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Vida e dignidade em questão

Autor original: Mariana Loiola

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Vida e dignidade em questão


A decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), que concedeu liminar autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia foi comemorada por diversos setores da sociedade. A liminar foi favorável à ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), que defende a tese de que é uma violação da dignidade obrigar a mulher a levar até o fim uma gravidez, mesmo sabendo que ela é inviável.

Nos casos de anencefalia (ausência de um hemisfério cerebral ou de ambos) não há chance de vida após o nascimento e, em 50% dos casos, os fetos morrem ainda dentro do útero. Por esse motivo, para a CNTS, não se trata de uma ação sobre aborto, mas sobre antecipação de parto. A decisão é provisória e depende de confirmação no plenário do STF.

Para Debora Diniz, diretora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – entidade que assessorou a CNTS na ação apresentada ao STF –, discordar dessa decisão é "ignorar a experiência de tortura dessas mulheres".

Mas nem todos concordam com a decisão do ministro. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) pediu a cassação da liminar, no último dia 8 de julho. Em nota sobre a decisão assinada pelo secretário-geral, Dom Odilo Pedro Scherer, a entidade manifesta sua posição contrária à interrupção da gravidez nos casos de anencefalia e se declara "a favor da vida e da dignidade do ser humano, não importando o estágio do seu desenvolvimento, ou a condição na qual ele se encontre".

A Rets procurou os representantes da Anis e da CNBB para conhecer melhor os seus diferentes argumentos.

Rets - Há uma discussão ética em torno da decisão do STF. Quando, afinal, começa a vida? É justo encerrá-la prematuramente, mesmo quando a chance de sobrevivência fora do útero é nula?

D. Odilo Pedro Scherer - De fato, esta é a grande questão em jogo: quando começa a vida humana? Os fetos humanos já são vidas humanas e seres humanos? Na convicção moral da Igreja, apoiada em boas razões científicas e filosóficas, a vida humana começa na fecundação. Daí por diante acontecem modificações de ordem quantitativa, mas não qualitativa. Aquilo que foi gerado já é um ser humano e não será outra coisa. Portanto deve ser considerado como tal a partir desse momento.

A vida humana deve ser respeitada sempre, não importando o estágio do seu desenvolvimento, a condição em que alguém se encontra, os anos, dias ou minutos que tem para viver. Por isso não é lícito encerrá-la prematuramente, mesmo quando ela não tivesse nenhuma chance de sobreviver fora do útero da mãe. Mas devo observar que a decisão, que aqui é o objeto de discussão, não foi tomada pelo STF, mas apenas por um ministro do STF, de maneira solitária. Tal decisão suscitou muitas perplexidades, por causa da relevância da matéria que está em jogo: a vida ou a morte de seres humanos.

Debora Diniz - Esta é uma pergunta para a qual não há qualquer possibilidade de resposta única. Se apelarmos para o Direito brasileiro, não temos uma definição sobre "quando se inicia a vida humana". Se formos buscar inspiração nas religiões, teremos várias possibilidades de respostas, para diferentes situações e para diferentes espécies de animais. Se formos, ainda, para a ética, teremos outra infinidade de respostas. Há éticas deontológicas, feministas, pragmáticas, entre uma pluralidade de correntes que jamais me permitirá lhe responder categoricamente sobre o início da vida. Quem assim o fizer, desconfie, é antes um ato de fé que uma reflexão ponderada sobre a diversidade de argumentos neste campo.

Você poderia me contra-argumentar, "ora, a biologia responde quando a vida se inicia". Mas isso é apenas uma parte da resposta e, acredite, a que menos nos interessa aqui. Dizer que um conjunto de células contém a pulsão da vida é ser meramente descritiva de fatos. É assumir um discurso evolucionista simplório que acredita que dos fatos se deduzem os sentidos. O mundo dos valores, das idéias morais e da ética é mais sofisticado do que isso. Você quer saber é sobre o mundo dos sentidos nesta sua pergunta. Ou seja, sua pergunta é sobre em que momento e por que passamos a considerar que um óvulo fecundado deve ser valorado com estatuto social de um cidadão, ou seja, com interesses, direitos e proteções.

