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Não é o que não pode ser

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Novidades do Terceiro Setor





Não é o que não pode ser


Democracia e crescimento são fundamentais, mas não suficientes. A liberdade cultural – entendida aqui num contexto mais amplo, que não se limita às artes, mas abrange conceitos como religião, idioma, culinária, estilo de vida e valores – é um complemento indispensável ao combate à pobreza. É o que revela o Relatório de Desenvolvimento Humano 2004 (RDH 2004), produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e lançado mundialmente no dia 15 de julho. Tendo como tema "A liberdade cultural em um mundo diferente do de hoje", o documento alerta: os direitos culturais têm recebido atenção consideravelmente inferior à que é concedida aos demais direitos humanos. Segundo a publicação, uma em cada sete pessoas em todo o mundo pertence a grupos que enfrentam discriminações ou são excluídos social, política ou economicamente. O relatório traz ainda o novo ranking do desenvolvimento humano, que mostra o Brasil na 72ª posição entre os 175 países analisados – somados a Hong Kong e à Palestina, ainda sem status de nações independentes.

A publicação ajuda a desmistificar algumas idéias preconcebidas, como a de que algumas culturas teriam mais chance do que outras de conduzir ao desenvolvimento e que unidade nacional e diversidade cultural seriam conceitos excludentes. Ao contrário, afirma José Carlos Libânio, assessor para Desenvolvimento Humano do PNUD no Brasil, o reconhecimento das diferentes etnias, religiões e línguas é essencial. "A supressão das liberdades culturais ou diferenças pode gerar crises como vemos hoje nos Bálcãs ou no oriente. É preciso que os governos adotem políticas ativas de diversidade e reconhecimento das diferenças culturais e religiosas", propõe.

Numa amostra desse panorama ameaçador da diversidade, alguns dados são significativos. Em relação aos idiomas, o relatório observa que dos 10 mil que já existiram sobraram apenas 6 mil. E a perspectiva é de que, nos próximos anos, pelo menos metade deles desapareça.

Quanto à variedade étnica, vale citar o caso da África do Sul, que durante anos – e até a primeira metade da década de 90 – conviveu com a segregação imposta pelo apartheid. Hoje, os negros recebem um quinto da remuneração dos brancos e praticamente um quarto da população negra não tem acesso à educação.

Para Libânio, os países podem fomentar suas culturas por meio de negociações internacionais e, principalmente, de políticas nacionais de incentivo. É uma iniciativa bem mais eficaz do que a imposição de barreiras tarifárias à produção estrangeira, afirma o relatório. "Brasil e França são exemplos de países que vêm incentivando a produção cultural doméstica, com subsídios e incentivos fiscais. E a Coréia do Sul adotou cotas de exibição para filmes", destaca o assessor do PNUD.

A defesa dos valores locais, no entanto, traz um dilema: as políticas públicas devem valorizar a cultura e a identidade locais, mas sem recorrer a uma postura xenófoba, de negação do que vem de fora. O problema é a dimensão que vem tomando o comércio internacional de bens culturais, cuja produção é fortemente concentrada. Segundo o relatório, apenas 13 países recebem 4 de cada 5 dólares em um mercado que, em 1998, movimentava cerca de US$ 380 bilhões.

De acordo com o RDH 2004, manifestações artísticas musicais ou cinematográficas, entre outras, devem ser entendidas não como mero entretenimento, mas como bens culturais, por seu caráter representativo de um determinado grupo social. A questão tem sido discutida nos principais fóruns internacionais do comércio global, como o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Na reunião do GATT realizada no Uruguai foi aberta uma uma cláusula de "exceção cultural" para que os bens culturais fossem excluídos de negociações do comércio internacional e os países adotassem políticas favoráveis às suas produções locais. O debate prosseguiu nas reuniões da OMC, em Cancún e Miami, mas não houve ainda um consenso. "As posições continuam polarizadas", diz o relatório. "De um lado estão os que consideram os produtos culturais tão comerciais como as maçãs ou os automóveis e, por isso, sujeitos a todas as regras do comércio internacional. Do outro, estão aqueles que vêem os produtos culturais como ativos portadores de valores, idéias e significados e que, por isso, merecem tratamento especial".

Para José Carlos Libânio, é preciso que as políticas públicas de cada governo assegurem condições para que as pessoas consigam ser aquilo que de fato desejam ser.

Concentração

O evento que marcou o lançamento do Relatório de Desenvolvimento Humano 2004, em Brasília, contou com a presença do ministro interino da Cultura, Juca Ferreira. Segundo Libânio, a receptividade do governo brasileiro ao documento foi boa. "O ministro reconhece que há ainda muito a ser feito", informa."O quadro que ele afirma ter encontrado no ministério foi de 85% dos incentivos culturais concentrados no eixo Rio-São Paulo. E o que ele defende é justamente uma paridade maior no consumo de bens culturais".

O Brasil permanece entre os países classificados como "de desenvolvimento médio", embora apareça em posição inferior à da análise do ano passado – passou do 65º lugar para o 72º, com um índice de 0,775 numa escala que vai de 0,500 a 1,000. Há, porém, dados que devem ser considerados. Um deles é a entrada de nações que não figuravam no levantamento anterior. Hong Kong, por exemplo, ocupa posição melhor que o Brasil e não estava na lista em 2003. O outro ponto é a atualização dos dados que balizaram o cálculo do índice no ano passado.

"As informações para o cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano vêm de fontes internacionais e elas atualizam suas bases de dados, inclusive as de anos anteriores. Como são muitos dados e é impossível coletar todos, às vezes são utilizadas estimativas, e esses números podem ser revistos", explica Libânio. Para efeito comparativo, foi feito um cálculo do IDH do Brasil em 2003 a partir dos dados atualizados. O resultado foi que a pontuação subiu dos 0,773 anteriores para os mesmos 0,775 atuais.

O Relatório de Desenvolvimento Humano é publicado anualmente pelo PNUD há 14 anos. O Índice de Desenvolvimento Humano tornou-se um instrumento mundialmente utilizado como parâmetro para determinar o grau de desenvolvimento de um país, pois baseia-se não apenas nos aspectos econômico-financeiros, levando em conta informações culturais, políticas e sociais como elementos fundamentais para analisar a qualidade de vida.

Fausto Rêgo

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