Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Um projeto de lei aprovado pelo Congresso na última semana antes do recesso parlamentar está preocupando – e muito - os ambientalistas. O artigo 64 do PL 2109/99, proposto pelo então deputado Ayrton Xerez (PSDB-RJ), revoga a aplicação do Código Florestal em áreas urbanas e de expansão urbana. Em carta enviada ao presidente Lula na última quinta-feira, ONGs afirmam que a medida estimulará a “tendência de ocupação de áreas de interesse socioambiental com graves reflexos para toda sociedade e o meio ambiente nacional”. Segundo elas, o ecossistema que corre mais risco é a Mata Atlântica. O projeto aguarda sanção da Presidência da República.
O artigo estabelece que “na produção imobiliária, seja por incorporação ou parcelamento do solo, em área urbana e de expansão urbana, não se aplicam os dispositivos da lei 4771/65”, que dá origem ao Código Florestal.
O código, instituído em 1965, cria áreas de proteção permanente nas margens de rios, ao redor de lagos e lagoas, no topo de morros e serras, em restingas e outros terrenos. Para áreas urbanas, estabelece que a preservação deve obedecer aos planos diretores e leis de uso de solo, porém respeitando as limitações de áreas de proteção permanente. O desrespeito a essas instruções é considerado contravenção penal. A fiscalização do cumprimento das normas cabe ao Ibama e aos órgãos estaduais de meio ambiente. A revogação permitirá construções nesses locais caso as legislações municipais permitam.
Conseqüências
Problemas não faltam. Segundo as organizações ambientalistas, o maior é a revogação da aplicação do Código Florestal em áreas de expansão urbana. “Todo o litoral é área de expansão urbana”, afirma André Lima, assessor jurídico do Instituto Socioambiental. “A falta de condicionantes é absurda”, completa.
A lei federal não exige um plano diretor (de planejamento urbano) ou de zoneamento ambiental, o que permite a um município autorizar a loteamento de uma zona em seu perímetro urbano. O problema, alertam as organizações, é o impacto que essa decisão pode causar em outras áreas. Se um rio, por exemplo, passa em mais de um município e sua margem mais acima é ocupada, gerando detritos e assoreamento, os moradores da cidade localizada abaixo no curso sofrerão. E o Ibama ou órgãos estaduais de meio ambiente não poderão interferir na decisão.
Outra crítica é a possibilidade das reservas legais das propriedades rurais serem desrespeitadas. As reservas são percentuais mínimos de vegetação nativa que devem ser mantidos de acordo com o ecossistema. O menor índice é de 20%, no Nordeste e o maior de 50% na Amazônia. Uma prefeitura pode decretar a qualquer momento, sem consulta ao Legislativo, uma determinada área como de expansão urbana, permitindo assim o desmatamento total da localidade.
Essa decisão abre outra possibilidade, também preocupante. A lei faz referência a atividades associadas à “produção imobiliária”. Entre elas está qualquer indústria que abasteça a construção civil, como a de mineração e extração de madeira, que poderão passar a agir em margens de rio, nascentes e outras áreas de preservação. As ONGs alertam para o risco de aumento no nível de poluição e para o agravamento das enchentes nas grandes cidades.
A probabilidade de um município declarar uma área como de expansão urbana e assim prejudicar o meio ambiente não é pequena. A construção civil gera bastante emprego e dividendos para os cofres públicos. Outro fator que contribui para aumentar o risco de desmatamento é o pequeno número de municípios com entidades de fiscalização ambiental. De acordo com o IBGE, apenas 17% dos municípios possuem plano diretor e menos de 10% possuem infra-estrutura suficiente e pessoal habilitado para fiscalizar danos ao meio ambiente. Os dados são relativos a 2001. O mesmo instituto mostra que somente 29% dos municípios possuem Conselhos de Meio Ambiente. Porém o percentual de órgãos ativos (que se reuniram ao menos uma vez em 2001) é menor: 22%. Nas grandes cidades, o problema é menor, pois 78% das com mais de 500 mil habitantes possuem conselhos. Mas nas pequenas, com menos de 5 mil habitantes, o índice é bem menor: 74%. E entre as cidades com Conselhos de Meio Ambiente, somente 27% têm legislação ambiental.