A única resposta possível para sua pergunta, portanto, é assumir que conduzir este debate pela discussão sobre o início da vida é a pior escolha. Iremos discutir, longamente, premissas morais e expressões de fé e deixaremos de lado o fundamental neste tema: que estamos tratando de um feto sem qualquer possibilidade de vida extra-uterina. O feto anencefálico não sobrevive ao parto, sendo que pelo menos 50% deles morrem ainda intra-útero. Estamos, nesta liminar do STF, falando somente deste tema.

Nesse sentido, minha sugestão é levarmos a discussão para o único campo possível de formarmos alguns acordos éticos. Não temos consenso sobre quando inicia a vida, mas temos, sim, consenso ético e factual sobre como se define a morte. A definição de morte que lhe proponho é simples: está morto quem não está vivo. O caso do feto anencefálico é paradigmático para entender isso. Se você ainda gostar de argumentos jurídicos, use a lei de transplantes brasileira, que considera a falta de atividade cerebral o critério para a definição de morte.

Não se luta em torno do aborto pela defesa de um conjunto de células. Aqueles que sustentam a imoralidade do aborto argumentam que há uma expectativa de vida, uma vida potencial a partir destas células. A defesa do feto, então, se justificaria pela expectativa de que o feto se transforme em um bebê. Neste caso da anencefalia, não há. Não se defende células por células. Só alguns poucos exagerados e apaixonados na matéria, mas não é este nosso ponto. Por isso, digo que podemos, e devemos, aproximar o debate do campo da definição de morte e não da definição sobre quando inicia a vida.

Por isso a pergunta não deveria ser se é justo ou não encerrar uma vida prematuramente. Como disse, vida é um conceito plástico, e neste caso o absoluto da morte imediata e eminente converte qualquer retórica sobre o início da vida na fusão do espermatozóide e do óvulo em algo sem sentido. Temos, sim, que transferir o debate sobre justiça para as mulheres e seus companheiros que sofrem com a gravidez de um feto que não irá nascer. Estas mulheres e homens é que são os sujeitos de nosso projeto de justiça, e não fetos que sequer irão nascer ou irão morrer instantes após o parto.

Rets - Ambos os que são contra e os que são a favor dessa decisão defendem a dignidade do ser humano em seus argumentos. No caso dos que são a favor, a dignidade da mulher que espera o nascimento de uma criança sem chance de sobreviver; no caso dos que são contra, a dignidade do feto, também considerado ser humano. O que pesa mais nos diferentes argumentos?

D. Odilo Pedro Scherer - Não há motivos fundados para afirmar que a mãe de um filho que pode morrer ainda durante a gestação, ou logo após o parto, seja menos digna ou tenha sua dignidade ferida ou desrespeitada. Tal mãe pode ser ajudada pela medicina, para que sua saúde não sofra danos; pela psicologia, a assistência social e a solidariedade humana, para superar um eventual drama pessoal por encontrar-se numa situação da qual ela não tem culpa e não deve carregar nenhum complexo ou estigma social (isso, sim, seria muito injusto); pode também ser ajudada pela religião, para encontrar a força da fé para dar sentido levar com dignidade a sua situação.

Mas eliminar o feto ou o bebê com anencefalia é um dano irreparável a uma vida inocente, indefesa e frágil. Mesmo o eventual sofrimento causado à mãe por ela se encontrar nessa situação não justifica a eliminação do feto ou do bebê.

Debora Diniz - Diferentemente do debate tradicional sobre aborto – onde um possível, porém contestável, argumento de choque de interesses pode ser levantado –, no caso da anencefalia não há como. Não há choque de interesses ou de princípios éticos. Não há como falar em dignidade da mulher e do feto neste caso. O feto não tem expectativa de vida, não irá sobreviver, a morte é certa e ocorrerá em instantes. Não estamos falando de metáforas ou de doenças degenerativas de longo prazo. A anencefalia é letal em 100% dos casos, com o agravante de não ter possibilidade de sobrevida.

