Autor original: Mariana Loiola
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A XV Conferência Internacional de Aids, realizada entre os dias 11 e 16 deste mês em Bangkok, na Tailândia, reuniu autoridades governamentais, sociedade civil e cientistas de todo o mundo com o objetivo de discutir estratégias para ampliar e democratizar o acesso para todas as pessoas ao tratamento, à educação e à informação sobre a doença. Também foi proposta do evento reforçar o comprometimento dos governos na resposta à epidemia, contribuindo para aumentar a qualidade de vida das pessoas com Aids e para reduzir a taxa de novas infecções.
Alessandra Nilo, presidente do Conselho Diretor da Gestos - Soropositividade, Comunicação e Gênero, comenta algumas das discussões centrais da conferência - que teve como tema principal "Acesso para todos" – , os avanços no combate à Aids no Brasil - que, segundo Alessandra, são "resultado de uma conquista árdua do movimento social" -, e a necessidade de um empenho maior para ampliar o acesso das pessoas soropositivas aos serviços de saúde no país. Ela também reforça as críticas feitas na conferência à política de combate à epidemia do governo dos Estados Unidos, que defende a promoção da abstinência sexual e da fidelidade.
Alessandra fala ainda da campanha que será lançada pelo movimento "Um Mundo. Uma Luta", durante o Fórum Social das Américas, que acontece entre os próximos dias 25 e 30 de julho, em Quito, no Equador. O movimento propõe uma campanha de mobilização social na América Latina e Caribe (segunda região no mundo em casos de Aids, segundo a Unaids, entidade das Nações Unidas responsável pelo controle da Aids no mundo), tendo como foco a quebra de patentes de medicamentos antiretrovirais pelo governo brasileiro.
Rets - Considerando o tema da conferência deste ano - "Acesso para todos" -, os debates apresentaram boas perspectivas para a prevenção à Aids e o tratamento da doença no mundo?
Alessandra Nilo - A grande tônica da conferência foi a solicitação de mais empenho (político e financeiro) dos governos mundiais para o combate à epidemia. Mas a grande questão de fundo é enfrentar a conjuntura atual onde as tensões mundiais se concentram nas negociações relativas ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), tanto em âmbito mundial - Organização Mundial do Comércio (OMC) -, quanto regional - Área de Livre Comércio das Américas (Alca), Nafta e tantos outros acordos bilateriais e plurilaterais. Estes são grandes empecilhos para o desenvolvimento tecnológico e o acesso à saúde pública, portanto, não é possível garantir o "Acesso para todos" sem resolver estes impasses. Nesse sentido, a licença compulsória [de medicamentos retrovirais] parece ser o último caminho lúcido e digno dessa batalha.
Outra questão é que insistiu-se muito ainda no fortalecimento do "3 by 5", estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS), que parece ter poucas chances de êxito e cujo objetivo é garantir medicamento a 3 milhões de pacientes até dezembro de 2005. Considerando que hoje temos menos de 500 mil pessoas em tratamento, alcançar este alvo em tão pouco tempo parece intangível diante da desorganização do processo e da falta de recursos necessários para tal.
Rets - O modelo brasileiro de combate à Aids e os seus resultados foram apresentados na conferência. Que ações realizadas aqui no Brasil podem ser copiadas por outros países?
Alessandra Nilo - Não partilho da idéia de um "modelo brasileiro". O que temos é ainda um processo de construção que é histórico, permanente e que precisa - e muito - ser melhorado. A realidade de alguns centros de saúde em São Paulo é totalmente diferente da dos serviços do Recife, que por sua vez são diferentes da de Manaus, de Jacoatinga etc. Somos todos parte do mesmo Brasil, aclamado internacionalmente mas, aqui dentro, pessoas ainda morrem por falta de medicamentos para doenças oportunistas, sofrem a falta de leitos, a ausência de profissionais bem preparados. Basta comparar nosso nível de pobreza, os dados do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e quantidade de brasileiros/as que passam fome. Ou comparar o número de ações judiciais promovidas pelas pessoas soropositivas para ter acesso a um tratamento de qualidade e até mesmo aos medicamentos. Dizer que, no meio disso, temos um "modelo" que podemos exportar ainda me parece um contra-senso.
Prefiro a idéia de que temos uma "rica experiência brasileira" que, mesmo com inegáveis avanços internos e servindo como um bom exemplo e estímulo para outros países, também precisa ser encarada hoje com um olhar mais auto-crítico. Temos uma legislação que reconhece o direito ao tratamento do HIV/Aids e uma série de políticas públicas relacionadas ao tema, o que é muito positivo para o Brasil, especialmente quando pensamos na conjuntura mundial. Mas é preciso ter clareza de que isso não foi "dado", é o resultado de uma conquista árdua do movimento social. Muitos ativistas morreram por esta causa. Muitos continuam "dedicando" sua saúde, numa militância que excede as tradicionais oito horas diárias de trabalho. Muitos ativistas também deixaram as ONGs e foram dar sua contribuição ao Programa Nacional de DST/Aids. Ou seja, a sociedade civil no Brasil conseguiu ocupar espaços muito estratégicos e continua cumprindo bem seu papel de pressionar o governo e cobrar medidas. O controle social tem sido, de fato, o grande pilar da resposta brasileira. Inclusive, no dia 26 de agosto, vamos às ruas, numa grande mobilização nacional, exatamente para cobrar respostas governamentais aos graves problemas que continuamos vivendo no Brasil.