As ONGs se preocupam também com a criação de novas unidades de conservação. O resultado do fim das áreas de proteção nos centros urbanos é o aumento do valor dos terrenos. Isso dificulta a compra dos imóveis pelo poder público, diminuindo assim a probabilidade de surgimento de novas áreas de lazer e floresta nas grandes cidades.
A Rets procurou o deputado Ricado Izar, que também é Coordenador da Frente Parlamentar de Habitação e Desenvolvimento Urbano, mas ele se encontra em viagem ao Líbano. Não havia assessores para explicarem as vantagens do artigo e o porquê de sua inclusão no PL, devido ao recesso parlamentar.
A justificativa apresentada pelo deputado na plenária da Câmara afirmava que o Código Florestal possui um "dispositivo esdrúxulo". Este dispositivo estaria "engessando" as administrações municipais, pois elas deveriam aplicar às cidade normas típicas do meio rural. "É preciso, portanto, racionalizar essa questão, excluindo das normas legítimas do parcelamento do solo urbano referido empecilho para a necessária expansão da atividade imobiliária", declarou o deputado na justificativa.
Repercussão
Segundo comunicado da Rede das Águas, que reúne entidades ambientalistas, a revogação é “o maior retrocesso ambiental da história brasileira”. De acordo com o documento, a Mata Atlântica e seus recursos hídricos ficarão comprometidos, o que afetará a qualidade de vida de quase dois terços da população brasileira. “Será uma barbárie”, diz Mário Montovani, diretor de relações institucionais da Fundação SOS Mata Atlântica, entidade participante da rede.
Nesse bioma estão 62% das cidades brasileiras e por volta de 110 milhões de pessoas, segundo o Atlas da Mata Atlântica, publicado pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisa e Estatística (Inpe). De acordo com o Ibama, restam apenas 7,3% da área original da mata. A Constituição considera esse bioma patrimônio nacional e estabelece que sua exploração deve assegurar a conservação ambiental.
O PL 2109/99 dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário e Bancário. Ele altera a leis sobre o patrimônio de incorporações imobiliárias. A tramitação foi conjunta ao PL 3065/04, proposto pelo Executivo. O texto original não continha o artigo 64, incluído pelo relator, deputado Ricardo Izar (PTB-SP), depois do PL já ter passado pela Comissão Especial do Congresso. A versão final, em forma de substitutivo, foi aprovada no Congresso em apenas dois dias. “Foi uma velocidade supreendente”, diz André Lima. Ele lembra, porém, que o projeto possui outros interesses que podem justificar a rapidez. Para Mário Montovani, o episódio revela a falta de atenção do governo com as questões ambientais no Congresso.
A aprovação do PL surpreendeu até mesmo o governo. O Ministério do Meio Ambiente pediu, por meio de um parecer, o veto do artigo 64 pela Presidência alegando os prejuízos que ele pode causar à sociedade. O documento está sendo analisado pela Casa Civil, que não se manifestou até a tarde de sexta-feira. “Nossa exposição de motivos explicita claramente o problema potencialmente grande que o projeto pode provocar, o impacto negativo desse dispositivo. Nossa expectativa é que esse parecer seja considerado, mesmo porque o projeto original não previa um dispositivo nessa direção”, diz João Paulo Capobianco, secretário de biodiversidade e florestas do MMA. O argumento do parecer se baseia na falta de coerência do artigo com o restante do projeto e nas conseqüências de sua sanção.
Os ambientalistas também se dizem preocupados com a constante culpabilização do meio ambiente pela falta de investimentos no país. No fim do ano passado a Associação Brasileira de Infra-Estrutura de Base (Abdib) cobrou do governo mais agilidade na concessão de licenças pelo Ibama. Quinze obras, que somariam R$ 28 bilhões, estariam paradas devido a falta de licenciamentos. À época, o governo respondendo que os problemas não se limitavam à vagarosidade do Ibama, mas a problemas judiciais enfrentados pelos empreendimentos. Tanto Montovani quanto André Lima alertam para os interesses de especuladores imobiliários na sanção do artigo 64 do PL 2109/99. “É um lobby muito forte que combatemos há tempos”, afirma Montovani.
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