Um ponto que merece ser sempre esclarecido ao discutir a ação do STF é que não estamos falando de deficiências ou doenças. A anencefalia não é uma doença ou uma deficiência que implica restrições ou limitações ou perdas de funcionalidade. A anencefalia é uma má-formação incompatível com a vida extra-uterina e não há qualquer forma de reverter esse quadro. Comparar a anencefalia com deficiências deve ser entendido como um recurso argumentativo perverso que, inclusive, desconsidera as lutas de cidadania e direitos humanos dos deficientes.

Durante o processo de elaboração da ação, várias entidades de deficientes, em particular da Síndrome de Down, participaram do processo. Em novembro de 2003, durante um seminário sobre o tema em Brasília, realizado no Ministério Público Federal, foi assinada a Carta de Brasília, em que entidades representativas dos direitos e interesses dos deficientes fizeram parte. Neste documento, foi feita a diferença clara entre anencefalia e deficiência.

Sua pergunta remete ao debate tradicional sobre aborto do que mesmo à antecipação terapêutica de parto. O tema da liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio Mello trata somente desta segunda questão: a da antecipação de parto em casos de anencefalia. Mas mesmo no debate sobre aborto em geral, este argumento sobre o choque de princípios somente se soluciona por escolhas. Ou seja, não há resposta pronta para a pergunta sobre qual dignidade vale mais. O debate deve ser sobre qual escolha um país laico, plural e democrático, quer fazer e pode fazer de acordo com sua Constituição. Eu, particularmente, não tenho dúvidas. A única escolha possível é aquela que amplia, garante e promove as liberdades individuais.


Rets - Que outros fatores devem ser levados em conta ao se considerar o direito (ou não) de interrupção da gestação quando for detectada anencefalia no feto?

D. Odilo Pedro Scherer - A autorização legal da interrupção da gravidez, no caso de anencefalia do feto, ou do bebê, seria tanto mais grave se fosse praticada pela sociedade, que, através de suas instituições, tem a responsabilidade de proteger e tutelar a vida humana, especialmente dos indefesos e mais frágeis. Numa sociedade baseada em valores éticos, os que são fortes e saudáveis, os que têm a ciência e o poder, devem tutelar e assegurar o direito dos fracos e indefesos. Contrariamente, negaríamos princípios basilares da civilização e da cultura. E isso, em primeiro lugar, não por causa de uma convicção religiosa. Antes de tudo, trata-se de uma questão de direito natural, que vale para todos, não importando a convicção filosófica ou religiosa. De fato, todos presumem ter o direito de serem tutelados e protegidos pelas instituições da sociedade e que ninguém pode, impunemente, lesar a sua integridade física ou moral ou atentar contra sua vida. A sociedade deve garantir esse direito a todos.

Debora Diniz - No caso da anencefalia, tema da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com assessoria técnica da Anis e proposta pelo advogado constitucionalista Luis Roberto Barroso, a defesa propôs que três princípios constitucionais deveriam ser considerados: o direito à saúde, a dignidade e a liberdade.

Como disse, mais da metade dos fetos anencefálicos morre ainda no útero, o que leva essas mulheres a risco de morte. Estamos falando de impor um risco absolutamente desnecessário, pois não há qualquer contraponto que justifique riscos à saúde, e inclusive riscos de morte. O direito à saúde é um direito fundamental e que deve ser garantido às mulheres grávidas de fetos com anencefalia, o que torna o procedimento da antecipação terapêutica de parto não somente um recurso para o bem-estar psicológico e espiritual, mas também físico.