Por isso não há com "exportar" essa experiência para outros países. Para que cada nação encontre seu próprio caminho, e formule suas próprias políticas públicas, a sociedade civil tem que ter a clareza do seu papel, do seu "poder" e assumir sua participação ativa no processo.
Rets - O governo norte-americano foi bastante criticado na conferência pela sua política de combate à Aids baseada na promoção da abstinência sexual e da fidelidade. Você acredita que esse tipo de estratégia pode interferir no combate à epidemia no mundo?
Alessandra Nilo - Todas as questões relacionadas ao governo americano precisam ser analisadas sob perspectivas comerciais e políticas. Os EUA são um país de formação protestante, adepto de teorias comportamentais onde o ser humano é sempre tratado como uma cobaia para testes. Foi assim com as difusões das "inovações" nos anos 60 que transformou a Usaid numa promotora de esterilização de mulheres e trouxe para América Latina os resultados que conhecemos bem. Da mesma maneira hoje os EUA continuam entrando nos países pobres, injetam recursos (que quase nunca são utilizados de fato para a melhoria da qualidade de vida da população) e agem como se isso lhe desse o direito de dizer como e quando as pessoas daquele país devem conduzir suas vidas e vivenciar sua sexualidade. Esse é o grande absurdo! Esse tipo de definição deve ser pessoal, fruto de uma auto-reflexão, o que demanda acesso a informações claras e adequadas ao diferentes públicos que precisam se prevenir do HIV/Aids. Nenhum governo pode interferir dessa forma na individualidade de seus cidadãos e cidadãs, muito menos na população de outros países. Além disso, tecnicamente, a abordagem não funciona e os países que estão entrando no conto da política do ABC (sigla em inglês para "abstinência, fidelidade e preservativos") vão ver o resultado disso a médio prazo.
No Brasil, o governo reconhece publicamente a ineficácia do ABC. Recentemente a Usaid iniciou uma discussão que levou meses com as ONG/Aids brasileiras. Tinha um financiamento de 48 milhões de dólares na área de Aids e queria usá-los através de parcerias com as ONGs. A negociação foi difícil. Mas finalmente eles entenderam que só concordaríamos com a entrada dos recursos se ficasse garantido que nenhum centavo seria usado para ABC. Esse acordo foi acompanhado pelo Programa Nacional de Aids e significou uma grande vitória para o movimento brasileiro. Ou seja, usaremos esses recursos fazendo exatamente o contrário do que o Bush prega no mundo. Isso é um ótimo exemplo para ser "exportado".
Rets - A Gestos está entre as ONGs/Aids da América Latina e Caribe que lançarão, no Fórum Social Américas, uma campanha pela quebra de patentes de medicamentos antiretrovirais. Você pode adiantar para nós alguns detalhes - razões, ações e metas - dessa campanha?
Alessandra Nilo - Sim, fazemos parte de uma articulação chamada Um Mundo, Uma Luta, juntamente com o Gapa/SP, o Gapa/RS, a Articulação de Mulheres Brasileiras e a SOS Corpo. Nosso desafio hoje é mostrar para as pessoas (principalmente as que não são militantes) que "Acesso a Medicamentos" - não só os de Aids, falo de maneira geral - tem a ver com questões mais globais e mais complexas. Se a sociedade civil não tomar a iniciativa de fomentar de verdade um diálogo sobre isso, não vamos conseguir resultados concretos. No caso da América Latina, é importante entender que a Alca ainda encontra-se em negociação, que as propostas norte-americanas querem acabar com as flexibilidades (salvaguardas) estabelecidas pelo Trips, e que, se a gente não se opuser, isso vai aniquilar as conquistas na interface entre comércio e saúde pública, expressas na Declaração de Doha.
A pergunta que nos perseguia era "como traduzir tudo isso numa ação cujo efeito pudesse ser sentido pelo pai de família, pela mulher que sustenta a casa e os filhos, pelos/as profissionais de diversos setores?" A solução foi abraçar a bandeira da garantia de acesso a medicamentos, pois é um tema transversal, independente da área em que você atue. Por isso, temos trazido esta temática pelos Fóruns Sociais Mundiais, passando por Porto Alegre (2003), Índia (2004) e agora Fórum Social das Américas, em Quito.
A estratégia para Quito é contribuir para uma grande articulação sobre o tema. Estamos propondo uma campanha de mobilização social articulada regionalmente (América Latina e Caribe), mas tendo como foco nesse primeiro momento "licença compulsória" de medicamentos antiretrovirais pelo governo brasileiro. Ainda não podemos divulgar os detalhes, mas nosso objetivo é potencializar a aliança política entre o movimento de Aids de todos os países da região e pressionar o Brasil para que ele assuma uma posição ainda mais contundente frente às negociações comerciais mundiais, onde o lucro tem sido sempre mais importante do que a qualidade de vida das pessoas. Como nos disse uma vez o Carlos Passarelli, da Abia/Rebrip, "recorrer à licença compulsória parece ser a única alternativa que os países vislumbram para implementar Doha e fazer o sonho do acesso para todos uma realidade mais próxima".
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