mas nem por isso menos requisitadas. No meio da tarde, pausa para o lanche e, vez por outra, um passeio programado. Na última semana, por exemplo, foram todos contemplar suas obras, exibidas na exposição Mar do Inconsciente, em cartaz na galeria do BNDES, no Rio de Janeiro.


Quem quiser ainda pode cuidar do visual no salão de beleza, pelas mãos dos próprios monitores e estagiários. O trato na aparência ajuda a fortalecer a auto-estima, que costuma estar enfraquecida quando chegam à Casa.


Walter Melo explica como funciona a terapia: "A pessoa fica confusa por causa de uma grande carga emocional, algo que sentiu ou viveu que a desestabilizou emocionalmente. Por meio das atividades expressivas, ela descarrega essa emoção e a despotencializa . Assim as crises vão diminuindo e a pessoa vai se estabilizando".


Regularmente, a equipe técnica organiza em série as peças produzidas, para avaliar o progresso de cada cliente. Temas que se repetem e vão sumindo aos poucos, desejos inconscientes expressos em figuras e objetos: tudo tem um sentido e é analisado de acordo com teorias psiquiátricas. Os resultados Walter conta com satisfação: hoje o índice de reinternação dos clientes da Casa das Palmeiras é praticamente nulo. "O número diminui drasticamente e geralmente chega a zero. Tivemos um cliente que chegou aqui com um histórico de 13 internações e depois que começou o tratamento conosco não teve mais nenhuma", diz ele.


Centros de Atenção


Outros dois grandes objetivos de Nise ao fundar a Casa eram chamar a atenção do poder público para que mudasse o tratamento nos hospitais públicos e fazer com que as atividades expressivas não fossem mais encaradas como meros coadjuvantes, mas como uma psicoterapia não-verbal. Para a última meta ser alcançada, ainda falta um trabalho de conscientização. O primeiro objetivo, por outro lado, já foi plenamente atingido. "A Nise falava sempre: ‘um dia o governo vai olhar pra gente e ver que dá certo’. Em 1987, a Ana Pitta, então coordenadora de Saúde do governo e que havia sido médica na Casa das Palmeiras, implementou o modelo da Casa nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) de São Paulo", conta Walter.


De lá pra cá, praticamente todos os CAPs atuam do mesmo modo e conseguiram também reduzir o índice de reinternações. Hoje existem oito centros apenas no Rio de Janeiro e mais de 500 no Brasil. A instituição também serviu de modelo para a criação das clínicas privadas hoje chamadas de hospitais-dia. O aumento no número de estabelecimentos deste tipo diminuiu a demanda da Casa das Palmeiras, que já chegou a ter cem clientes na lista de espera, sem ter para onde encaminhá-los. A procura, porém, continua grande, principalmente porque a Casa é uma instituição sem fins lucrativos. Lá, paga quem pode e quanto pode. O índice de gratuidade chega a 80%, por isso a maior parte das despesas é paga com recursos recebidos de patrocínios e doações.


Nise da Silveira completaria cem anos em 2005 e certamente estaria orgulhosa da continuidade do seu trabalho, assim como a Casa se orgulha de sua fundadora. Tanto que as homenagens ao seu centenário serão antecipadas com a realização, em setembro, do 1º Congresso Brasileiro Nise da Silveira, organizado em parceria com o Instituto Franco Basaglia, responsável pelo gerenciamento dos CAPs. As quatro principais mesas de debate são um espelho da atuação da homenageada: clínica, arte, política e vida de Nise da Silveira.


Mariana d' Abreu

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