Os princípios da dignidade e da liberdade são centrais à ação. Você já deve ter ouvido o argumento de que as mulheres comparam a experiência da obrigatoriedade da gravidez de um feto com anencefalia à tortura. Esse foi um argumento humanista bastante utilizado pelos primeiros alvarás que autorizaram a antecipação do parto no Brasil, em especial nos anos 1990. Mas além de ser um princípio da cultura dos direitos humanos, a descrição da gravidez como uma tortura era das próprias mulheres. Escutei, inúmeras vezes, mulheres dizendo: "por favor, vamos terminar com esta tortura".

Descrever a obrigatoriedade da manutenção da gestação como uma tortura não é uma metáfora. É um dado objetivo, com fortes repercussões na integridade psicológica e espiritual dessas mulheres. Por isso o princípio da dignidade é tão importante. São mulheres que não querem ser pecadoras, não querem romper com laços importantes, como são suas crenças religiosas, apenas querem terminar um processo em que não há culpados, não há responsáveis. E, na verdade, o mais correto não seria nem dizer terminar, mas simplesmente antecipar, pois a morte é inevitável – ou durante a gestação ou no término dela.

O princípio da liberdade é decisivo neste processo. É ele quem garante a pluralidade de crenças da sociedade, assim como promove a dignidade dessas mulheres. Nenhuma mulher será obrigada a antecipar um parto após o diagnóstico da anencefalia no feto, assim como nenhuma mulher poderá mais ser forçada a manter uma gestação. A ação, na verdade, pode ser entendida como uma declaração de liberdade no campo reprodutivo, o que é algo histórico no país.

Rets - Quais são as conseqüências mais importantes da aprovação dessa liminar? Ela pode abrir um caminho para a legalização da interrupção da gravidez em outros casos de patologias intra-uterinas?

D. Odilo Pedro Scherer - De fato, a aprovação da liminar, nos casos de anencefalia, pode abrir as portas para semelhantes autorizações nos casos de fetos ou bebês com outras anomalias incuráveis. Esta autorização "por causa do sofrimento causado à mãe ou aos pais" introduziria um princípio altamente questionável e até perigoso para a sociedade. Se fosse válido, tal princípio poderia ser aplicado em muitas situações, pois também crianças autistas, com Síndrome de Down ou doentes adultos incuráveis ou às portas da morte são causa de sofrimentos para seus familiares. Também nesses casos valeria a autorização de interromper a vida daqueles que são causa do sofrimentos aos familiares?

Debora Diniz - Esta é uma ação exclusivamente sobre anencefalia – como já disse, uma má-formação incompatível com a vida. A conseqüência mais importante é que as mulheres não terão mais que expor publicamente seu sofrimento para poder antecipar o parto e que os profissionais de saúde não poderão ser perseguidos por realizarem o procedimento de antecipação terapêutica do parto. Como você vê, esta é uma ação sobre algo simples e beira o senso comum. E o processo foi realizado com muita cautela.

Um outro aspecto desta liminar é que ela favorecerá principalmente as mulheres pobres, para quem a autorização judicial era a condição de possibilidade da realização do procedimento médico. A anencefalia é uma má-formação tão grave e letal que médicos e médicas se solidarizavam com o sofrimento das mulheres e, mesmo sem autorização judicial, antecipavam os partos. Há inúmeros relatos sobre isso. Mas um Estado de Direito não se pauta por solidariedade privada apenas, mas por conquistas e direitos públicos e universais. A liminar garante a universalidade ao acesso e o respeito à decisão.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, quando apresentou esta ação, pauta-se na convicção de que se trata de um tema de direitos humanos das mulheres e de garantias de trabalho para os profissionais da saúde. A CNTS está certa de que esta não é uma ação sobre aborto, mas sobre antecipação de parto em casos de anencefalia. Isso não quer dizer que outras entidades, ou mesmo que o processo de implementação da decisão do STF nos hospitais e clínicas de todo o país, não leve à inclusão de outras más-formações fetais incompatíveis com a vida extra-uterina. Mas este não é nosso ponto neste momento. E confundi-los pode ser um ato de má-fé ou de ignorância.

Mas me permita lhe contar uma coisa. Sabe qual foi a minha maior surpresa após a concessão da liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello? As pessoas não se espantaram com a liminar. Ao contrário, elas se espantaram, e muito, com o fato de a antecipação do parto nestes casos ser proibida, ou mesmo que para ser realizada fosse preciso uma autorização judicial. Esse impacto foi fundamental para entender que, exceto por alguns representantes da CNBB e por alguns homens isolados, a massa da população brasileira considera legítima a antecipação do parto em casos de anencefalia.

É importante lembrar que a oposição à liminar não é de toda a Igreja Católica, mas de setores mais conservadores e dogmáticos dela. O grupo Católicas pelo Direito de Decidir, da Igreja Católica, é um exemplo de quem apoiou e aplaudiu a liminar. Outras religiões, como a Igreja Universal, imediatamente apoiaram a decisão. Já tivemos expressões de solidariedade e apoio de vários grupos religiosos, que, inclusive, sempre deram conforto às mulheres. Isso mostra o quanto este tema se aproxima de um consenso ético no país.

Rets - A ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) sustenta que a antecipação desses partos não caracteriza o crime de aborto tipificado no Código Penal. Qual é a sua opinião sobre isso?

D. Odilo Pedro Scherer - A tipificação do aborto no Código Penal é uma questão a ser discutida em outra instância. Os artifícios e recursos de linguagem ("interrupção da gravidez", "parto antecipado") não mudam a substância daquilo que está em jogo e não conseguem esconder que se trata, de fato, de tirar a vida de um feto ou bebê, através de uma intervenção externa voluntária de alguém. Esta é a questão. E, para além daquilo que fosse permitido pelo Código Penal, permanece aberta a grave questão ética do respeito à vida do ser humano, que está sendo agredida.

Debora Diniz - O Código Penal foi editado nos anos 1940, ou seja, em um momento da história e do desenvolvimento da medicina em que não era possível realizar o diagnóstico pré-natal com a segurança de hoje. Teóricos do direito penal, como é o Diaulas Costa Ribeiro, jurista importante e que foi um dos precursores deste debate no Brasil, argumentam que o aborto tornou-se crime não por ser um atentado contra a vida do feto, mas sim por representar uma ameaça à saúde da mulher, pois muitas mulheres morriam em conseqüência das más condições sanitárias em que o aborto era realizado. Ou seja, Diaulas Ribeiro sustenta que criminalizou-se o aborto para proteger a saúde da mãe, um fundamento que hoje, com o avanço da medicina, não mais se justifica.

Não era possível no início do século passado, o legislador prever o avanço da medicina e já antever que a antecipação terapêutica do parto seria um procedimento seguro. Por isso a antecipação terapêutica de parto não foi prevista no Código Penal. Essa ausência justificada do Código Penal é que fez com que a CNTS sustentasse sua argumentação na Constituição, pois não era possível, sequer esperado, que o Código Penal previsse a situação da anencefalia e possibilidade de diagnóstico há mais de 60 anos.

Além disso, considerando uma interpretação literal do Código Penal e desconsiderando sua perspectiva histórica, os que consideram o aborto imoral e ilegal suportam que este é um crime contra a vida do feto. Como já disse, não se protege a vida por um materialismo biológico, mas por representar uma expectativa de vida extra-uterina, algo que inexiste neste caso. Não há vida ou expectativa de vida extra-uterina, portanto não há aborto, caso se queira uma interpretação literal do Código Penal. Mas sobre isso sugiro a leitura do livro que escrevi com o promotor de justiça Diaulas Costa Ribeiro, chamado "Aborto por Anomalia Fetal", que foi editado pela LetrasLivres (letraslivres@anis.org.br). A ação inspirou-se neste livro, onde originalmente desenvolvemos o conceito de antecipação terapêutica do parto.

Rets - A vida deve ser preservada a qualquer custo, inclusive colocando a saúde da mãe em risco, mesmo sabendo que essa vida é inviável?

D. Odilo Pedro Scherer - A vida deve ser respeitada sempre. É verdade que nos casos de anencefalia pode haver algum risco para a saúde da mãe, mas nem sempre risco de vida. A saúde da mãe pode ser acompanhada e controlada pela medicina e a ciência vai progredindo para reduzir ou eliminar este risco. O fato de a vida ser "inviável" não justifica o aborto. A vida humana vale por ela mesma, não pela sua duração, ou por aquilo que a sociedade considera "viável". O direito à vida pertence a todos, não apenas aos fortes, sadios e perfeitos.

Debora Diniz - No caso desta liminar, lhe devolveria a pergunta: de que vida você está falando? No caso da anencefalia, como vimos, não há expectativa de sobrevida, portanto, não podemos transpor o debate intransigente e intolerante do aborto para esta liminar. Como já disse, a liminar versa sobre algo bem mais simples. Mas sobre isso nós já conversamos acima.

Rets - Não havendo chance de sobrevivência, por que submeter os pais e demais familiares ao sofrimento de uma gestação sem qualquer perspectiva?

D. Odilo Pedro Scherer - A chance de sobrevivência não pode ser critério para eliminar uma vida, antecipando voluntariamente a morte do ser humano. É compreensível o sofrimento da mãe, ou dos familiares envolvidos num caso de anencefalia. Mas trata-se de pessoas adultas, que sabem que a vida é sempre frágil e sujeita a riscos; estas pessoas podem ser ajudadas de muitas maneiras pela ciência, pela solidariedade humana e pela fé religiosa. De toda maneira, trata-se de um erro da natureza e a mãe não tem culpa por isso. A sociedade deve lutar contra qualquer preconceito ou discriminação injustificada contra tais mulheres. De toda maneira, fica a pergunta: a mulher – autorizada nesses casos, a fazer o aborto – fica aliviada ou carregada de um segundo drama, o de ter abortado? De fato, a decisão de fazer um aborto, ainda que seja "legal", sempre é traumática para a mãe. E, nesses casos, trata-se de uma decisão voluntária, que envolve a responsabilidade pessoal. Quem ajudará esta mãe a superar seu drama ao longo da vida? A solução é deixar a natureza fazer o seu curso.

Debora Diniz - Por desconsiderar o sofrimento dessas mulheres e de seus companheiros. Por ignorar a experiência de tortura dessas mulheres. Por desconhecer o que seja anencefalia. Por ser incapaz de se aproximar da dor da perda de um filho que sequer viverá. Por não conseguir se desprender de seu próprio lugar no mundo para se aproximar da dor do outro. Por ser dogmático. Por ser intolerante. Por não reconhecer que o mundo é plural e que nem todos acreditam nas mesmas coisas que nós.

Não vejo outras razões. Sua pergunta foi forte, por isso a resposta foi tão direta.

Rets - Qual deve ser a responsabilidade do Estado sobre a questão do aborto?

D. Odilo Pedro Scherer - O Estado representa a sociedade organizada, suas instituições, as pessoas e cidadãos que o compõem, seus valores, sua cultura. Cabe ao Estado, por direito e vontade da sociedade, assegurar que os direitos das pessoas sejam reconhecidos e respeitados, fazendo os cidadãos cumprirem também seus deveres. No caso do aborto, cabe ao Estado fazer leis sábias que tutelem a vida dos nascituros e dispor para que sejam respeitadas.

Debora Diniz - Reconhecer que esta é uma questão de saúde pública e de liberdades e responsabilidades individuais. O Estado deve ser o principal promotor da laicidade, portanto, deve se proteger e garantir que seus cidadãos e cidadãs sejam protegidos do fundamentalismo religioso que impede livre expressão das crenças e da diversidade. Mas eu tenho uma certeza e um conforto. A certeza de que os extremistas e fundamentalistas são minoria. Grande parte de nossa sociedade é formada por pessoas que querem viver e deixar os outros viverem. Não querem ser missionários de uma causa. Querem viver a sua causa e conviver com as causas dos outros. O meu conforto é que decisões como a do STF mostram que é possível a mudança e que estamos preparados para ela.

Mariana Loiola

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